domingo, abril 29, 2007

A Casa da Bruxa

Foi numa manhã de Abril que me voltei a lembrar de uma história de infância, a da casa da bruxa. O dia começou no cansaço de uma noite de insónia, embalada pelos gritos de uma mulher, uma prostituta que nem deve ter aceite o dinheiro, de tanto prazer que agradeceu aos céus. Afectava-me o desempenho do meu vizinho, que não precisava de pagar, mas que se recusava a dar de outra forma, a partilhar um pouco que fosse do seu dom.
Acordei cedo e lutei para não me deixar ficar na cama, fugi em direcção a um sítio que queria visitar há anos. Demorei menos de uma hora a chegar ao fim da estrada, o resto tinha de ser feito a pé, uma coragem que estranhei, perguntando a mim mesmo porque é que não estava deitado, sorrindo com os cumprimentos matinais que tinha recebido na estação de serviço. Andei pelo meio das árvores até chegar ao cimo de um caminho feito de pedras arredondadas, uns degraus muito gastos serviam de porta de entrada ao miradouro e subi-os dois a dois até ficar cego com o Sol da manhã, antes de conseguir ver a paisagem que me tinham prometido. Jurei a mim mesmo que dali conseguia ver o mundo inteiro e que no dia em que conseguisse voar, seria do alto daquelas pedras que saltaria para o vazio. Um sonho antigo.
Meti-me outra vez à estrada, com outro desejo escondido no sorriso, tinha de deitar fora a ansiedade que me acompanhava nas últimas semanas. Em Abril a minha praia ainda devia estar quase deserta, apenas visitada por doidos e mães divorciadas, acompanhadas por pequenas miúdas de cabelos dourados, que se afastavam para poder brincar.
Deve ter sido a música, só pode ter sido a música que me distraiu, no repetir exagerado, chorando e rindo em partes que sabia de cor. Dei por mim numa estrada desconhecida, com placas que indicavam o destino traçado, mas sem conhecer as casas por que passava, sem saber para que lado a estrada seguia, depois de cada curva feita devagar. Continuei a cantar, voltando sempre ao início da música, sem me preocupar, sabendo que mais cedo ou mais tarde havia de chegar.
Mal vi a casa percebi que já ali tinha estado, era o caminho antigo feito pelos meus avós, antes das auto-estradas, antes de viajarmos sem olhar. Nesses tempos sentia sempre um arrepio na espinha, um medo que demorava, uma vontade de me benzer à qual não cedia, por ter medo que Deus se zangasse, por ter medo que a bruxa estivesse à janela, distribuindo maldições aos que se atrevessem a rezar. Tive de parar.
A casa da bruxa estava na mesma, com os azulejos castanhos e o alpendre cheio de enormes potes de barro. Quando era miúdo só pensava na bruxa, no mal que ela me podia fazer, nunca pensei no bizarro de toda aquela história, uma bruxa que vivia numa casa à beira da estrada, uma casa que não parecia assombrada, que não estava no meio de um bosque sombrio. Nunca me tinha importado com a falta de um ambiente sinistro, sem deixar adivinhar o que estava por trás. Só naquela manhã de Abril decidi que não podia ficar sem saber, que tinha de descobrir o porquê da fama da mulher, que eu nem sabia se existia.
Aproximei-me da porta nervoso, tinham sido muitos anos de virar os olhos, de contar até mil para não pensar em mais nada. A primeira surpresa veio com o toque da campainha, feita de cantos de pássaros, rouxinóis e canários, que não foram suficientes para soltar o riso, para deixar de sentir o medo. A porta abriu-se sem perguntas, ao mesmo tempo que percebi que estava uma chave do lado de fora, um convite que não me deixava descansado, na confusão da simpatia, com uma armadilha montada.
Uma voz chegou até mim, sincera como os olhos da rapariga que apareceu à minha frente.
- Bom-dia, posso ajudá-lo?
Respondi ao mesmo tempo que dei um passo atrás, num gesto automático que não consegui evitar.
- Bom-dia, eu vi que vendem potes e queria...
O olhar da rapariga desarmou-me, mas falou sem parecer zangada.
- Nunca tirei a placa, nunca tive coragem para a tirar. Acho que é uma forma de dizer que estou em casa, uma forma de não me sentir sozinha.
Fiquei a olhar para ela sem conseguir dizer nada. Ela continuou a falar de forma despreocupada.
- Não me estou a queixar, não estou a dizer que me sinto sozinha, não é isso. Estava só a dizer que os potes me fazem companhia, me trazem boas recordações, recordações que não quero esquecer.
No meio da surpresa pelas palavras dela, não consegui evitar a pergunta.
- Mas esta, mas esta não é a casa da bruxa?
A rapariga parou um segundo, ficou completamente imobilizada, antes de rebentar numa gargalhada, um riso que me irritou, ao mesmo tempo que me prendeu. Ela demorou um pouco a recompor-se. Falou ainda no meio de pequenos ataques de riso.
- Ai, não posso, desculpa mas não estava à espera disto. A casa da bruxa? Ai, ai, que eu não aguento.
Esperei mudo pela explicação. Ela esforçava-se por parar de rir, um riso contagioso que me magoava cada vez menos. Devia ser um pouco mais nova do que eu e era muito bonita, o que eu tinha demorado a perceber, por estar à espera de uma bruxa. Ela continuou mais calma.
- Ai, desculpa. Não sei o que me deu. A casa da bruxa? Tu deves estar a falar da bruxa da serra. Sim, é verdade, agora que penso nisso, acho que as casas são parecidas, mas isso fica um pouco longe daqui.
Percebi o meu erro, tinha sido por causa da música.
- Desculpe... desculpa, acho que vinha distraído. E de repente vi a casa.
- E?
A pergunta trouxe um ar curioso, com pequenas rugas nos olhos.
- É que quando eu era pequeno tinha muito medo de passar aqui.
- Na outra casa, queres tu dizer.
- Sim, na outra casa, tinha muito medo de passar perto da outra casa. E hoje o dia começou tão bem, depois de uma noite tão má, que eu... eu nem sei porque parei. Acho que tinha esta dúvida desde sempre.
Ela sorriu, mostrando-me que percebia.
- Às vezes é preciso voltar um pouco atrás, não é?
O meu ar de dúvida não a fez parar.
- Às vezes sentimos que temos de resolver o passado para seguir em frente.
Concordei, sem nunca ter pensado no que era óbvio, no que me prendia.
- Sim, acho que sim.
Ela fechou a porta atrás dela, não para se proteger, apenas por hábito. Sentou-se nas escadas do alpendre e puxou-me uma das mãos.
- Sabes, eu não tenho a certeza que tenha de ser assim.
Sentei-me ao lado dela, num conforto que me fazia sentir bem.
- O voltar atrás?
- Sim, mas eu tenho a resposta na mesma.
- A resposta?
O ar dela era triunfante, como um miúdo pequeno quando sabe um segredo.
- A história da bruxa, a minha mãe uma vez falou-me nela, quando passámos pela casa, embora ache que ela não tenha reparado na semelhança com a nossa.
Esperou um pouco para dominar outra vez o riso. Fez um ar sério antes de falar.
- É uma história simples, uma história triste.
A ansiedade tomou conta de mim.
- Havia mesmo uma bruxa?
- Uma pobre mulher, que numa brincadeira, numa festa, fez algumas adivinhas.
- Adivinhas?
- Sim, acho que se pôs a adivinhar o futuro de todos os que estavam na festa. Não sei porque fez isso.
- E?
- Não sei bem o que aconteceu, a minha mãe também não sabia, mas acho que deve ter acertado em alguma coisa, algo que veio a acontecer a uma das pessoas.
Imaginei a festa, vi todos à volta da senhora, imaginei os olhares apreensivos e as conversas em voz baixa. Mesmo sem saber, percebi que o que a mulher adivinhou não tinha sido agradável. Perguntei com medo da resposta.
- Sabes o que é que ela previu? Não deve ter sido nada de muito bom.
Ela concordou.
- Sim, não deve ter sido. Mas não sei, só sei que foi uma brincadeira que mudou a vida da mulher.
- Porquê?
- Não sei os pormenores, a minha mãe só sabia da história porque havia uma senhora que trabalhou aqui connosco que era de lá, que tinha família para esses lados. Só sei que ela e o marido tiveram de se mudar.
- Foram embora?
- Sim.
Voltei às viagens com os meus avós, às centenas de vezes que passei pela casa que me assustava.
- Então, quando eu passava na estrada...
Ela percebeu.
- Sim, não estava lá ninguém, só uma história que se espalhou, uma história triste. Desculpa, quando perguntaste pela bruxa só me deu para rir, não pensei logo nisto. Lembro-me do dia em que a minha mãe me contou, lembro-me de nesse dia ter vindo para casa a pensar como é que tinha sido o resto da vida daquela mulher.
Fiquei um pouco calado, tentando arrumar recordações antigas.
- Bolas, que história! Uma coisa tão simples e uma marca que ficou para sempre.
Ela apenas fechou os olhos, sem precisar de responder. Não senti a obrigação de fazer conversa, mas falei na mesma, deixei as palavras saírem sem pensar.
- E tu? Vendes potes?
Ela riu-se de uma forma que me fez tremer.
- Não, eram da minha mãe. Ela e o meu pai foram viver para o norte, para ficarem mais perto dos meus avós.
- E tu ficaste?
- Eu estive a estudar fora, tinha acabado de voltar e decidir ficar, muitas das coisas que mais amo estão perto daqui. Na altura tinha imensos planos para mudar a casa, mas foi sempre assim que a conheci e ainda não decidi arriscar, um dia deste tenho de pensar nisso outra vez.
- E nunca vem cá ninguém tentar comprar nada?
- Não. Estranho não é? Mas pessoas a fazer perguntas sobre bruxas, isso é quase todos os dias.
O riso voltou e o final da manhã ficou perfeito. Ela fez um ar arrependido antes de continuar, um pequeno sorriso que eu tentei decorar.
- Eu sou a Raquel, queres entrar?
Lembrei-me que ia a caminho da minha praia.
- Eu sou o Rui e adorava entrar, mas...
- Mas...
- Eu ia a caminho de um sítio, é um sítio secreto, onde nunca levei ninguém.
Ela esperou que eu continuasse.
- Queres ir comigo?
- Nunca lá levaste ninguém?
Sorri envergonhado.
- Não.
Ela devolveu o sorriso.
- Sim Rui, quero ir.
Foi nessa manhã de Abril, uma manhã de caminhos trocados, de músicas repetidas, de segredos partilhados, foi nessa manhã que me voltei a lembrar da casa da bruxa, um medo de pequeno que se transformou, mas que nunca esqueci.

domingo, abril 08, 2007

Fugir

Sentada na areia Joana esperava, de olhos no mar, de pele beijada pelo vento, de mãos em contar infinito, da areia que escorria. O barulho de passos não calou os lábios secos, no dizer de um poema. João esperou um pouco antes de falar.
- Eras capaz de repetir isso para sempre, não eras?
Joana não respondeu logo, não precisava de responder. Sentia a cara quente por causa do Sol, imaginava a marca do dia seguinte, mas resistia a mexer-se. A praia estava quase deserta, mas em breve deixaria de ser sua, até ao Outono, até aos últimos dias de Setembro.
- Viste o teu pai?
João respondeu, entre os dedos fechados sobre a boca.
- Foi esquisito.
O mar desapareceu.
- Esquisito como?
- Eu estava sentado no café e vi-o ao longe.
Parecia que escolhia as palavras.
- Eu sei que parece impossível, mas acho que nunca tinha observado o meu pai ao longe, como quando olhamos outra pessoa, um desconhecido qualquer.
- E o que viste?
- Vi um homem cansado, de aspecto frágil. Vi um homem velho, de pernas magras, de cabelos brancos e olhar triste, desorientado. Sabes, ali no meio do centro comercial, entre centenas de desconhecidos, acho que olhei para ele como não fazia há muitos anos. Doeu muito Joana.
Ela hesitou, na história que queria contar, sem saber se conseguia.
- Alguma vez te contei da vez que o meu pai desapareceu?
- Não, acho que não deves ter contado, sou eu que estou sempre a falar do meu.
Joana inspirou fundo antes de começar.
- Quando o meu pai fez trinta e oito anos, no dia em que fez trinta e oito anos, a minha mãe deixou-o dormir até tarde, ele gostava de dormir de manhã. Nesse dia ela pediu-me para o acordar para o almoço, lembro-me como se fosse hoje, de ter subido as escadas depressa, de levar um beijo preparado, um abraço desejado, que me protegia, que me fazia sentir segura. Mas encontrei uma cama vazia.
- Como assim?
- Em cima da cama estava um papel, uma mensagem com poucas palavras, que dizia para não nos preocuparmos, que apenas nos dizia para não nos preocuparmos.
- Mas... onde? E a tua mãe?
A recordação do momento era dolorosa, mesmo depois de compreender, era sempre dolorosa.
- A minha mãe? A minha mãe estava na cozinha, lembro-me que estava a pôr um bolo no forno quando entrei aos gritos, era um bolo de chocolate, daqueles que eu nunca vou conseguir fazer.
- Mas e ela?
João percebeu a dor, misturada no meio de sorrisos.
- Ela ficou calada uns minutos, depois continuou a preparar a festa, que ambas sabíamos já não ir acontecer.
Fez uma pausa antes de continuar. João não a apressou.
- Voltou uma semana depois, exausto, com a barba por fazer. Trazia pequenas folhas presas no meio do cabelo, a roupa manchada de castanho e verde, e cheirava a flores.
- A flores?
- Sim, não deve ter tomado banho em toda aquela semana, e só cheirava a flores.
João imaginou o pai de Joana todo coberto de folhas, sentiu vontade de desaparecer também.
- Ele não contou, pois não?
Ela sorriu.
- Não, nunca disse uma palavra sobre o assunto.
- E a tua mãe?
Os olhos de Joana abriram-se muito. Uma vez João pedira-lhe para tirar os óculos escuros, para ver a sua expressão, para poder ver através deles, para sentir as histórias que contava. Desde esse dia, desde esse primeiro pedido, era sempre a primeira coisa que ela fazia quando estavam juntos, no meio de sorriso partilhados.
- João, se tu pudesses ter visto o brilho nos olhos dele, se o tivesses visto quando entrou em casa. Era impossível ter perguntado.
- Joana...
Ela sabia o que ele ia perguntar, esperou pelas palavras.
- Joana, eu vi o meu pai pela primeira vez, não foi? Eu hoje, quando o vi a andar sem ele saber, foi isso que estranhei, foi ter percebido que ele tem uma vida, para além de ser pai, de ser marido, de também ser filho. É isso que me estás a querer dizer, não é?
Como em tantas outras tardes, Joana ficou em silêncio, no prazer de poder esperar, de não ter pressa em responder.