segunda-feira, fevereiro 27, 2006

Onze

- No que é que estás a pensar?
Conhecia Maria há tanto tempo que não me passava pela cabeça conseguir esconder-lhe algo, mas naquele dia pensei duas vezes antes de responder.
- Lembrei-me de uma coisa de repente.
- De uma coisa?
- Sim, uma coisa que aconteceu há uns meses atrás.
Diverti-me com o seu olhar curioso.
- Sabes a final da Taça UEFA do ano passado?
- Da Taça UEFA? Estás a falar de futebol, certo? Achei que fosse alguma coisa interessante.
- Vá lá, não sejas assim, a final à qual foi o Sporting, no seu estádio, contra uma equipa russa?
- Sim, tenho uma ideia, perderam, não foi?
Suspirei com a recordação.
- Mas porque raio foste pensar nisso agora?
- Eu na verdade penso muitas vezes nisso.
Ela riu com aquele riso de criança marota que nunca tinha perdido.
- Vocês homens são demais.
- Mas queres ouvir ou não? Afinal tu é que perguntaste no que é que eu estava a pensar.
- Tens razão, desculpa, podes continuar.
- Bem, não sei se te lembras mas eu fui ver o jogo ao estádio com um bilhete que ganhei num concurso.
- Já me lembro, tinhas de telefonar e eles davam um bilhete de mil em mil telefonemas.
- Vês...
- Deves ter achado que os astros estavam alinhados e que era o dia perfeito para uma grande vitória.
- Tu brincas, mas por acaso achei, mas isso não é importante, o que interessa é que fui sozinho ao jogo e lembrei-me agora de uma pessoa que ficou ao meu lado.
- Uma pessoa?
- Sim, um homem.
Maria abriu mais os olhos, normalmente as nossas conversas não eram sobre homens.
- E o que é que esse homem tinha de especial?
- Era um sujeito com um ar bastante desagradável, com um ar acabado, de quem tinha tido uma vida cheia de problemas. Lembro-me que cheirava a tabaco de uma maneira muito intensa, como se tivesse fumado sem parar durante anos, durante o jogo nunca o vi sem ter um cigarro na mão.
- Gosto destas tuas descrições, mas não estás a compor uma personagem muito agradável.
Bebi o resto da Coca-Cola que tinha no copo e continuei.
- Pois, mas ele era mesmo assim, o género de pessoa que não apetece estar ao pé, acho que foi aí que os astros começaram a ficar desalinhados.
- E o que é que esse homem tinha de tão especial, além de cheirar a cigarros? Suponho que não foi só por isso que te lembraste dele.
- Não, não foi.
O ar dela era cada vez mais impaciente.
- Rui, estou a dez segundos de me desinteressar por esta história, não podes ir mais depressa?
Eu ri com o ar zangado dela, esta era uma critica antiga, mas eu sabia que ela me ouviria até ao fim.
- Quando o jogo estava a começar, sabes quando as duas equipas estão alinhadas?
- Sim, sim, segue por favor.
- Bem, nessa altura ele puxou de uma máquina fotográfica, uma daquelas digitais mais baratas que nem visor têm.
- Sim, e?
- E começou a tirar fotografias com a máquina ao contrário.
- De pernas para o ar?
- Não, ao contrário mesmo, a espreitar pela objectiva.
- Estás a brincar...
- A sério, fartou-se de tirar fotografias e nem uma com a máquina virada para o relvado.
Maria ficou pensativa e esperou um pouco antes de falar.
- Sinceramente não sei o que é mais estranho, se o homem a tirar as fotografias ao contrário, ou tu lembrares-te de repente disso, nunca me tinhas contado isto.
- Nunca contei a ninguém, acho que fiquei tão triste com o jogo que apaguei alguns pormenores da minha cabeça.
- E agora veio-te assim tudo de repente. Tu és estranho, sabes isso, não sabes?
Sorri para ela.
- Mas a historia não acaba aqui.
- Espero bem que não.
- Eu chamei-o à atenção.
- Tu?
O ar de espanto era dos maiores que eu já tinha visto na cara dela.
- Mas tu tens sempre vergonha de falar com as pessoas. Não acredito que foste dizer ao tipo o que ele estava a fazer, foi como chamares-lhe doido.
- Sim, eu sei.
- E o que é que ele disse?
- Falou de discos.
- De discos? Mas que discos?
- Discos, música.
O empregado da esplanada onde estávamos sentados aproximou-se e retirou da mesa as garrafas vazias. Perguntou se queríamos mais alguma coisa e eu agradeci com uma aceno, ela não respondeu.
- Mas o que é que ele disse exactamente?
- Que os melhores discos tinham sempre onze músicas.
Maria acendeu um cigarro e fumou-o pensativamente.
- Tu estás a gozar comigo, certo?
- Não, ele disse o que eu acabei de dizer.
- Deixa-me recapitular, tu estás aqui a passar a tarde com a tua melhor amiga na melhor esplanada de Lisboa, uma vista sobe o Tejo que nos faz sonhar e de repente...de repente lembraste de num jogo de futebol teres visto um homem com mau aspecto tirar fotografias com uma máquina ao contrário, homem esse que te deu conselhos estranhos sobre música. Está a faltar alguma coisa?
A vista da esplanada era a razão porque insistia com Maria para irmos ali tantas vezes, era capaz de ficar horas a olhar para os cacilheiros a cruzarem o rio. Respondi-lhe sem olhar para ela.
- Não, resumiste bem o que se passou.
- E o que é que tu lhe disseste?
- Nada.
- Nada?
- Sim, o jogo começou e eu não disse mais nada.
Ela ficou calada durante vários minutos a olhar para o rio. Nós costumávamos nos gabar dos nossos silêncios nunca serem constrangedores, mas naquele dia, pela primeira vez, senti o desconforto das palavras não ditas. Então ela fixou-me nos olhos e falou com um ar calmo.
- E acabou assim?
- Sim, o jogo acabou, nós perdemos, eu vim-me embora e não voltei a pensar no assunto, só que...
- Só que?
- A verdade é que nunca liguei as duas coisas, mas de há algum tempo para cá que quando compro um disco a primeira coisa que faço é contar as músicas.
Ela sorriu antes de falar.
- Rui, isto nunca aconteceu, pois não?
- Se tu quiseres aconteceu.

11 comentários:

jctp disse...

- Discos, sabe? São discos. Isso é que me importa. Onze músicas. Os melhores têm sempre onze músicas.
- Pois, mas... a máquina... a máquina está ao contrário.
- As músicas, isso é que importa. Há lá coisa mais importante! Clique... Mais uma! Ouviu?
- Mais uma com a sua cara.
- Não. É só o olho. Põe-se aqui o olho na objectiva, e é certo. Ela tira só ao olho. Só à pupila, para ser mais exacto. Ou íris, ou como é que isto se chama! Não sou entendido. Eu gosto é de música. Clique... Olhe, lá foi outra.
- Mas há discos que não têm onze músicas.
- Clique. Porra! Esta merda agora clica sem avisar! E eu não tinha lá o olho. É mesmo rasca esta máquina!... Mas, dizia o amigo...
- Dizia que há discos que não têm onze músicas.
- E está muito bem dito. Mas esses não prestam. E se tiver mais do que onze, de certeza que tem músicas a mais. Onze é que é o número certo. É assim como uma equipa de futebol. Raio de exemplo de que me fui lembrar! Por acaso nem percebo porque é que me lembrei do futebol. Eu nem vou muito à bola com essas coisas. Clique.
- Gooooolo!

laura disse...

caramba, como é bom ouvir uma história e depois vê-la transformada em conto... agora, qual é a verdadeira: esta, ou a história que me contaste?

inBluesY disse...

estranho!?!
isto recorda-me uma café lindo a beira rio com a ponte pela esquerda, excelentes fins de tarde por ali com alguém longe neste momento, muito longe por acaso, mas tb ele falava também em cds e números sim, quando voltar vai ter de me recordar.

obrigada por mais este tempo por aqui dispensado.

Agripina Roxo disse...

fantástico rspiff :) fantástico
só tem um problema, é que agora acho que também vou começar a ver o número de músicas que têm os cds :)
beijinhos

Anónimo disse...

A história, real ou não, está muito boa!Sao aqueles pormenores que agora tocam a vida de quem esteve lá, ou de quem a imaginou!Vou começar, quase de certeza, a contar as musicas dos cds.O curioso é que,o meu álbum favorito, deftones - white pony tem..11 músicas.Podia ter 10 ou 12 ou 13, mas...tem 11!É como a equipa de futebol, tem o número necessário.Para constituir uma equipa e para que ela supostamente funcione (defesa, ataque...etc).11 peças, com inúmeras tácticas.Um cd com 11 músicas com inúmeras interpretações!

Ah ja agora...isso aconteceu porque se fala do sporting!LOL.E eu fiquei tão contente de ter perdido...sou sincero!

xein disse...

É essa a moral, não é verdade.... Desde que queiramos, tudo pode ser real... Adorei!

Sente-te!

kolm disse...

"Pelo visto a inspiração pode mesmo ser partilhada com os outros :-)" Só hoje reparei (um grande sorriso para ti)

A tua está ao rubro, pessoas simples, conversas despreocupadas. E eu acredito que aconteceu...

engraçado no meu dia a dia utilizo várias vezes a frase: “Se tu quiseres aconteceu.”...
e bom estar de volta..

nspfa disse...

Se tu realmente fores como te retratas nas tuas ficticias histórias, só se pode concluir que és uma pessoa excepcionalmente sensivel e interessante. Quem mais se iria lembrar de inventar uma história dessas para contar a uma amiga num cenário tão perfeito como o que descreves? Continuas surpreendente nos teus finais!
Grande abraço e parabens

Kiau Liang disse...

Mais um menino perdido, na terra do nunca

kolm disse...

Jamias me esqueceria do "tocador de Flauta", e recordo-me perfeitamente do teu comentário, dai a "estória" da inpiração :-D

Volta sempre... que quiseres :-D

Bom fim de semana

Anabela disse...

Este post é digno da 5ª Dimensão...