domingo, dezembro 24, 2006

O Homem dos Dados

- Já ouviste falar no homem dos dados?
Sónia acordou de um sonho.
- Como?
João repetiu de forma paciente, sabia que ela estava longe.
- Estou a perguntar se já te falaram no homem dos dados.
- Dados? Não, nunca ouvi falar.
Puxou a cadeira à frente e olhou para a esplanada. Estava completamente cheia, como se não estivessem em Dezembro, como se não estivesse um dos dias mais frios do ano. Gostava de se sentar ali ao fim da tarde, de ver as pessoas a passar com sacos de compras. João tossiu.
- Desculpa, não te estou a prestar atenção, pois não?
Ele desculpou-a com o olhar.
- É um homem que costuma estar na Rua Augusta.
- E os dados? Porque é que o chamam assim? É algum jogo?
João gostava da forma como ela mudava de repente.
- Ele tem dois dados, mas não são dados normais, cada um tem dez lados, numerados de zero a nove.
- De zero a nove? Mas porquê?
A demora na resposta irritou-a, mas ela sabia que se dissesse alguma coisa ele ia demorar ainda mais.
- Ele lança um dado de cada vez, obtendo um número...
Sónia completou a frase.
- De zero a noventa e nove.
Ele confirmou.
- Sim, de zero a noventa e nove.
- Mas porquê, o que é que ele faz com os dados?
João puxou de um cigarro, agora que tinha a atenção dela, podia falar sem pressa, podia pensar as palavras. Só continuou quando o cigarro já ia a meio.
- A idade, ele diz-nos a idade com que vamos morrer.
Sónia voltou atrás no tempo, a passeios de mão dada, cheiros antigos e uma voz que estava sempre com ela.
- Lembras-te do meu avô?
Ele lembrava-se e esperou que ela continuasse.
- Ele tinha uma colecção de dados, não pensava nisto há anos. Ele costumava deixar-me tocar neles, admirar as diferentes formas e cores, mas... sabes, ele nunca me deixava lança-los. Nunca me explicou porquê.
- Tens saudades dele, não tens?
Ela esfregou os olhos.
- Sim, todos os dias.
Nenhum dos dois falou durante vários minutos. A noite não se distinguia da tarde e estava cada vez mais frio. Passou por eles um homem vestido de verde, que falava sozinho, que trazia com ele uma vara muito comprida, com uma lanterna antiga na ponta, uma lanterna de metal e vidro, com uma vela no interior. A luz parecia iluminar a rua inteira.
- João, ele... o homem dos dados...
- Sim?
- Ele não tem como falhar, ele... não tem queixas, pois não?
João não sabia porque é que a conseguia entender tão bem, porque é que entre eles era tudo tão simples.
- Sim, acho que tens razão, os que morrerem antes não vão reclamar, os que morrerem depois...
Ela interrompeu-o.
- Vão achar que ficam a ganhar.
- Exacto.
- Mas... só há um problema, quando os dados derem um número, quando...
Ele continuou, adivinhando a pergunta, que também já fora sua.
- Se uma pessoa já tiver passado a idade, é isso que estás a pensar?
- Sim, o que é que significa?
João sorriu, de olhos brilhantes, de quem sabe um segredo.
- Isso nunca aconteceu.
- Como?
- É o que as pessoas contam, que isso nunca aconteceu.
Sónia encheu peito de ar, ganhando coragem.
- João, leva-me lá! Eu quero saber.
Ele não estava à espera do pedido dela, há meses que evitava a Rua Augusta, um medo que não aceitava, fingindo não perceber.
- Tens a certeza?
- Sim, tenho.
- Então vamos, vamos ver se ele está lá.
Ao chegarem a meio da Rua Augusta descobriram o homem sentado no chão. Sónia não estranhou os modos rudes, a barba branca por fazer, o casaco habituado à rua. Não se importou com o cabelo despenteado, com os sapatos gastos, nem com as mãos sujas que lançavam os dados de cor púrpura.
- Quanto é preciso dar para ele lançar os dados?
- Uma moeda.
- Mas de quanto?
João repetiu.
- Uma moeda, ele só quer uma moeda.
- João, tu já alguma vez...
Não precisou de ouvir a resposta para saber.
- Não, nunca tive coragem, deixas-me ir primeiro?
- Claro, vai.
João avançou e deixou cair uma moeda num copo de plástico vazio. O homem lançou os dados um a um, sem olhar para ele, apanhando-os quase sem dar tempo para ver os números, para ver o futuro, revelado no chão de pedra. Setenta e cinco, um número grande, que primeiro pareceu suficiente, antes de começar a pensar. Voltou para perto de Sónia, que se tinha afastado um pouco.
- Então?
Ele sorriu nervoso.
- Não morro amanhã.
Ela não perguntou mais nada, dirigiu-se ao homem e estendeu a mão com uma moeda. Mas antes de a deixar cair, ele fez um movimento brusco, tapando o copo com uma das mãos. Olhou-a antes de falar.
- Para si não, eu não posso lançar os dados para a menina.
Sónia abriu a boca, num protesto que não conseguiu transformar em palavras. Lembrou-se do avô. Falou com um sorriso nos lábios.
- Então, vou ter de viver o resto da vida, sem saber?
O homem não respondeu e guardou os dados num bolso do casaco. Ela virou costas sem dizer mais nada, fechou os olhos e pensou em como era bom sentir o frio da noite. João esperava-a com um ar espantado.
- O que aconteceu?
Ela esperou um segundo antes de falar.
- Obrigado, obrigado por me teres trazido aqui.
- Mas eu, eu... não percebi o que se passou.
- Anda, vamos comer um gelado.
- Mas estamos em Dezembro.
Ela respondeu com um ar brincalhão.
- Tens medo do quê? Não disseste que não morrias amanhã?