quinta-feira, dezembro 22, 2005

Albert

Estava frio e Rui descia apressadamente a rua, queria chegar a casa rapidamente e sentar-se frente à televisão a jantar. Tinha tido um dia aborrecido e caminhava de olhos no chão ignorando tudo à sua volta. De repente ao virar uma esquina ouviu uma música, alguém desafiava o frio em troca de algumas moedas. Aproximou-se e descobriu um homem alto de barbas ruivas que tocava uma flauta de madeira ao mesmo tempo que agitava umas campainhas prateadas presas a uma das pernas. Tocava uma conhecida música de Natal, daquelas que fazem voltar aos tempos de criança e às noites sem dormir à espera das prendas debaixo da chaminé. Ficou um pouco a ouvir e aos poucos uma história começou a formar-se na sua cabeça, tinha a certeza que ia conseguir escrever alguma coisa inspirada no que estava a observar.
Então alguém a seu lado falou.
- Estás a pensar se lhe dás alguma coisa?
Olhou para ver quem estava a falar. Era uma rapariga que parecia ter mais ou menos a sua idade.
- Sim, estava a pensar se havia de deixar uma moeda, normalmente nunca dou nada.
- Eu percebo, ele chama-se Albert e fugiu há muitos anos do seu país por causa de um amor impossível.
- Como é que sabes isso?
- Costumo passar aqui todos os dias e ele foi-me contando.
- Foi-te contando?
- Sim, se quiseres ouvir ele conta-te a sua história.
Ficou calado durante um pouco.
- Acho que estás enganada, eu tenho a certeza que ele nasceu aqui e nunca saiu da cidade.
Antes de continuar tirou uma moeda do bolso e pô-la em cima do que parecia ser um gorro de lã amarrotado no chão.
- E tenho a certeza que não se chama Albert.
Ela sorriu e respondeu-lhe.
- Estou a estragar a tua história, não estou?
Olhou melhor para ela e reparou que tinha a pele muito branca e o cabelo de uma cor estranha. Não sabia bem porquê mas sentia-se confortável perto dela.
- Desculpa, é que ultimamente não tenho conseguido escrever e isto pareceu-me prometedor, mas como é que sabias que eu estava a imaginar uma história?
- Foi só um palpite.
Não podia deixar de pensar em quem era esta estranha que lhe lia os pensamentos.
- Não costumo ser assim tão transparente.
- Ou se calhar não costumam olhar para ti com atenção.
- Se calhar não.
Ela ficou calada durante algum tempo, como se estivesse a decidir se devia ou não dizer-lhe algo. Por fim falou.
- Tenho uma proposta a fazer-te.
- Diz.
- Se quiseres eu conto-te a história do Albert e tu podes usá-la.
Ficou surpreendido com a proposta dela e não respondeu. Ela pareceu ficar inquieta como o seu silêncio e falou muito depressa.
- Desculpa, não queria ofender-te. Eu não queria desvalorizar o que pensaste, eu...olha, esquece. De certeza que tens algo mais interessante para contar...e eu estou para aqui a meter-me onde não sou chamada.
Interrompeu-a.
- Eu não fiquei ofendido.
- A sério?
- Sim, a sério.
- Mas fizeste um ar...
Não pôde deixar de esboçar um sorriso perante o ar preocupado dela e respondeu calmamente.
- É que nunca me tinham oferecido uma história antes.
Ela pareceu ficar envergonhada e não olhou directamente para ele.
- Não tinha pensado nisto desta forma, mas também não é assim nada de especial.
- Claro que é. Estás a dar os teus sonhos, a compartilhá-los com uma pessoa que mal conheces, claro que é especial.
- Mas eu de certa maneira conheço-te.
Rui percebeu o que ela queria dizer.
- Porque o imaginaste?
Ela apenas acenou com a cabeça.
- Mas nunca me tinhas visto, pois não?
- Eu sou rápida.
Ele sorriu.
- Estou a ver que sim. Olha e se saíssemos do mundo dos sonhos e fossemos tomar alguma coisa? Conheço um café aqui perto que serve um chocolate quente muito bom.
Os olhos dela brilharam de forma inocente.
- Parece-me boa ideia.
- Então vamos.
E desceram a rua lado a lado. Rui já tinha esquecido os planos de ir para casa, o frio já não o incomodava tanto e pela primeira vez em meses não tinha medo do futuro. Não tinha medo das páginas brancas à sua frente e sabia que mais tarde ou mais cedo alguma coisa iria surgir, principalmente porque já não parecia tão importante.
Tinha só uma dúvida e falou.
- Importas-te que te faça uma pergunta?
- Claro que não.
- É uma coisa pequena, mas fiquei curioso.
- Não te justifiques tanto, podes perguntar.
- Onde é que foste buscar o nome Albert?
Ela riu e ele percebeu que ia ficar sem saber...

domingo, dezembro 11, 2005

Um Convite

Estávamos perto do Natal e as ruas estavam cheias de pessoas a fazerem compras. Eu não tinha ninguém, por isso não tinha prendas para comprar.
Sentei-me frente ao computador. Ainda tinha algumas horas de trabalho pela frente e mais valia começar em vez de estar a olhar para as vidas dos outros.
Estava sozinho na sala onde trabalhava, uma sala antiga de paredes brancas e quase sem decoração. Conseguia ouvir algumas pessoas nas salas do lado, mas tinha a certeza que faltava pouco tempo para o barulho do meu teclado ser o único no meio do silêncio da noite.
Como todos ficava triste nesta altura do ano, pensava no que se tinha transformado a minha vida, recordava o passado e fazia planos para o futuro.
De repente alguém entrou na porta por trás de mim e ouvi uma voz conhecida.
- Por acaso não tens um lápis que me emprestes?
Era a Maria, trabalhava na sala a seguir à minha e também costumava ficar até tarde. Não nos conhecíamos muito bem, mas às vezes encontrávamo-nos no café e ela sorria para mim.
- Um lápis?
- Sim, um lápis, acho que já deves ter visto um alguma vez.
Ela estava com um ar divertido e continuou.
- Mas tem de ser um lápis verdadeiro, dos antigos.
- Porquê?
- Porque gosto mais desses. Deixei o meu estojo em casa e agora não sei se consigo continuar a trabalhar.
Sorri por causa do que ela disse e abri uma gaveta de onde tirei um lápis preto e amarelo.
- Toma, espero que gostes deste, é o único que tenho.
Ela olhou para mim com um ar de dúvida e disse.
- Mas ainda não foi usado.
- Não, mas não te preocupes, não o estava a guardar para nenhuma ocasião especial.
- Obrigada, ainda o devolvo hoje, vais ficar até tarde?
- Sim, tenho muito que fazer.
- OK, então até logo.
Fiquei a vê-la a afastar-se e voltei-me para o ecrã à minha frente. Não tinha a menor das vontades de estar ali e recordei Natais passados e os serões em família. Tinham passado poucos anos, mas parecia tudo tão longe de mim. Afastei os pensamentos da minha cabeça e voltei ao trabalho.
Passaram pelo menos duas horas e ouvi outra vez alguém atrás de mim.
- Vim devolver o lápis, mas receio que não tenha sobrado muito dele.
Na mão trazia um lápis com menos de metade do tamanho do que aquele que lhe entregara.
- Estiveste entretida.
- Desculpa, não pensei que fosse escrever tanto.
Ela estava com um ar de quem tinha cometido um grande pecado e eu não pude deixar de achar piada. Achava-a muito bonita e não tinha bem a certeza porque é nunca a tinha tentado conhecer melhor.
- Queres tomar café?
- Isso quer dizer que não estás zangado por causa do lápis?
- Não, não estou zangado.
- Está bem, então aceito.
Levantei-me e dirigi-me à porta. Deixei-a passar primeiro e ela agradeceu baixando ligeiramente os olhos. Enquanto andava pelo corredor percebi que éramos os únicos em todo o andar.
Depois de tirar dois café e de lhe entregar um deles sentei-me no chão, era um hábito meu, ficar até tarde e beber café sentado no chão. Ela não pareceu importar-se, sentou-se ao meu lado encostada ao balcão de madeira e começou a falar.
- Então porque é que estás ainda aqui a esta hora?
- Já te disse que tenho muito trabalho.
- Sim, eu sei, mas qual é a verdadeira razão?
Não pensei antes de responder.
- Na verdade não tenho muita vontade de ir para casa.
- Ainda te custa muito?
- O quê?
- Estar sozinho.
Não respondi.
- Desculpa, não devia ter perguntado.
- Não faz mal, estava só a pensar...se me custa estar sozinho? Não tenho uma resposta simples para essa pergunta. Eu gosto de mim e gosto de estar comigo, mas suponho que ainda não me habituei.
- Mas já passou algum tempo, não passou?
- Já, mas...sei lá, acho que há alturas piores do que outras.
Não falámos durante uns minutos até que ela se levantou e deitou os copos vazios fora. Voltou a sentar-se mas desta vez frente a mim.
- Olhas sempre assim para todas as pessoas?
- Desculpa?
Ela repetiu.
- Se olhas sempre assim para as pessoas?
Eu sabia bem do que é que ela estava a falar.
- Assim como?
- Vá lá...tu sabes, como se estivesses a olhar cá para dentro.
Já me tinham chamado muitas vezes a atenção por causa da maneira como fixava as pessoas, mas nunca daquela maneira.
- Como é que a conversa veio parar aqui?
Ela sorriu.
- Isso não importa, não estás a responder à minha pergunta.
- Não sei o que queres que te diga. Acho que sim, ou se calhar só para algumas, incomoda-te?
- Pelo contrário, sinto-me especial.
- Por isso é que me costumas sorrir quando nos encontramos aqui?
Ela ficou a olhar para mim antes de responder.
- Julgava que não reparavas.
- Eu reparo em tudo, só que nem sempre tenho coragem...
Não consegui continuar.
- Mas tens coragem para olhar.
- Tens razão, mas eu não penso muito nisso.
Ela ficou outra vez a olhar para mim, como se estivesse a ganhar coragem para dizer alguma coisa. Por fim falou.
- Olha, tenho um convite para te fazer.
- Um convite?
Fiquei nervoso.
- Sim, um convite. Eu no final da semana vou para fora passar o Natal com a minha família, mas antes queria te convidar para um jantar em minha casa.
- Um jantar de Natal?
Ela riu.
- Sim, pode ser um jantar de Natal.
- Mas com prendas e tudo?
De repente corei muito, não era aquilo que queria dizer. Mas ela não se desmanchou e respondeu.
- Com prendas e tudo, mas não precisa de ser nada de especial.
Pensei logo num conjunto de lápis e comecei a fazer planos para os ir comprar logo no dia seguinte. Ela interrompeu os meus pensamentos.
- Mas aceitas?
- Desculpa, não disse que sim?
- Não.
- Mas pensei.
- Eu percebi pela tua cara, mas queria ouvir.
Corei outra vez.
- Sim, aceito.
Ela levantou-se e eu segui-a. Parámos à porta da sala dela e eu fiquei a olhar o chão, mas falei.
- Então quando é que é o jantar?
- Que tal depois de amanhã, podes?
- Posso.
- Então está combinado.
Ela olhou para a mesa dela e disse.
- Olha, vou-me embora, tu ficas?
- Acho que não, já não me lembro o que é que estava a fazer, mas não me parece que fosse alguma coisa importante. Vais para o metro?
- Vou.
- Eu faço-te companhia, deixa-me só desligar o computador e arrumar as coisas.
- Porque é que não deixas tudo como está?
- Não gosto de deixar tudo desarrumado.
- Se calhar está na altura de começares.
- Se calhar está...deixa-me só ir buscar o casaco.
- Eu espero.
Antes de desligar a luz olhei pela janela para as ruas vazias, não pareciam as mesmas ruas que observara umas horas antes...

sábado, dezembro 03, 2005

Vocês

A música toca vezes sem fim enquanto escrevo. É a música perfeita pois acaba onde começa e eu sonho em ouvi-la para sempre. Tento chamar a tristeza que me inspira mas não consigo sentir nada, apenas o vazio que ficou, que me acompanha sem me aconchegar. Caio no sofá e tento dormir um pouco, mais uma vez decido fugir da vida e volto ao princípio.


Vocês...

Não gosto deste sitio, não gosto do fumo do meu cigarro e dos desenhos que se formam por cima da minha cabeça. O café espera por mim e fica frio, sei que já não o vou beber e olho para a espuma creme que tapa o castanho escuro que suja a chávena. Aqui nunca há cinzeiros e hesito antes de deixar cair a cinza, tento não mexer o braço e aposto comigo próprio quanto tempo mais a mesa vai ficar limpa.
Na porta alguém olha para mim. Meio homem, meio mulher, uma figura vestida com roupas sem cor parece tentar decidir se deve ou não entrar. Eu baixo os olhos para a mesa preta e rezo para que não venha ter comigo, mas não rezo o suficiente.
Decido que é uma mulher e vejo-a caminhar em direcção a mim, tem a cara coberta de pequenas feridas recentes, como se tivesse apagado todos os cigarros que fuma no rosto já velho. Senta-se à minha frente e o cheiro é insuportável, tapo o nariz com uma das mãos e ordeno às pernas que me levem embora, mas elas não obedecem e eu fico a ouvir um discurso sem sentido. Não sei se a mulher está a falar para mim, não sei se alguém existe para além do seu mundo e pergunto-me porque é que não consigo ir embora. Ela olha-me nos olhos.
- Importa-se que beba este café? Já não vai bebê-lo pois não?
- Não, não vou, pode beber à vontade, mas já deve estar frio.
- Não importa, só quero recordar o sabor, eu bebia café há muitos anos atrás, mas suponho que você deva saber isso.
Não sei do que é que ela está a falar e continuo a não conseguir sair daqui.
- Sim, suponho que sim, não deve ter vivido sempre assim.
Ela sorri e continua a falar.
- Você já escreveu sobre nós. Já esteve perdido, não esteve?
- Já escrevi sobre vocês? Não percebo o que está a dizer, eu escrevo sobre muitas coisas.
Ela sabe que estou a mentir.
- Não tenha vergonha, nós não ficámos chateados e percebemos o que queria dizer. Era sobre esperança, não era?
Sinto as pernas tremer. Como é que ela sabe?
Acaba de beber o café e continua.
- Sabe? Eu já fui bonita, muito bonita e você esqueceu-se disso.
- Mas eu nunca a vi, como é que podia saber?
- Meu rapaz, você foi um de nós, devia saber que todos tivemos vidas.
- Mas eu só escrevi, eu só queria desabafar, só queria que alguém me ouvisse. Nunca quis ofender ninguém. Eu não a conheço, eu não conheço nenhum de vocês.
- Tenha calma, não ofendeu ninguém. Só se esqueceu que eu era muito bonita, só isso. E eu estou aqui para lhe lembrar isso.
Fico calado durante um pouco e tento pôr as ideias em ordem. Ela tem razão eu esqueci-me que ela tinha sido a rapariga mais bonita da cidade, não foi de propósito, mas esqueci-me.
De repente tudo parece diferente, já não sinto o cheiro dela, já não sinto repugnância em olhar para as suas feridas e agarro-lhe numa das mãos. Apesar de suja a pele é suave e eu aperto-a com força.
- Tem razão, eu esqueci-me. Estava tão concentrado em escrever sobre mim que me esqueci de vocês.
- Não faz mal, eu só achei que lhe devia lembrar. Assim pode ser que passe a olhar à sua volta de uma maneira diferente.
- Acha que consigo?
- Eu estou suja, mas não vejo tudo sujo à minha volta.
- Suponho que não...
- Não deixe de escrever e não se esqueça de nós.
Os olhos dela brilham e as lágrimas quase que caiem.
- Eu era mesmo muito bonita, não era?
- Sim, era a mais bonita de todas.
- Obrigado. E obrigado pelo café, tenho de ir embora, ainda tenho de ir tratar de umas coisas.
Fico a olhar para ela e desejo que tenha sorte.

segunda-feira, novembro 21, 2005

Queres dançar?

- Queres dançar?
Maria ficou muda de espanto, primeiro porque Manuel nunca se tinha dirigido a ela sem ser por você, depois porque era sua psicóloga e de repente sentia que a barreira que tinha de criar entre ela e todos os que acompanhava estava a ser quebrada.
- Dançar? Não nos devíamos antes concentrar no que estávamos a falar?
- Eu sei que este pedido não é muito normal, mas confesso que neste momento sinto que nenhuma conversa me pode ajudar mais do que dançar contigo.
Ele continuava a tratá-la por tu e isso desagradava-lhe ao mesmo tempo que secretamente sentia um certo alivio por não ter de manter o formalismo que sabia ser essencial nas consultas. Eram quase da mesma idade e ao principio, como em tantos outros casos, tinha tido de passar algum tempo a pôr Manuel no seu devido lugar. E depois de ele ter percebido como é que as coisas funcionavam nunca mais tinha tido nenhum tipo de problemas. Mas agora tinha e não sabia bem o que fazer, por um lado pensava numa das frases que já tinha preparadas para situações menos próprias, por outro tinha vontade de fazer tudo ao contrário, levantar-se e dançar. Sabia que não o podia fazer mas não deixava de pensar que o esforço de se manter afastada de todas as vidas que encontrava chegava a ser sufocante. Respondeu sem pensar.
- Mas não temos música.
- Eu consigo imaginar a música na cabeça.
- E tem alguma sugestão?
- Conheces uma música do Rufus Wainwright chamada 14th Street?
- Sim conheço, mas não achas...quero dizer, não acha que está a passar para além do razoável?
- Para falar a sério não estou a pensar em nada...queres dançar ou não? Vá lá, eu prometo que depois nunca mais falamos nisto. Acredita que eu não estou a desrespeitar tudo o que foi conseguido aqui, só quero um intervalo, um momento em que possamos deixar este registo sempre tão triste. Anda lá, quanto mais demoras mais estragas tudo...
Maria nem podia acreditar que se estava a levantar, que ia alinhar naquela loucura, que ia fazer algo contra tudo o que sabia ser certo. Era tarde demais, antes de ter tempo para voltar atrás Manuel pegou-lhe suavemente na mão, puxou-a contra si e começaram a dançar enquanto a música tocava nas suas cabeças.

Don't ever change, don't ever worry
Because I'm coming back home tomorrow
To 14th Street where I won't hurry
And where I'll learn how to save, not just borrow
And they'll be rainbows and we will finally know

Enquanto deslizavam pela sala pensava em muitas coisas, sabia que ele tinha prometido algo que não podia cumprir, sabia que aquela era a última vez que estava com Manuel e que se calhar esta era a maneira dele lhe dizer que estava pronto. Então encostou a cabeça no seu ombro e continuou a dançar.

quarta-feira, novembro 09, 2005

O Olhar

Dei por mim a recordar o passado. A lembrar-me da cara de todas as pessoas por quem passei, pequenos pedaços de memória que tento juntar num só pensamento...


Quando tento pensar em Praga sinto que não consigo dizer há quanto tempo é que tudo aconteceu, como se a memória daqueles dias fosse algo que tivesse escondido de mim próprio durante muito tempo. Agora olho para a carroça que passa devagar à minha frente e sou levado para longe. Vejo as figuras de pele escura e cabelo louro e lembro-me de alguém que um dia entrou na minha vida.


Praga

Era uma noite muito quente e eu descia lentamente uma rua da qual não sabia o nome numa cidade que parecia se esconder de mim. Tinha chegado há uma semana e resolvera tentar umas férias diferentes. Não levava indicações nenhumas sobre o que era normal visitar-se em Praga e esperava que a cidade se revelasse por si só, que me fosse mostrando o que lhe apetecesse, ficando completamente à mercê do seu humor.

Até àquele dia tudo tinha corrido bem, possivelmente estaria a falhar alguma coisa que não poderia deixar de ver, mas isso era compensado pelos pequenos segredos que me eram revelados todos os dias. Pequenas ruas com roupas de todas as cores penduradas, fontes escondidas com água fresca que eu não sabia se podia beber, mercados cheios de gente que sorria, eram apenas algumas das coisas que eu não teria visto se tivesse seguido o percurso normal apresentado a qualquer turista. E eu não queria ser um turista normal, queria ser um verdadeiro habitante daquela cidade, nem que fosse apenas por alguns dias.

Cheguei ao fim da rua e entrei numa praça que parecia ser muito antiga. Os edifícios rodeavam uma fonte cheia de personagens míticas que pareciam travar uma batalha épica, como se o destino do mundo estivesse ali retratado na pedra gasta pela água. Em todas as varandas existiam alguns vasos de flores que faziam com que aquele local sorrisse para quem nele entrasse e se deixasse acolher. Decidi descansar.


Ela

Sentei-me no chão e encostei-me à fonte, fechei um pouco os olhos e fiquei a ouvir o barulho da água e a pensar se a praça viria assinalada em todos os livros e guias que tentara não ler antes de começar a minha viagem, secretamente desejava que não.

Comecei a olhar para as pessoas que se encontravam à minha volta e reparei num grupo à minha direita. Eram ciganos, um povo sem pátria, mas sempre presente, um povo que tinha os mesmo traços rudes e belos em todo o lado, em todos os países onde viviam de forma despreocupada, como se fossem o último povo livre.

No meio de todos estes pensamentos reparei numa rapariga cigana que estava sentada no meio de outras mais novas. Tinha os olhos vendados e pareciam estar a jogar a algum jogo que eu não compreendia. As outras raparigas falavam e ela respondia a rir, um riso que fazia eco nos edifícios e que abafava o som da água que caía atrás de mim.

Levantei-me e cuidadosamente aproximei-me tentando perceber o que estavam a fazer. Estava agora a poucos metros delas e conseguia perceber que as raparigas mais novas faziam algum tipo de perguntas ou desafios que provocavam o riso da rapariga de olhos tapados. Desejava poder perceber as palavras exactas que diziam, mas ao mesmo tempo agradecia por isso não acontecer.

De repente ouviu-se uma voz e o grupo desfez-se. As raparigas correram em direcção a uma cigana mais velha que as chamava e deixaram a de olhos vendados sozinha no meio da praça. Para meu espanto, ela não retirou logo a venda dos olhos e deixou-se ficar sentada no chão, como se quisesse sentir os sons e os cheiros que a rodeavam. Estava cada vez mais seduzido pelo que via e voltei a sentar-me no chão ficando a olhar para a rapariga.


Nós

Não sei quanto tempo fiquei ali a observá-la. Os minutos passaram mais devagar e eu sonhei, sonhei que a conhecia e que vivíamos um amor impossível, sonhei com um olhar doce e com os olhos mais bonitos que alguma vez vi na vida. Fechei eu os meus olhos e vi duas vidas ligadas para sempre, algo que eu sentia ser possível embora não conseguisse explicar porquê. Sabia que se existisse alguém no mundo que me estivesse destinado tinha de ser ela, tinha de ser ela a única pessoa que me podia compreender, que me podia sentir, que me podia amar.

Corri. Fugi dali para fora antes de conseguir ver os olhos dela, como se isso acontecesse eu não me pudesse libertar mais, como se esse fosse um ponto de onde não haveria retorno. Corri o mais depressa que consegui por entre os prédios que não reconhecia, num mundo que não era o meu.

Por fim caí exausto e perguntei-me porque é que fugia, porque é que me afastava do que eu sentia ser tão importante. Não tinha resposta para nenhuma das questões que me assombravam, não sabia o que se estava a passar, não sabia porque é que algo tão simples me podia afectar daquela maneira. Senti que ia enlouquecer.

Voltei para trás. Demorei algum tempo a descobrir outra vez a praça no meio do que para mim era agora o mais complexo de todos os labirintos. Quando cheguei outra vez ao sitio de onde fugira olhei desesperadamente para todos os lados e percebi que o grupo de ciganos já não estava ali. O meu coração pareceu rebentar.

Dirigi-me para o sitio onde a rapariga estivera sentada e no chão uma venda esquecida marcava o local. Agarrei nela e ainda consegui sentir um ligeiro perfume, um cheiro que nunca mais esqueci, mesmo depois de ter desaparecido do pano que guardei, uma única lembrança do meu destino, um pequeno vislumbre do que deveria ter sido.


Eu

A carroça dos ciganos afasta-se de mim e eu sei que mantive tudo demasiado tempo afastado do meu pensamento, como se durante estes anos todos me tivesse convencido que de facto tinha sonhado e que nada tinha acontecido. Mas isso não é verdade, sei que foi a noite mais real de toda a minha vida e que o que senti foi verdadeiro.

Não entendo porque fugi, não sei porque é que tudo aconteceu assim e porque é que quase me esqueci. Só sei que no meio das recordações que trouxe de tantos sítios diferentes está algo que tenho vontade de voltar a tocar.

terça-feira, outubro 25, 2005

Sons

A noite cai e eu estou sentado numa esplanada a olhar as pessoas. O verão está a chegar ao fim e tento aproveitar os últimos dias de bom tempo. Tenho saudades do frio, mas hoje quero despedir-me das noites ao ar livre.

A maior parte das pessoas à minha volta estão a começar a jantar e o barulho de fundo das suas conversas aconchega-me enquanto a minha cabeça voa para longe do sitio onde estou. Recordo muitas noites, muitas companhias e sorrio ao lembrar-me de tudo o que me aconteceu nos últimos meses. Devia estar triste, devia estar melancólico, mas não consigo e estremeço ligeiramente ao recordar emoções que passaram mas que ainda me acompanham.

No meio do meu sonho sou despertado pelo som de uma guitarra a poucos metros de mim, alguém começa a cantar uma música e eu abro os olhos para observar o espectáculo que me é oferecido. À minha frente um rapaz com pouco mais de vinte anos toca energicamente abafando a sua própria voz rouca que canta músicas antigas. Apesar da pouca idade o rapaz tem uma expressão de quem já passou muito na vida, há qualquer coisa nele que nos faz acreditar que os poucos anos de vida que tem estão cheios de histórias que podemos adivinhar enquanto olhamos para a sua cara triste.

Estou tão concentrado a observar o rapaz que não reparo logo que a seu lado uma rapariga dança com umas fitas nas mãos com as quais desenha figuras imaginárias no ar. Tem um ar mais velho do que ele e uma cara pouco simpática, parece apenas interessada nos passos de dança que vai executando pelo meio das pessoas, passando com as fitas a poucos centímetros das cabeças de quem, como eu, observa aquele espectáculo de princípio de noite.

Deixo os meus pensamentos de lado e olho para os dois enquanto a música continua e eles trocam sinais mudos. Ela parece estar zangada com ele, como se ele não tocasse a música da maneira que ela quer, como se não houvesse uma sintonia perfeita entre os dois e isso tirasse brilho à sua dança. Vejo na cara dele um esforço para a acompanhar e um sorriso ligeiro na boca dela dá-me a perceber que ele é bem sucedido. E ficam assim a olhar um para o outro enquanto as fitas continuam a voar reflectidas nos olhos de todos os que olham para eles.

Por momentos tenho inveja, apesar de ver duas figuras frágeis e sujas tenho inveja da força que vejo entre os dois, da vontade de melhorar, da fuga do que é normal, do que é cansativo, da vontade de ser feliz, apenas esse desejo sem que mais alguma coisa importe.

Não percebo os meus sentimentos e a forma como eles invadem o meu mundo e tento encontrar algum defeito no que me atrai, no que me faz não conseguir deixar de olhar. Vejo outra vez duas pessoas de aspecto estranho, duas pessoas que a maior parte do tempo não têm um ar feliz, mas que olham entre si como se pudessem viver apenas da presença do outro.

A música acaba, ouvem-se algumas palmas e penso se outros como eu ficaram cativados por aquele par e pelas emoções que parecem sair do meio dos dois. Como se o verdadeiro espectáculo que apresentassem fossem os sorrisos quase imperceptíveis que trocam como que dizendo que estão unidos, que são um só.

A rapariga dirige-se à esplanada onde estou sentado e estende uma pequena caixa preta à espera de algumas moedas que paguem o seu esforço. Não posso deixar de reparar no seu ar pesado e pouco feliz e em como isso não faz sentido. Como é que a mesma pessoa consegue transmitir sensações tão diferentes? Como é que eu ao olhar para ela sinto ao mesmo tempo, inveja, repulsa, amor e tantos outros sentimentos contrários?

Então ela chega ao pé de mim e estica uma das mãos de forma envergonhada, não consigo ficar indiferente a tudo o que eles me fazem sentir e dou por mim a deixar algumas notas dentro da caixa cheia de moedas brilhantes. A rapariga olha para a caixa e começo por ver na cara dela uma expressão de espanto, logo seguida de um sorriso que aparece primeiro de forma tímida até se transformar e iluminar a noite toda e me fazer tremer.

Enquanto vejo os dois em direcção a outra esplanada relembro vezes sem fim aquele sorriso e o que ele me fez sentir. Penso mais uma vez na minha vida e quase que posso jurar que consigo ouvir música na minha cabeça, como se de repente todos os meus medos, todas as minhas ansiedade tivessem sido soprados para longe de mim. Sinto os olhos cheios de lágrimas e não quero que este momento acabe, quero poder estar em paz comigo mesmo para sempre, quero esquecer tudo o que passei neste verão que agora acaba, quero sorrir...

sexta-feira, outubro 21, 2005

Um dia

No carro do lado vejo um homem a cantar, não consigo ouvir a sua voz mas tenho a certeza que está a ouvir a mesma estação de rádio que eu. Os lábios dele acompanham o ritmo que ouço e fico a olhar para ele assistindo a um concerto invulgar.
Tenho vestido um casaco novo que decidi estrear esta manhã e sinto-me confiante, como um herói no seu fato de cores berrantes que percorre as ruas em defesa dos mais fracos sigo por entre o trânsito e a chuva. Mas o casaco é preto e o meu humor é instável, uma melancolia que me acompanha sempre ao mesmo tempo que observo o mundo e sinto os pequenos prazeres.
De repente ouço um estrondo e tudo fica escuro, parece que entro dentro de um sonho mas sei que estou acordado. Não compreendo o mundo à minha volta e o meu corpo parece que não tem peso, os meus sentidos transmitem-me sensações estranhas e diferentes e tento perceber o que aconteceu.
Imagens distorcidas começam a formar-se à minha frente e reparo que estou a flutuar, por baixo de mim o metal retorcido não me deixa muitas dúvidas, mas não tenho explicação para o meu estado e procuro por mim no meio da confusão e das luzes que me ferem os olhos. Dentro do sonho adormeço.

Estou deitado numa cama de lençóis brancos com máquinas estranhas à volta, tenho uma expressão serena na face, mas desconfio do que vejo. Tenho a certeza que a dor deve ser insuportável e subo em direcção ao tecto, tento afastar-me do meu corpo e recuso-me a aceitar que sou eu que estou ali deitado, que estou a observar a minha própria vida neste momento.
Sinto uma mão na minha e olho para dedos transparentes que deixam passar a luz que entra pela janela. Uma figura conhecida está sentada ao lado da cama e percebo que estou vivo, que ainda estou ligado à figura frágil deitada na cama, um corpo sem alma mas que vive.
Tenho medo, sei que devo voltar, mas tenho medo. Aqui estou em segurança, mas não sinto nada, não sinto alegria, não sinto tristeza, apenas observo e penso em quem sou. Não sei onde estou, mas sinto-me sozinho, sinto que nada faz sentido, mas não tenho coragem de enfrentar a realidade.
Por fim desisto e desço devagar, toco com a mão na minha e tenho apenas um segundo de hesitação antes de entrar dentro de mim. Nunca senti uma dor tão grande, mas sei que não podia ser de outra maneira, pela primeira vez na vida enfrento todos os meus medos e vivo, vivo de forma frágil, mas sinto, sinto dor e alegria, sinto a calma pela qual ansiei desde sempre.

Estou parado num semáforo e reparo que estou no cruzamento onde tudo aconteceu, não fico assustado mas não resisto a tentar recordar o que não vi. A meu lado uma rapariga canta de janela aberta e acompanha o fim de tarde, fecho os olhos por um segundo e sinto o cheiro da minha pele misturado com o dos carros que passam. Quase consigo sentir que o tempo não passou e quando a luz fica verde, arranco e sigo como se nunca tivesse estado ali, como se nada tivesse acontecido.

Tudo mudou, mas sou o mesmo...

quinta-feira, setembro 22, 2005

Tic-Tac

Tenho os olhos fechados e vejo um grupo de crianças que fazem uma roda à volta de uma árvore. Um relógio marca o ritmo e respiro com dificuldade, é um som que me vai acompanhar para sempre, que me vai perseguir até ser grande.

Penso no que me terá levado de volta ao passado, aos sonhos mais antigos e mais escondidos de uma criança que ainda habita em mim. Foi o meu primeiro medo, o meu primeiro prazer...sempre que ouço os segundos a passar.

segunda-feira, setembro 19, 2005

O Principio e o Fim

De repente chego ao fim do mundo e encontro-me, sei que não vale a pena pensar no que fiz até hoje, sei que nada do que ficou para trás pode ser mudado. Então abro os braços e grito, chamo por mim na escuridão da noite e sonho, sonho em ser feliz...

sábado, setembro 17, 2005

Treze

Volto, volto porque na verdade nunca fui embora. E embalado pelo perfume que sinto mais próximo desço as escadas sem olhar para os degraus que piso, pedras alisadas pelo tempo e por todos que aqui passaram antes de mim.

Lembro-me do dia anterior e das lágrimas que correram pela minha cara enquanto guiava para longe de ti, enquanto me afastava do que me fez sofrer. Hoje o ar fresco ajuda-me a esquecer e continuo a olhar para a cidade que nunca se vai embora, para os prédios antigos que brilham ao fim do dia com os seus vasos de flores coloridas.


Dois

Carlos era um miúdo diferente e desde muito novo que tinha um olhar estranho, como se conseguisse ver mais do que os outros, como se aqueles enormes olhos verdes pudessem olhar para dentro de cada pessoa, vasculhar as nossas almas e saber quem somos.

Luísa tinha uma pele muito branca e umas mãos com dedos compridos que tocavam de forma gentil em tudo. Sentir aquelas mãos de criança desarmava qualquer um, como se nunca ninguém tivesse sentido nada igual, um conforto que invadia todo o corpo, um pequeno medo que se sentia e uma calma que perdurava durante horas.


Encontro

Carlos e Luísa encontraram-se por acaso, uma rua deserta de Lisboa, umas escadas velhas que subiam e desciam, dois olhares perdidos que se encontraram, um toque ligeiro de mãos enquanto passavam um pelo outro. Tinham apenas treze anos e aquele momento duraria para sempre.


Carlos

Carlos olhava para aquela rapariga parada à sua frente que parecia esperar por algo, não sabia bem porque parara, mas ali estava naquele final de tarde a olhar para alguém que não conhecia, mas que compreendia, a olhar para as mãos que tocara ao de leve e que ainda sentia na sua pele, como se tivesse ficado marcado e ficasse para sempre preso àquele lugar.


Luísa

Luísa não conseguia afastar o seu olhar daquele rapaz que olhava as suas mãos, sentia-se presa, sentia-se enfeitiçada, sentia-se aconchegada. E imaginava-se para sempre envolta naquele abraço invisível que não sabia explicar, mas que sabia bem e que fazia doer.


A Eternidade

Durante longos minutos ficaram como estátuas à frente um do outro sem que uma única palavra fosse dita, sem que um som pequeno que fosse saísse das suas bocas que no entanto sorriam levemente. Apenas gozavam o momento, o tempo não passava e a despreocupação própria da idade misturava-se com a brisa que lhes fazia voar os cabelos.

Sentaram-se num degrau e continuaram calados a ver o sol que se punha por trás de um prédio pintado de branco e amarelo. As sombras estendiam-se no chão e quase lhes tocavam os pés enquanto fugiam, subiam os degraus e sentavam-se mais acima, como se não quisessem perder aquele pôr-do-sol, como se cada degrau em que se sentavam os ajudasse a prolongar aquela tarde.

Por momentos imaginaram uma escadaria infinita de onde pudessem ver o fim do dia para sempre, um mundo onde pudessem fugir da noite e nunca aparecessem as estrelas, um mundo onde a hora fosse sempre a mesma e nada mudasse, apenas uma visão perfeita na companhia de alguém que nos conhecia desde sempre.


Reencontro

Continuo a descer as escadas atrás de algo que não sei se ainda existe. Lembro-me mais uma vez da discussão que me fez sair de casa sem rumo, da noite passada a guiar debaixo de uma chuva que teimou em não me dar descanso, da manhã perdido no meio de ruas desconhecidas. Até regressar a este local que sempre me acompanhou, até voltar a descer as escadas que mudaram a minha vida, até voltar a sonhar contigo.

Pergunto-me se vinte anos depois seremos assim tão diferentes, pergunto-me onde estarão os dois miúdos que sentados nestes degraus viram a vida de uma maneira diferente e que sonharam juntos. Não quero ter de enfrentar esta vida que me abafa, quero voltar àquela tarde em que tudo fazia sentido.

E de repente a minha mão toca noutra, como é que pude não reparar em ti? Como é que mais uma vez te escondes neste sitio onde tudo é estranho? Abro bem os olhos e tento ver a rapariga que encontrei aqui pela primeira vez, um encontro tantas vezes repetido na minha cabeça, nos meus sonhos. Não é difícil, tu continuas a mesma, as mesmas mãos brancas e compridas, o mesmo toque mágico que me faz tremer.

E pela segunda vez na vida assistimos ao pôr-do-sol nestas escadas velhas que nos conhecem, neste sitio que vai ser sempre nosso e onde podemos sorrir sem ter de falar, onde nunca teremos idade e onde vou sempre amar-te...

quarta-feira, setembro 07, 2005

Folhas Estranhas

Ouço o barulho debaixo dos meus pés e sei que estou em casa, sei que voltei ao sitio que nunca esqueci e que trouxe sempre comigo. As minhas mãos sentem o desconforto de tocar no que me faz voltar atrás, no que me aconchega e me faz sonhar. Queria que o resto fosse tão simples, como uma recordação que escrevo enquanto a ouço numa canção.

domingo, setembro 04, 2005

Fuga

Corro pelo campo aberto sem olhar para trás com medo de descobrir se ainda estou a ser perseguido. Estou cansado mas continuo e imagens das últimas horas são recordadas na minha cabeça de forma aleatória, pequenos fragmentos que se misturam sem sentido, pois nada explica o que aconteceu.

Passo pelo meio das ervas secas e penso como seria bom poder passear neste local com tempo para apreciar cada pormenor, mas a minha vida está em perigo e corro o mais que posso, passo por árvores e pedras que parecem olhar para mim, que parecem poder sentir o meu medo.

De repente ouço o barulho de água a cair, mas não consigo perceber de onde vem. Tudo à minha volta é seco e velho e não esperava encontrar água nesta terra que um dia será um deserto. Mas o barulho continua a chegar aos meus ouvidos e penso se o cansaço terá alterado a minha percepção do mundo, penso se estarei a enlouquecer, se estarei perto do fim.

Distraído quase caio no abismo que se abre à minha frente, o que pensava ser o cimo de uma pequena elevação no terreno é na verdade o fim do caminho que percorro. Cheguei a um ponto em que não posso prosseguir nem voltar para trás, à minha frente abre-se um enorme vale que vejo desaparecer no horizonte, mas não encontro forma de descer para poder continuar a minha fuga.

Continuo a ouvir o barulho de água e penso de onde virá, sei que não tenho muito tempo e que devia procurar um caminho para descer, mas algo em mim diz-me que tenho de encontrar a origem do que me confunde, água nesta terra sem vida, nesta terra amaldiçoada onde tenho medo de morrer.

Continuo a correr mas já não tenho por onde escapar e procuro apenas algo que não devia existir. Durante algum tempo não vejo nada até que descubro o que não pensava ser possível, um enorme rio correu sempre a meu lado pelo meio da terra sem vida e cai numa enorme cascata sobre o vale.

Olho para baixo e sei que a altura é demasiado grande para alguém sobreviver, mas não posso voltar, seria apanhado rapidamente, seria julgado pelos crimes que não cometi, seria condenado apenas por ter estado onde ninguém podia estar, por ter olhado os segredos escondidos durante tantos séculos.

Mergulho, deixo cair-me ao lado da água que vejo embater com violência lá em baixo e não penso em nada. Fecho os olhos e sinto o ar na cara, sinto o corpo a rodopiar e por momentos é como se voasse, como se antes de bater na água fria que me espera pudesse subir em direcção ao céu e fugir do destino que aguarda pacientemente.

Sinto o choque em todos os pontos do meu corpo e o ar que enche os meus pulmões é expelido com violência. Quero nadar, mas não tenho forças, quero viver mas os meus braços e pernas dizem-me que não são capazes, não quero que este seja o fim mas sinto-me calmo, pelo menos não me apanharam, um triste consolo perto do fim. A escuridão começa a rodear-me e penso em coisas simples, penso na minha infância e nas tardes debaixo dos pinheiros, penso nas noites e no céu que me fazia sonhar.


Vida

Acordo. Não sei onde estou mas sei que estou vivo. Lembro-me vagamente de algo tocar a minha mão antes de perder os sentidos, antes de tudo ter ficado escuro. Foi um toque suave mas que me puxou para cima, que me trouxe de volta à vida.

Estou dentro do que parece ser uma pequena cabana de madeira e ouço o som de risos lá fora, embora saiba que não é possível tenho a certeza que são risos de crianças. O cheiro de comida entra pela porta aberta que deixa entrar o sol, que me deixa ver o verde das árvores. Estou noutro mundo, acho que voltei a nascer.

Deito a cabeça, respiro fundo e adormeço, sei que vou sonhar...

quarta-feira, agosto 31, 2005

Outro mundo

De volta ao mundo dos vivos pergunto o que se terá passado na minha ausência, pergunto onde estarão todos, agora que acordo deste sono que me dizem ter durado dois anos. Mas não foram anos de vazio, foram anos cheios de sonhos que agora não consigo encaixar no mundo real.

Passo os dias a escrever e a tentar separar o que se passou enquanto sonhava e as recordações do meu passado. Não é fácil e é sempre com tristeza que ouço alguém dizer que algo também não aconteceu, que foi tudo invenção da minha mente, um sonho demasiado longo e demasiado real.

Choro, choro porque queria continuar a sonhar, choro porque com o passar dos dias vou descobrindo que sou uma pessoa seca e desinteressante, descubro que todas as coisas boas que me aconteceram até hoje foram durante o tempo em que estive a dormir. Dois anos que pareceram cem e que me deixaram longe de mim próprio.

Abro a janela e olho para o céu azul, ainda me custa suportar a luz com os olhos que estiveram tanto tempo fechados e que viram outro mundo que me dizem não existir. E apago assim uma vida inteira? Apago uma vida que para mim foi mais real que esta que agora me é devolvida?

Recuso esquecer-me de mim e deito-me na cama, fecho os olhos e tento dormir para sempre...

sexta-feira, agosto 19, 2005

Tu

O sol desce devagar e eu penso em ti, penso se te lembras de mim nesta hora que sempre foi nossa, a hora em que olhávamos a cidade juntos e de mãos dadas caminhávamos para casa. Hoje estou sozinho e tenho saudades desse tempo em que éramos um só, quando nos misturávamos ao fim da tarde no mesmo corpo cansado mas feliz, quando sentíamos o amor que nos fazia sorrir, quando a noite teimava em não aparecer.

Agora consigo ver as estrelas que começam a brilhar e sei que em breve a escuridão vai descer sobre mim e terei de enfrentar mais uma vez a minha solidão. Tento agarrar os últimos raios de sol, tento que me aqueçam para poder conseguir passar a noite sem gritar por ti, sem sentir que nada mais importa.

E de repente estou debaixo do céu negro que brilha por cima dos meus olhos, que me chama e me diz para não ter medo, que me diz que no meio de todos aqueles pontos brilhantes também está o meu caminho, o meu futuro, o meu destino. Ouço uma música ao longe e respiro fundo, tento lembrar-me da tua cara, tento saber se exististe mesmo ou se foste apenas um sonho que me acompanhou toda a vida.

Chamo e ninguém responde mas sei que não estou sozinho, tenho o sol, tenho as estrelas, tenho-te a ti...

sexta-feira, agosto 12, 2005

Um rapaz normal

Era uma vez um rapaz que estava sempre a sorrir. Os seus pais não achavam esta situação normal e desde muito cedo que viviam preocupados com este comportamento que começara ainda o rapaz era bebé. Tinham a certeza que o sorriso que viam na cara do pequeno era ainda o primeiro que esboçara, um sorriso sem fim que o acompanhava durante todas as horas do dia e mesmo da noite, parecia que a sua pequena boca tinha sempre uma pequena expressão, algo que deixava perceber o sorriso sempre presente.

O rapaz foi crescendo e ninguém conseguia explicar a razão para tal fenómeno, desesperados os pais levaram o rapaz a todos os médicos, que ficavam espantados com o que viam, mas não encontravam nada de mal no rapaz. E ele continuava a sorrir. Era um sorriso aberto e bonito que por vezes se transformava num riso que enchia a casa e contagiava todos à sua volta com excepção dos pais, estes viviam cada vez mais em sofrimento e passavam os dias a olhar para aquela cara sorridente à espera que uma pequena queda ou outro percalço o fizesse perder a máscara alegre que já não suportavam. Mas mesmo nas alturas em que a dor estava presente o miúdo continuava a sorrir, parecia ser a única pessoa no mundo que conseguia chorar sem perder o sorriso.

Um dia ouviram falar num médico muito famoso, especialista no desenvolvimento de crianças e dirigiram-se à cidade onde este tinha o seu consultório para mais uma tentativa de cura para o seu filho. Sentiam sempre que podia ser este o médico que iria descobrir porque é que o rapaz não parava de sorrir, desejavam ver uma cara sem aquele maldito sorriso que não achavam normal.

Entraram numa sala decorada de forma alegre e observaram o médico à sua frente. Era um homem muito velho, com uma longa barba branca e umas mãos muito compridas, uma personagem algo bizarra que não inspirava muita confiança e que ainda por cima os recebeu com um enorme sorriso. Se não fosse pela educação teriam voltado para trás no momento em que olharam para o médico, tal tinha sido a má impressão que lhes tinha causado aquela figura sorridente.

Explicaram o problema ao médico que continuava a olhar para eles sem deixar de sorrir, parecia que achava piada a toda aquela situação, embora continuasse a acenar com a cabeça como que dizendo que estava a ouvir com atenção. Pediu para observar o rapaz e levou-o para uma sala ao lado onde não podiam ver o que estava a acontecer, ouviam apenas o médico a fazer algumas perguntas, que eram respondidas com a característica voz alegre do seu filho.

Voltaram para junto deles passado poucos minutos e o médico já não sorria, apresentando uma expressão grave e pensativa. Perguntaram com ansiedade o que é que ele achava, se havia uma cura para aquele problema. O médico olhou para eles e enquanto esboçava um enorme sorriso disse numa voz divertida.

- Não se preocupem, o vosso filho é um rapaz perfeitamente normal, está apenas feliz.

terça-feira, agosto 02, 2005

Tento viver

Sentado à tua frente olho para a tua cara e tento imaginar o que estás a pensar. Tu sorris descontraidamente enquanto olhas para a rua e para as pessoas que passam, observas e tentas descobrir o que pensam todos os que atravessam a praça em frente à nossa casa, um último andar no meio desta cidade antiga que nos esconde.

Penso no que deixámos para trás, na vida que tivemos de largar para estar juntos, penso nos amigos que não vamos ver mais, na família que já não é nossa, nas pequenas coisas que faziam parte do nosso dia-a-dia e que perdemos para sempre. Sofro por ti, por não saber se fiz bem em roubar-te ao teu mundo, em trazer-te para junto de mim, pois não sei o que é o amor e não consigo prometer que tudo vai estar bem para sempre.

Um pombo aterra na varanda onde estamos e olha para nós de forma estranha, como se pudesse sentir os sentimentos confusos no ar, como se pudesse sentir o amor, a saudade e a ansiedade que coexistem neste espaço. Quero ter a certeza que o nosso sonho vai ser suficiente para compensar o que deixámos, quero ter a certeza que estamos certos e que isto que sinto neste momento vai durar para sempre.

Olhas para mim e parece que consegues adivinhar o que te quero dizer, o que quero gritar para que todos ouçam. Estou apaixonado como nunca estive na vida, mas tenho as mesmas dúvidas de sempre, tenho medo do futuro, tenho medo de viver.

Chegas perto de mim e passas a tua mão no meu cabelo, conheces-me como ninguém e sabes que estou com a cabeça cheia de ideias que me fazem sofrer. Dizes que me amas e que tudo vai ficar bem, ofereces-me o teu colo e tentas sossegar-me como uma mãe faz com um filho assustado. Ouço as tuas palavras que me dizem que um dia vou ter de crescer, que um dia vou ter de enfrentar a vida de frente. Pergunto se não é isso que estou aqui a fazer contigo, se não foi o que fiz ao não ter olhado para trás. O teu olhar é terno e eu não preciso de respostas, sei tudo o que me podes dizer e levanto a cabeça para respirar o ar da manhã.

Olho também para a pequena praça e para todos os que caminham de forma apressada, toda a gente parece saber exactamente para onde quer ir, mas eu sei que não pode ser verdade, que os outros também têm de ter os mesmos medos, as mesmas angústias, que não posso ser o único.

Afasto-me de ti e dirijo-me para a porta da varanda, digo que vou dar uma volta e tu não dizes nada, ficas apenas a olhar para a rua com uma cara alegre. Desço as escadas de madeira enquanto penso em tudo e saio para a rua, saio para a praça que estava a observar e sei que tu lá de cima olhas para mim, sei que agora sou mais um que caminha como se soubesse para onde ir.

Sorrio por estar junto dos outros que minutos antes observava e percebo como estamos todos ligados, como somos todos iguais. Não tenho destino, mas ando de forma apressada e tenho de me conter para não olhar para trás e para o teu sorriso. Continuo a andar, continuo a tentar viver.

quinta-feira, julho 28, 2005

Serei sempre eu

De repente regresso ao passado e estou de volta ao bosque. Ando descontraidamente e olho para todos os lados com a curiosidade de quem é pequeno e para quem tudo é novo. Na mão levo um pau que é a minha espada e luto contra monstros gigantescos que saltam para a minha frente. Apesar da diferença de tamanho saio vencedor destas lutas impossíveis e avanço pelos terrenos mágicos que se estendem à minha frente.

Entro no reino perdido e caminho em direcção ao castelo, está sol e a tarde é infinita...

Repetições

De volta ao mundo dos sonhos sinto o estômago a contrair-se e vivo o que pensava não ser mais possível. Tento concentrar-me no mundo real mas a tua presença é forte e sinto mais uma vez que estou a viajar numa terra que já conheci. Vejo-te quando fecho os olhos, de cabelo apanhado a olhar para mim, a pedir que eu te ame, a pedir que eu não deixe de existir neste mundo estranho que a qualquer altura pode desaparecer. Pergunto porque é que tinhas de aparecer e complicar o que já não era simples, pergunto porque é que sinto o que sinto, porque é que sei o que pode acontecer sem saber quem és, sem saber onde estamos, sem saber porque é que me sinto em casa.

Caminho e olho para as imagens distorcidas à minha frente, um mundo que não faz sentido quando pensamos nele, um mundo que só existe enquanto acreditamos, um mundo que me traz a ansiedade de volta, que me faz voar e ter medo de cair. Quem és tu que aparece com diferentes caras à minha frente? Quem és tu que eu reconheço à primeira palavra? Grito, mas não ouço a minha voz, choro mas as lágrimas não correm e peço ajuda para enfrentar o futuro. Tento ter forças para resistir a este destino tantas vezes repetido, para lutar contra o doce embalo que me ofereces, para não desistir e descansar a cabeça num colo que me traz o carinho perdido e o conforto desejado.

Estou mais uma vez no meio da encruzilhada que conheço, tenho dois caminhos à minha frente e não sei por onde seguir. Sento-me encostado à única árvore que existe e adormeço. Sonho dentro de um sonho, sonho com a calma que queria que existisse na minha vida, com os pequenos prazeres que não consigo ter, com o vento na minha cara, com o perfume da erva debaixo de mim, com as sombras desenhadas no chão, com as nuvens brancas no céu...desejos repetidos tantas vezes e que escrevo para não me esquecer do caminho para casa.

segunda-feira, julho 25, 2005

Ao espelho

Olhas para o espelho e perguntas quem és, não te reconheces na imagem que vês e pensas quando é que a calma voltará. Os dias são mais compridos e só a noite traz algum conforto, a noite onde estavam todos os medos, agora única aliada na tua luta. E dormes. Dormes para não pensar no mundo que não compreendes e na vida que se divide em duas. Os sonhos levam-te a locais que não conheces mas onde te sentes bem.

Não te moves e fixas demoradamente o teu corpo reflectido no espelho, tens medo que um dia a imagem à tua frente ganhe vida e se separe de ti, tens medo de não existirem mais estes momentos infinitos em que os olhos olham os olhos e o tempo não passa. O teu corpo é também o meu corpo que espera por ti, que espera que desse lado não fujas, que espera poder ver-te todos os dias.

Toco com um dedo no vidro e olho para dois braços que se unem num único ponto. Não sei qual dos dois é real e pergunto se isso será realmente importante, pergunto se não podem existir duas vidas que são uma só e se observam com medo, com a ansiedade de não saberem quem são, com a alegria de nunca estarem sozinhas.

Olhas-me mais uma vez nos olhos e sorris, sorris para ver o meu sorriso e para poderes sentir que um dia tudo estará bem.

quinta-feira, julho 21, 2005

Quero

Sinto o peito rebentar de ansiedade e tudo à minha volta confunde-me os sentidos. Respiro fundo. Estou ligado a todas as coisas que existem e sei que pela primeira vez na vida sinto o mundo. Sinto toda a realidade de maneiras diferentes, ouço, vejo, cheiro, toco, saboreio. De braços abertos tento ser a água que corre no riacho, o pássaro que voa no alto, a árvore que tapa o sol. Quero estar vivo para sempre e nunca perder o que estou a sentir, quero sonhar acordado, quero dormir com um sorriso nos lábios...quero ser feliz.

quarta-feira, julho 20, 2005

Um dia cinzento (um sonho estranho)

Doem-me os olhos e sinto que estive longe durante muito tempo, sinto que não sei onde estou e que estou perdido no tempo. Sei que existo porque sinto, mas não sei que tipo de existência é esta em que vejo tudo a preto e branco. Toda a minha vida vivi aprisionado no meio de outros que partilhavam a minha sorte, apenas números e nunca nomes, apenas dor e nunca alegria, sempre o choro em vez do riso. Hoje consigo olhar para o passado sem temer o futuro e posso finalmente confrontar os meus fantasmas. Sento-me e tento escrever sobre a minha vida, sobre os anos em que vivi sem a luz do sol, sobre os anos em que não sabia quem era e tento pôr em palavras o que os meus olhos só conseguem ver no meio de imagens desfocadas, no meio de sonhos que me fazem acordar assustado.

A libertação deveria ter trazido a bondade ao meu mundo, mas as coisas não aconteceram assim. E ainda consigo ver-nos todos reunidos depois de anos fechados dentro de quatro paredes, as caras sérias que deviam sorrir e não questionar, a loucura que se tornara demasiado presente e que não podíamos largar. Então o caos, a negação do que sonháramos toda a vida, o negro renascido do negro. Consigo ver o primeiro movimento como se estivesse a acontecer à minha frente, a primeira mão levantada e todas as outras ligadas a ela. O fim de um sonho que demorou pouco tempo a transformar-se no maior dos pesadelos.

No meio de todo o frenesim estou escondido à procura de uma cara que não tenha os olhos fechados, procuro desesperadamente por alguém que tenha conseguido escapar a este destino infeliz, o de ver o sol apenas por um segundo e tapá-lo com as mãos negras de desespero. Mas existem outros como eu, outros que choram perdidos no meio da multidão enfurecida, outros que se libertaram de verdade e não querem ceder à loucura. Refugiamo-nos na sombra e desejamos que tudo acabe depressa. Vemos tudo a acontecer à nossa frente, do nosso esconderijo sem luz podemos olhar para o mundo a acabar sem podermos fazer nada que não seja rezar sem saber como, rezar para que tudo passe, para que tudo acabe.

Os olhos continuam a doer-me e luto para não parar de escrever, luto para me lembrar de todo o tempo em que estivemos agarrados uns aos outros sem saber o que nos ia acontecer, luto para não me esquecer de uma figura fraca que tentou juntar-se a nós, que suplicou por uns centímetros da nossa sombra protectora. Ainda consigo ouvir a resposta que veio através de um som seco e metálico ao meu lado, ainda consigo ver a forma frágil a ser projectada para trás, para o meio da luz das chamas. Naquele momento soube que se escapasse ao que parecia ser o fim deste novo mundo teria de vingar o que tinha acontecido e hoje sei que consegui, a nossa sombra não foi invadida, mas o mundo que começou naquele dia ficou livre do mal que se tinha infiltrado entre nós.

domingo, julho 10, 2005

Viagens

À beira da ruptura olho para os carros na rua e penso na vida, nunca me senti assim tão desorientado, sem saber para onde caminho. Sigo as luzes vermelhas que se afastam de mim, outras vidas que seguem para longe e apesar de não fumar puxo de um cigarro apenas para ver os efeitos do fumo que sobe em direcção às estrelas. Olho para cima mais uma vez como se daí pudesse vir algum auxilio, algo que explique o estado em que me encontro. Estou sozinho e nunca tive tanta gente à minha volta...

Sei que tenho tudo para ser feliz e que a angústia permanente não faz sentido. Procuro desesperadamente uma solução, um caminho que me faça viajar daqui para fora. Do alto da varanda, com o vento a bater-me na cara, continuo a olhar para as outras vidas que passam e saio de dentro de mim.


Viagem

Vítor estava cansado, guiava sem parar há duas horas e sentia-se a adormecer. A discussão com Clara tinha sido a pior de todas as que já tinham tido e não aguentara ficar em casa. Entrara no carro sem saber que destino levava, só sabia que tinha de sair, que precisava de pôr as ideias em ordem e pensar no seu futuro. Não conseguia continuar, tinha de parar.

Dentro do carro, numa rua desconhecida, continuava a ouvir a mesma música que o acompanhava há dias e desejou estar noutro sitio, desejou estar na praia com que sonhara há muitos anos e que ainda não tinha descoberto. Passado tanto tempo conseguia ainda lembrar-se de todos os pormenores desse sonho, o mais intenso que alguma vez tivera na vida e que lhe deixara uma vontade enorme de fugir, de abrir a porta de casa e sair, viajar pelo mundo, encontrar o sitio que sabia ser seu. Fechou os olhos e sonhou.


As ilhas

Rui sentiu o trem de aterragem tocar o chão com algum alivio, nunca apreciara especialmente viajar daquela forma, mas desta vez estava mais incomodado do que o costume. Talvez fosse pelo facto de nunca ter estado tanto tempo dentro de um avião, ou talvez fosse por ir ao encontro do seu destino, ao encontro dele próprio.

Mal saiu do avião sentiu que estava num sitio diferente, sentiu um ar quente e húmido que nunca tinha sentido antes. Todo o seu corpo parecia doer e por momentos fantasiou que estava noutro planeta onde as leis mais básicas da física não se aplicavam. Sabia que tinha finalmente chegado a casa...

Saiu do hotel e dirigiu-se à praia, caminhou descalço por entre as árvores estranhas até à areia branca e olhou para o mar azul. Não estava demasiado calor e uma brisa com um cheiro adocicado batia contra a sua cara, era capaz de ficar ali para sempre. Finalmente estava no sitio com que tinha sonhado toda a vida e que achava lhe ia trazer a solução para todas as perguntas sem resposta.

De repente ouviu um som, uma música, olhou para trás à procura de alguém mas a praia estava deserta. O único sitio de onde poderia vir era uma pequena igreja pintada de branco que tinha sido construída mesmo em cima da areia. Parecia bastante antiga e deslocada daquele sitio e quando fechou os olhos teve medo de não a voltar a ver, mas ela ainda estava à sua frente quando os voltou a abrir.

Entrou na velha igreja e sentiu que de alguma forma conhecia aquele sitio, a cor dos bancos, o chão irregular, as figuras que olhavam para ele, tinha certeza que já aqui tinha estado, por muito que isso fosse impossível. Era o seu sonho, sabia isso, mas tinha medo do que ia encontrar, tinha medo das respostas que procurava há tanto tempo.

Continuava a ouvir a música e agora tinha a certeza que era a mesma que ouvira anos atrás numa noite que nunca esquecera, era a mesma música que ouvia na sua cabeça sempre que precisava de ter a certeza de que existia, de que era uma pessoa real e não um sonho.

Apercebeu-se de repente que este era o último momento de dúvida, que era a última vez que poderia fazer certas perguntas, que a partir dali tudo seria diferente. Sentou-se num banco e tentou concentrar-se naquele momento único da sua vida, tentou memorizar todos os pormenores, tentou não esquecer-se de si próprio...


Noite

Continuo na varanda a olhar para o carro que parou à porta do meu prédio. Lembro-me de um sonho antigo e sei que todas as respostas estão dentro de mim, sei que só eu posso acabar com toda a ansiedade que sinto a cada momento. Olho para cima e choro uma última vez, choro porque sofro, choro porque ainda não consegui perceber que estranha música é esta que não me sai da cabeça.

E sonho, sonho que estou num local distante e que entendo...

quarta-feira, julho 06, 2005

Escrever

A Feira

Rui entrou numa casa muito velha atrás dos seus amigos. Era a noite perfeita para experimentarem todo o tipo de aventuras e a antiga feira era o local indicado para quem queria emoções fortes. À sua frente Vasco avançava muito devagar com medo do que podia estar atrás de cada esquina, Rui olhava para ele e pensava como era possível que o seu melhor amigo fosse casar daí a uma semana. Lembrava-se ainda de quando eram novos e passavam o dia a brincar no bosque perto da casa dos seus avós e agora estavam ali, a última vez que podiam estar juntos antes de tudo mudar. Sentia um pouco de ciúmes do seu amigo, embora também o invejasse por ter algo que nunca conseguira ter, por ter algo que também desejava.

A casa estava completamente abandonada ou assim queriam que parecesse, sabia bem o tipo de partidas que ia ter de enfrentar e não se preocupou muito. Desde cedo que era poucas vezes surpreendido e não ia ser diferente desta vez. Mas o sentimento não era partilhado pelos outros que gritavam no meio da confusão que se tinha instalado. Uma dúzia de rapazes que tinha voltado aos tempos em que eram livres, uma brincadeira de crianças num mundo de adultos que não sentiam ter crescido.

Saíram da casa entre risos e empurrões e olharam para a rua a tentarem decidir onde iriam a seguir, que divertimento esquecido iria ser experimentado uma última vez? A feira parecia mais abandonada do que nunca e parecia que tinha escolhido aquela noite para se despedir também de alguma coisa, para se despedir de tantas histórias passadas no meio daqueles muros e de casas com cores engraçadas. Seguiram para a tenda do circo.


O circo

A tenda do velho circo era enorme e ocupava uma grande parte do recinto da feira. Rui lembrava-se de assistir aos espectáculos de sábado à tarde com o seu avô enquanto comia algodão doce. Ainda conseguia ver os fatos brilhantes dos trapezistas e ouvir os leões que desafiavam o chicote do domador vestido de vermelho. Eram tempos sem preocupações e tinha saudades, tinha saudades de descer a rua de mão dada com o avô e contar as riscas coloridas da tenda. Chegava a dar uma volta inteira à tenda para contar quantas riscas de cores diferentes conseguia contar, nunca chegava ao fim com a mesma contagem.

Hoje o circo já não existia e apesar de não vir a este local há muito tempo sabia que lá dentro ainda se podia assistir a algum tipo de espectáculo, algo desfasado do tempo tinha a certeza e que ajudava a dar uma estranha mística a todo aquele local que parecia lutar para não desaparecer. Esta noite ele e os amigos tentavam que isso não acontecesse, tentavam gozar o mais possível numa só noite. O amanhã não importava.


As seis gémeas

Quando entraram deram de caras com uma visão bizarra. Dentro da tenda não existia nada, estavam apenas debaixo da lona e das luzes que estavam presas na parte de cima. As antigas bancadas de madeira tinham desaparecido, o que fazia com que o espaço parecesse muito maior, como se tudo à sua volta desafiasse a lógica e não combinasse com o que tinham observado de fora.

Mas não estavam sozinhos. No meio da tenda seis cavalos troteavam em circulo, tendo cada um deles por companhia uma rapariga vestida de preto e cabelos compridos. No meio uma senhora mais velha segurava um microfone e pedia para se aproximarem enquanto apresentava as irmãs. Seis gémeas idênticas que iam rodando à frente do grupo de amigos que não podia deixar de ficar de boca aberta perante tal visão.

Rui ia ouvindo os nomes das irmãs enquanto iam desfilando em cima dos cavalos, Marlene, Marta, Margarida, Madalena, Magda e Maria, um estranho conjunto de nomes para um estranho grupo. Eram perfeitamente iguais e por mais que tentasse não conseguia descobrir diferenças entre elas, parecia que estava a ver sempre a mesma imagem, uma rapariga de cabelos compridos, vestida de negro cavalgando em cima de um cavalo também ele negro. Era como se estivesse a ver um filme projectado à sua frente em câmara lenta.


A escolha

Todos sabiam que toda aquela encenação devia ter algum sentido, mas não tentavam sequer adivinhar que tipo de divertimento lhes iria ser proposto no meio de tão estranha visão. Então a mulher mais velha falou e pediu-lhes que se aproximassem. Disse-lhes para se posicionarem à volta do circulo pois uma escolha iria ser feita, uma escolha que iria mudar a vida de um deles. Ouviram-se risos, mas a mulher manteve uma expressão muito segura, como se soubesse alguma coisa que eles desconhecessem. Não deixava de ser uma cena assustadora e Rui sentiu um pequeno tremor a percorrer-lhe o corpo enquanto obedecia e se aproximava do meio da tenda.

A mulher continuou a falar e explicou que uma das irmãs iria escolher um deles e que essa escolha traria um novo caminho para o escolhido. Era uma situação cada vez mais estranha, ali estavam todos à volta de seis irmãs que olhavam-nos nos olhos e pareciam procurar um deles para fazer uma escolha que supostamente iria mudar uma vida. Noutra altura Rui teria rido de tudo aquilo, mas naquela noite não foi capaz. Tinha um pressentimento em relação a tudo e manteve-se calado a olhar.

Os cavalos andavam mais devagar e Rui olhava para as irmãs que iam passando, nem sequer sabia qual delas iria fazer a escolha. Mas de repente e sem saber bem como pareceu reparar num olhar de uma delas, parecia que sem o mostrar muito uma das raparigas olhava para ele de forma diferente cada vez que passava por ele. Não acreditava que ia ser o escolhido, seria possível? Não lhe apetecia muito ser alvo do gozo dos amigos e tentou desviar o olhar, mas não conseguiu deixar de olhar para a rapariga que agora conseguia distinguir perfeitamente entre as outras. Tudo parecia ser demasiado entranho e fechou os olhos à espera.


O escolhido

Os cavalos pararam e a mulher de pé disse que a escolha estava feita. Foi com um enorme nervosismo que Rui viu a rapariga que olhara para ele descer do cavalo e dirigir-se para o centro da tenda ficando ao lado da mulher que pareceu ter alguma coisa para dizer antes de anunciar o escolhido. E falou numa voz mais baixa, avisou que aquela escolha não devia ser desprezada nem levada pouco a sério, disse que o escolhido podia seguir o caminho que quisesse na sua vida, mas que ali naquela noite iria ser-lhe apresentada uma alternativa, que ele podia ou não escolher.

Era um discurso demasiado vago e todos estavam impacientes sem saberem o que ia acontecer. Então a rapariga, que a mulher anunciou como sendo Marta, saiu do centro e começou a dirigir-se para um dos rapazes. Foi com enorme espanto que Rui viu que, quando tudo indicava que iria ser o escolhido, ela caminhava lentamente em direcção a Vasco. Não entendia nada, um acontecimento como aquele tinha de fazer algum sentido e ele devia ser o escolhido, não Vasco, sentia isso. Para além do mais Vasco ia casar, tudo o que não precisava era de mais uma mudança na sua vida.

Deu por si a rir, no final aquilo era tudo uma brincadeira e estava a reagir como se o futuro de alguém pudesse ser modificado por aquela escolha. Todos riam enquanto Marta pegava na mão de um Vasco desconfiado e pedia-lhe para passear um pouco com ela fora da tenda. Mas apesar de rir com os outros Rui não estava completamente convencido da brincadeira e olhou para os dois enquanto saíam de mãos dadas da tenda. Pensou uma última vez que ele é que devia estar ali.


Medo

Nunca ninguém soube o que aconteceu a Vasco fora da tenda, mas todos assistiram à forma descontrolada como o encontraram alguns minutos depois, parecia que estivera a beber e chorava desesperadamente. Ao principio alguns pensaram que se tratasse de uma brincadeira, mais uma numa noite cheia de tantas partidas, mas rapidamente chegaram à conclusão que o estado do seu amigo era genuíno. Rui aproximou-se dele e tentou que se controlasse, era o seu maior amigo e tentou afastá-lo um pouco dos outros para perceber o que se passava.

Vasco chorava de tal forma que Rui apenas conseguia perceber algumas palavras no meio dos soluços e só ao fim de uns segundos começou a perceber e a juntar algumas das palavras que o seu amigo ia dizendo. Vasco dizia que tinha sido amaldiçoado, que estava perdido, que estava apaixonado. Não era possível, que espécie de feitiço tinha sido lançado sobre o seu amigo que lhe fizera perder a razão? Olhava para o lado procurando a rapariga, procurando alguma resposta que pudesse dar algum sentido ao que se estava a passar mas apenas conseguia ver as cinco irmãs. Como era possível que agora a achasse tão diferentes das outras?

Saiu da tenda com Vasco e percebeu que aos poucos o amigo ia ficando mais calmo, mas sem deixar de ter algo diferente no olhar, como se tivesse sido marcado de uma maneira que nunca iria esquecer. Perguntava-lhe de forma repetida o que é que ela lhe tinha feito, mas não conseguia uma resposta, só um olhar para o vazio. Pensou outra vez que devia ter sido ele o escolhido.


A encruzilhada

Ao fim de meia hora Vasco falou, mas nem tudo fez sentido. Disse que a sua vida ia mudar. Que ia casar com a mulher que sempre amara e ter muitos filhos, mas que não se ia esquecer daquela noite nunca. Que até ao dia em que morresse iria se lembrar de que a vida não é sempre o que parece e que quando certas escolhas nos são apresentadas em certas alturas podemos seguir por caminhos completamente diferentes. Levantou-se e antes de ir ter com o amigos voltou-se para Rui e disse-lhe, com os olhos cheios de lágrimas, que deveria ter sido ele o escolhido.


Acordar

Rui acordou às seis da manhã e a sua cabeça estava cheia de pensamentos confusos. Tivera o sonho mais estranho da sua vida e não conseguia perceber sequer se tudo o que lhe vinha à mente tinha ou não acontecido. Feira, tenda, cores, gémeas...tudo palavras e imagens que o assombravam e deixavam desorientado. O que é que este sonho significava? E quem era esta rapariga que amava mais do que a própria vida?

Levantou-se e um medo enorme apoderou-se dele, medo de esquecer, medo de não se lembrar dai a uns segundos de tudo o que tinha na cabeça. Sabia que era assim com os sonhos, que quando acorda uma pessoa consegue descrever tudo o que sonhou, mas que passados poucos momentos tudo se começa a desvanecer e quanto mais se pensa no sonho menos nítido ele fica.

Agarrou rapidamente numa caneta e começou a escrever. Começou por descrever todos pormenores que se lembrava do sonho sem ter muita atenção à ordem, apenas palavras soltas, nomes, sensações, tudo que o ajudasse a não esquecer o que tinha sonhado. Mas com o passar dos minutos uma história começou a ganhar forma. Sem perceber que o estava a fazer, começou a escrever palavras que podiam ser unidas e frases que faziam sentido, começou a pôr por escrito tudo o que se tinha passado, mas com se o estivesse a fazer imaginando tudo pela primeira vez.


Sonho

Neste novo sonho tudo estava presentes, ele, os amigos, a feira, o circo. Mas as cores da noite eram ligeiramente diferente, havia alguma coisa que distinguia esta noite da outra que tinha vivido. Era como se estivesse a reescrever o passado, como se pudesse mudar a vida de todos com que tinha sonhado.

Entrou na tenda mais uma vez e deparou com o mesmo espectáculo que já vira uma vez. Seis cavalos a trotear, seis raparigas de cabelos ao vento, uma ameaça no ar e o medo e a esperança de desta vez ser ele o escolhido. Estava nervoso, olhava outra vez para Marta e sem nenhum tipo de espanto percebeu que continuava a conseguir distingui-la das outras. Na verdade não era difícil, havia uma traço muito particular que a tornava diferente. Mas Rui não precisava disso, conseguia saber que era ela mesmo de olhos fechados, conseguia saber que era ela que se aproximava e abria os olhos apenas quando ela passava por ele.

Desta vez não havia escolha nem escolhido, apenas ficavam a assistir ao espectáculo e a todo aquele movimento que lhes brilhava nos olhos. Apenas ficava a olhar para alguém que sabia ir amar para o resto da sua vida, a sua princesa prometida, que o ia acompanhar para sempre naquele e no mundo real. O espectáculo terminava com o aplauso entusiasmado de todo o grupo. Olhava para Vasco e sorria por o ver tão bem disposto, um Vasco diferente do outro que entendera o significado de escolher, que percebera como a vida pode ser diferente.

No fim todos se juntaram e ele e os seus amigos cumprimentaram as irmãs pela sua actuação. Procurava por ela sem saber bem o que lhe dizer, sem saber como se apresentar. Tinha quase a certeza que desta vez ela voltara olhar para ele, mas sentia-se nervoso com tudo aquilo, até que sentiu o toque de uma mão na sua. Olhou para o lado e encontrou o sorriso que procurava. Falou.

- Tu és a Marta, não és?

domingo, julho 03, 2005

Passado

Olho para ti enquanto pões a mesa com cuidado e o meu pensamento voa para longe. Reparo nas tuas rugas e tento lembrar-me de como eras antes. Aqui neste momento parece difícil acreditar que vai fazer meio século que acordo perto de ti, que a primeira coisa que vejo todos os dias é o teu sorriso doce.

Fecho os olhos e vejo dois jovens apaixonados, vejo duas vidas ligadas para sempre, vejo as lágrimas, vejo os risos, vejo as manhãs, vejo as tardes. O teu cabelo negro voa e toca-me na cara, consigo senti-lo entre os meus dedos e sei que é tudo um sonho, mas não me importo, pois é um sonho que se tornou realidade e tu estás aqui comigo, desde sempre.

Sinto as tuas mãos nos meus ombros e perguntas-me no que estou a pensar...digo que estou a sonhar. Sorris e pareces a rapariga que conheci em tempos e que ainda está dentro de ti, dizes que eu nunca vou mudar, que vou sempre ser o mesmo rapaz pequeno com os olhos no céu, o mesmo miúdo de olhar distraído.

Amo-te...

segunda-feira, junho 27, 2005

Dois (outro adeus)

Os teus olhos reflectem a luz da lua cheia que sobe por cima das nossas cabeças, eu toco na tua cara e penso em nós, penso que passaram dez anos desde o nosso último encontro e que estamos diferentes, estamos mais velhos, mais cansados. Penso se ainda sabemos como sonhar, agora que o passar do tempo mudou as nossas feições e os nossos corpos. A tua mão na minha não parece a mesma, mas ainda consigo sentir o teu calor.

Tenho saudades do tempo em que a vida não era tão complicada, tenho saudades dos problemas que pareciam tão grandes, tenho saudades de ti. Sei que fomos nós que começamos a complicar tudo, sei que fomos nós que mudámos...

Recordo aquela tarde de verão e penso se podíamos ter feito as coisas de outra maneira, se era possível fugir da vida, se podíamos ter sido felizes. Hoje sinto-me mais velho e pergunto-me o que sentirás a olhar para mim. Pergunto se ainda vês o rapaz alegre que conheceste, se ainda me consegues sentir.

A lua continua a brilhar e lembra-nos que está igual, um desafio lançado do céu que nos faz baixar as cabeças com vergonha de nós próprios. Porque é que não podemos voltar atrás? Tudo é diferente. Já não sei se podemos voltar a sentir o que sentimos tantas vezes quando estávamos juntos, quando nos percebíamos.


Passado

O Sol brilha por cima de nós e o teu cabelo reflecte a luz. Sei que este momento vai acabar e que vamos ter de escolher, vamos ter de decidir como vai ser a nossa vida. Gostava de poder saber onde vou estar daqui a dez anos e olho para o verde dos teus olhos à procura de uma resposta.

Penso se termos de pensar tanto não é já uma resposta que nos faz sofrer, se não sabemos já o que vai acontecer e estamos só a adiar uma adeus que nenhum dos dois quer dizer. Aperto a minha boca contra a tua e sinto o coração a bater com força, o que estou a sentir não pode ser uma engano. Quero dizer que te amo, mas não consigo dizer uma única palavra.

Se fomos feitos um para o outro porque é que não podemos ficar juntos? Que mundo é este em que duas pessoas que se amam com todas as suas forças se separam sem uma única palavra? Quero ouvir-te dizer que me amas mas a tua boca está fechada junto à minha...


Hoje

Uma nuvem passa e de repente tudo fica negro, a noite é parecida com os sentimentos que se apoderam de nós, como o medo que o amor tenha ficado esquecido numa tarde longínqua. Quero beijar-te uma única vez mas não consigo ter coragem para tocar com os meus lábios nos teus, não tenho coragem mais uma vez e os meus olhos não choram apenas por vergonha, não choram porque têm medo de mostrar o que sentem, tem medo de dizer que te amo. E como eu te amo, como eu sofro por estas palavras que enchem a minha cabeça não terem saído da minha boca. E fico calado...

Estranhamente tu pareces calma, sinto o teu coração a bater apressadamente, consigo ouvi-lo como se fosse uma música que me diz o que eu quero tanto ouvir. Mas não dizes nada, ficas a olhar calmamente para a lua que brilha outra vez e não mostras que estás nervosa. Será que sabes o que eu não quero aceitar? Que só podemos viver num passado distante, que todo o nosso amor vai sempre fazer sentido, que não iremos ficar juntos para sempre.


Passado

Vejo-te a olhar para trás e ainda sinto o teu calor na minha mão, ainda sinto o teu cheiro no meu corpo e tento não esquecer este momento. Desenho na minha cabeça tu a olhares para mim parada no meio da rua, um sorriso suave que me diz que me amas, um adeus que eu não quero.

Caminho sozinho ao entardecer e imagino como será minha vida sem ti...

Uma estrela

Estou em cima de um telhado velho deitado a olhar para o céu. Não tenho idade e sinto que posso ficar aqui para sempre. Penso nos desenhos que se vão formando na minha cabeça e sei que é mais fácil imaginar formas nas nuvens brancas do que no meio da noite escura. A noite só brilha para quem levanta os olhos e vê, a noite só faz companhia a quem presta atenção, a quem rouba tempo às estrelas.

Abro os braços para abraçar o mundo e sinto as mãos a tremer ligeiramente com a emoção que sinto por estar ligado a todos os pequenos pontos que estão por cima de mim. Não acredito nas estrelas mas elas olham para mim todos os dias, elas olham por mim com a paciência de uma mãe que abraça os filhos pequenos até eles se esquecerem que existiram uma vez.

Quero poder olhar outra vez, quero poder ver, quero poder sentir. Quero deixar de ter os olhos fechados debaixo do céu que sempre me acompanhou e que vai sempre estar ali. E um dia outros irão olhar para cima e sentir outra vez a emoção que sinto hoje, o vento na cara, a camisola quente, o conforto de estar sozinho debaixo do vazio...

quinta-feira, junho 16, 2005

A Casa

Enquanto o táxi segue em alta velocidade pela estrada olho a noite e as árvores no escuro. Tudo parece negro à minha volta e apenas a sensação de que já aqui estive me traz algum consolo. No meio da melancolia indico um destino diferente do que desejava e dou por mim perto da nossa infância. Os locais são os mesmos mas estão completamente modificados pelo tempo e a minha angústia aumenta. Será que vou reconhecer as casas? Será que vou reconhecer os caminhos que percorria em criança? Será que te vou reconhecer?

O táxi continua mais devagar e não digo ao condutor que não sei se quero estar ali, não digo que podemos estar perdidos e continuo a olhar para dentro de todas as casas. Lembro-me das mais antigas e das tardes passadas entre companheiros de aventuras. Mas tudo está diferente, todos os recantos envelheceram e eu sinto que a ligação com o meu passado está ameaçada.

Por fim vejo a casa onde entrei tantas vezes, a casa onde brincávamos inocentemente e todas as recordações voltam para encher a minha cabeça. Vejo luz e olho para dentro à procura de alguma cara conhecida, sinto um conforto enorme ao ver os mesmos móveis, os mesmos objectos, ao ver que alguma coisa ainda está igual. Peço para irmos mais devagar e tento desesperadamente reconhecer tudo, tento guardar o passado dentro de mim.

De repente vejo alguém, uma figura conhecida sentada a ler. Mal consigo ver o teu rosto, mas sei que és tu pois estás exactamente como sonhei. Volto ao passado e já não estou no táxi, estou sentado contigo à porta de tua casa e a noite é infinita. Temos dez anos e falamos sobre o futuro, sobre o queremos ser quando formos crescidos, sobre nós dois.

Sou trazido de volta ao presente por uma voz que pergunta algo, tenho vontade de sair do carro e bater à tua porta, de reconhecer a tua cara e a tua voz, de voltar a olhar para o céu de mão dada contigo. Num impulso pago o táxi e fico sozinho na noite a olhar para uma janela, não sei o que vou encontrar, não sei se me vais reconhecer, mas avanço determinado em direcção ao meu destino.

quinta-feira, junho 09, 2005

Cinco Minutos de Adeus

Ponho a música a tocar e sei o tempo que tenho para estar contigo uma última vez. Olho para os teus olhos e vejo o filme do nosso passado, perguntas-me o que podemos fazer e sei que apenas nos podemos despedir e tentar recordar este momento o resto das nossas vidas.

Estamos sentados no carro e a noite está chuvosa, o chão reflecte a luz de um semáforo perto de nós e a tua cara muda de cor. Sei que nada importa mais e que tudo ficou mais simples de repente, sei que não são precisas explicações e que podemos uma vez na vida olhar um para o outro sem ter de pensar nas palavras que devemos dizer.

E não falamos, deixas apenas as tuas mãos sobre as minhas e deixas o tempo correr enquanto uma única lágrima escorre pela tua cara. Eu aproximo-me de ti e com medo que o tempo se esgote encosto os meus lábios aos teus ao mesmo tempo que a chuva começa a cair com mais força.

Apesar de esperar por este beijo há muito tempo, não esperava que fosse tão forte, que me fizesse ter dúvidas sobre o que decidi, que acontecesse no meio de um adeus. Desisto e tento apenas sentir o prazer de estar junto a ti durante os segundos que faltam, tento ficar com uma parte de ti.

A porta fecha-se e sei que sentes o mesmo que eu, que o mundo não faz sentido, que era tão fácil fazer as coisas de outra maneira. Quero que te voltes para trás mas não olho com medo de correr atrás de ti, com medo de não conseguir dizer adeus...

terça-feira, junho 07, 2005

Seis anos

Sentei-me ao computador sem ter nada para dizer, sem ter nada para escrever que me ajudasse a desabafar o que me ia na cabeça. Queria poder pôr por escrito os meus pensamentos, mas era tudo tão confuso que continuava a olhar para uma página branca à minha frente.

Sem outra solução voltei à infância onde tudo começou. Lembrei-me de um rapaz de seis anos e dos medos que o assustavam, lembrei-me de todos os sonhos que já naquela altura lhe enchiam a cabeça e da despreocupação própria de uma criança.

De olhos verdes no horizonte, brincava ao fim da tarde sem pensar demasiado no futuro, sem saber o que ia acontecer quando crescesse e quando os medos deixassem de ser apenas pesadelos que apareciam a meio da noite. Quando o medo viesse a qualquer altura e trouxesse nuvens negras aos meus dias.

Mas olhar para o passado é bom, lembramo-nos de formas diferente de ver a vida e de sentimentos simples. De gostar sem questionar, de amar sem perguntar porquê, de ter medo apenas entre duas brincadeiras e de esquecer rapidamente todas as angústias e ansiedades.

Larguei o computador e na varanda acendi um cigarro, uma pequena luz por baixo de um céu cheio de estrelas. E olhei para cima como fazia quando era pequeno, quando voava de olhos fechados e tudo era possível. Quando podia escolher o meu futuro e não me preocupava com o passado.


Agora

Sei finalmente que para andar para a frente tenho de voltar atrás, tenho de voltar a olhar com os olhos que são os mesmos. Sei que na simplicidade dos pensamentos de um pequeno rapaz de seis anos está a resposta para os meus problemas. Sei que tudo eventualmente irá ficar bem e vou poder estar sentado calmamente a olhar para o céu e apenas sorrir.

quarta-feira, junho 01, 2005

Um Passado Recente

Entrou em casa e reparou que estava completamente vazia. Tentou não pensar muito no assunto nem dar demasiada importância a este estranho facto, mas era difícil não tentar perceber o que tinha acontecido, não tentar pelo menos imaginar porque é que de um momento para o outro tinha desaparecido tudo à sua volta.

Sentou-se no chão e chorou durante muito tempo, tinha saudades de tudo, tinha saudades dos seus cd’s, dos livros que guardava com tanto cuidado, de todos os móveis que comprara ao longo dos anos, do quadro que desenhara e que estava por cima do sofá que também já não existia...

Era como se todo o seu passado tivesse desaparecido e com ele a memória de uma vida. Sentia que começava a esquecer-se de si próprio, sentia que lentamente deixava de saber quem era. Era como se todos os dias passados dentro daquela casa se estivessem a apagar aos poucos da sua memória.

Tinha uma ideia vaga de pessoas a conversarem, de serões animados com conversas em voz alta que agora pareciam simples sussurros. Sabia que também tinha amado dentro daquelas paredes mas já não sentia o cheiro dos corpos que via desfocados à sua frente, já não distinguia as formas umas das outras e juntava tudo numa enorme confusão que o angustiava cada vez mais.

Ainda conseguia lembrar-se de noites passadas sozinho frente à televisão ou a ler um livro, mas só conseguia sentir uma parte do que tinha vivido nesses momentos solitários, não conseguia lembrar-se das histórias que tinha visto ou lido, não conseguia lembrara-se de uma única cena, de uma única personagem, só pequenos fragmentos de sentimentos.

Levantou-se e limpou as lágrimas que não paravam de cair dos olhos. Sabia que a qualquer momento iria sair pela porta e que tudo se apagaria, sabia que iria esquecer-se do seu nome e de toda uma vida.

Olhou para os lados e tentou por uma última vez lembrar-se da casa cheia, reconstruir por um breve momento toda uma existência e todo um passado. Fechou os olhos e viu várias cenas que se apagavam quando olhava para cada uma delas, uma última visão de uma felicidade que não iria sentir nunca mais.

Saiu uma última vez pela porta e desceu a rua sem olhar para trás...

segunda-feira, maio 30, 2005

Sonho

Vivo dentro de um sonho de onde saio durante o dia
Vivo dentro de um sonho que me mostra a realidade
Vivo dentro de um sonho onde sou verdadeiro
Vivo dentro de um sonho confuso

segunda-feira, maio 23, 2005

A Melancólica Viagem...(Parte III)

E tu não apareceste...

Penso se não terás existido apenas na minha cabeça, nos sonhos que me afastam do dia-a-dia. Penso se não terá sido apenas o sonho mais real que alguma vez tive, um momento onde a realidade se fundiu com a fantasia e tudo pareceu fazer sentido.

Voo por cima das pessoas e tento procurar-te no meio da multidão. Nesta cidade cinzenta onde chove todos os dias sinto-me perdido entre os dois mundos onde vivo e não consigo perceber a qual deles pertenço. Tenho medo de começar a cair e misturar-me para sempre no meio dos outros...

Não tenho a certeza de qual é o caminho e continuo a voar enquanto todos me olham com inveja, enquanto todos olham para o céu. Mas a dúvida vive na minha cabeça e continuo a procurar o que não desejo, o que não sei se vou encontrar.

Perdido hoje, olho para Ontem para descobrir que vou sempre viver aqui, numa encruzilhada onde não tenho de escolher e posso apenas descansar encostado à árvore que marca o caminho.

Fim

quarta-feira, maio 18, 2005

No Metro

Vejo alguém sorrir a meu lado e não percebo porquê. Olho para os olhos azuis e vejo uma cara transformar-se por completo, como se não fosse a mesma pessoa, como se de repente a que estava à minha frente tivesse desaparecido e sido substituída por outra completamente igual, mas mais feliz.

Não existe contacto visual entre nós dois e posso observar aquele sorriso e tentar imaginar uma vida...


Outra Vida

Joana caminhava pela rua devagar e pensava na vida, pensava na ansiedade que não a largava nas últimas semanas e em toda a tristeza que tinha acumulada dentro dela. Era uma pessoa com uma vida normal mas que sentia precisar de algo mais. Esta angústia vinha dos tempos de criança, na altura tinha medo do mundo, tinha medo de coisas simples que a assustavam muito e deixava-se levar para um mundo de sonhos e fantasias.

Apesar de tudo tinha sido uma criança muita risonha e feliz, o problema começara quando crescera e os sonhos tomaram conta da sua vida. E quanto mais viajava por mundos cada vez mais incríveis, mais se afastava da realidade e das outras pessoas. Chegara aos trinta anos sem namorado, com poucos amigos e com uma família que via pouco, sentia-se sozinha e quando isso acontecia fugia para o seu mundo de faz-de-conta.

Naquela tarde de Setembro as árvores tinham uma cor muito bonita com o sol a bater nas folhas amarelas, um Outono que tinha chegado mais cedo, como se tivesse vindo fazer companhia aos pensamentos melancólicos de Joana. Estava triste e não sabia como mudar o que sentia, olhava para o mundo à sua volta e tentava que o bonito fim de tarde a ajudasse a sorrir.


Uma flor

Cansada de tanto andar, cansada de pensar, sentou-se num banco da sua rua preferida e observou as pessoas que passavam. Olhou para as pessoas que caminhavam depressa com uma expressão muito séria e riu-se para dentro pensando que deviam ir fazer alguma coisa muito importante, só isso podia justificar os semblantes tão carregados. Ela esperava não ser assim também aos olhos dos outros, esperava ser mais do tipo triste mas com um rosto simpático, o tipo de pessoa de quem todos gostam, era isso que queria ser.

De repente sentiu que alguém a observava, olhou para baixo e reparou numa miúda que não devia ter mais de três anos e que olhava para ela fixamente. Nas mãos tinha uma pequena flor amarela que agarrava com muito cuidado como se tivesse medo que ela caísse, como se estivesse a segurar algo muito valioso e que não podia ser substituído.

Disse-lhe olá e perguntou como é que ela se chamava, a única resposta que obteve foi um esticar de braços. Baixou a cabeça e olhou para a flor no meio de duas mãos pequenas sujas de terra, as pétalas eram amarelas e o centro da flor era cor-de-laranja e conseguia sentir o ligeiro perfume que ela deitava. Agarrou suavemente na flor com uma das suas mãos enquanto passava a outra pelo cabelo castanho da pequena. Ela esperou uns segundos e olhou-a como se pudesse ler os seus pensamentos e sorriu como nunca ninguém tinha sorrido para Joana, um sorriso que encheu a sua tarde.


Depois

Joana entrou no metro ainda a pensar no que tinha acontecido e em vez de fugir para os seus mundos, ficou apenas de olhos fechados a relembrar o sorriso que lhe tinham oferecido e do resto da tarde sentada num banco apenas a saborear a vida.

Reparou que a seu lado alguém a observava, estava a sorrir desde que entrara na carruagem e nem tinha pensado que não estava sozinha.

Olhou para o rapaz e sorriu para ele.

quinta-feira, maio 12, 2005

Futuro

Hoje

A campainha toca e eu sento-me no canto, sinto dificuldade em respirar e dói-me o corpo. Esfrego as luvas na cara e limpo o suor dos olhos enquanto reparo no meu adversário sentado do outro lado do ringue, tenho mais uma vez a sensação estranha de que o conheço.

Ouço o som e levanto-me com raiva, avanço em direcção a ele e tento bater-lhe com toda a força que tenho, a ligação que sinto a este homem que não conheço traz-me sentimentos de amor e ódio misturados, eu escolho o ódio e a multidão entra em delírio.


Ontem

Acordo numa cama lavada e pergunto-me onde estarei, só me lembro de estar à chuva e ao frio e de ter pensado que ia desmaiar. Tenho treze anos e vivo na rua desde que nasci, nunca tinha sentido o toque suave de uma cama, nem nos meus sonhos mais arriscados.

A porta do quarto abre-se e entra um homem de cabelo cinzento que me fala de forma calma. Diz que me encontrou inconsciente na rua e pergunta se eu aceito a ajuda dele, não consigo pensar, estou num mundo que não conheço. Sinto o cheiro da comida ao meu lado e percebo que a minha vida vai mudar, que as ruas vão ficar para trás, que vou esquecer o frio.


Hoje

Sou atingido com força no nariz e vejo o meu sangue cair no chão, tenho de esquecer o passado, não posso voltar agora, tenho de me concentrar na luta, tenho que esquecer a dor. Refugio-me nas cordas e com os braços à frente da cara sinto os golpes nas minhas luvas. Quero fugir mas não consigo, quero odiar quem me bate, mas não consigo deixar de sentir que o amo.

A campainha salva-me. Não olho para trás a caminho do meu canto, tenho medo do que vou encontrar, tenho medo de o olhar nos olhos. Tento ouvir o que me dizem, mas as palavras são abafadas pelo barulho das pessoas que gritam cada vez mais alto, demasiado alto, não sei se vou ter coragem de me levantar.


Ontem

O tempo passa e eu cresço num mundo novo, um mundo onde a ciência mudou a vida das pessoas. Mas não mudou a vida dos desgraçados que continuam a vaguear pela rua e que consigo ver por cima das nuvens. Encosto a cara à janela e tento perceber as formas que vejo ao longe.

Duzentos andares abaixo, outros como eu andam pelas ruas desertas, esquecidos do mundo tentam descobrir comida e refúgio, as duas únicas necessidades que sentem todos os dias das suas curtas e intensas vidas.


Hoje

Não me levanto, as recordações tomaram conta de mim e não tenho vontade de lutar. A meu lado alguém grita comigo, mas continuo de cabeça baixa a ver o meu suor juntar-se com o sangue. Quero sair deste lugar, mas sei que a multidão não me vai deixar, sei que ela me vai obrigar a lutar.

Olho por fim o meu adversário que está no meio do ringue. Olha para mim de forma triste, como se me pedisse desculpa, como se me quisesse ajudar. Reparo no seu corpo musculado e na sua cara jovem e tento descobrir quem é este homem que me leva de volta aos primeiros dias neste mundo.

Os segundos passam a correr mas eu sinto que tudo à minha volta corre devagar, como se o tempo passasse mais lentamente para todos os outros. Olho para os seus lábios e reparo que se estão a mexer, não consigo perceber as palavras no meio da confusão, mas o lábios continuam a dizer as mesmas palavras. O mundo está a parar à minha volta e eu esqueço tudo, deixo de ouvir o barulho que me ensurdece.

Compreendo o que ele está dizer e rebento de dor...


Ontem

Olho para ele e não entendo o que estou a ouvir, como é possível acabar assim? Nasci sem pai e nunca pedi nenhum, mas choro neste momento em que sei que o vou perder. Ouço histórias que não compreendo, ouço coisas que não me chocam mas que o fazem uma pessoa diferente da que conheço. Sei que não é a pessoa que julgo, mas não me importo e imploro-lhe que fique.

As minha últimas palavras são de ameaça, são de desespero e digo que vou mudar, que vou ter uma vida diferente da que ele me ajudou a sonhar. Sinto uma mão no meu cabelo e sem abrir os olhos ouço palavras simples que me dizem que tudo vai ficar bem.


Hoje

Parto para cima do monstro que vejo à minha frente, uma aberração que não devia poder existir. Bato-lhe com toda força e quero matá-lo, quero que ela sofra por tudo o que representa, pelo miúdo que perdeu os seus sonhos e pelos outros miúdos que não chegaram a sonhar, quero que morra.

Caio por cima dele sem forças, sinto a sua respiração e deixo-me ficar um segundo eterno no seu abraço terno. A multidão incita-me a pôr um fim ao combate, a pôr um fim a uma vida e penso que mundo é este onde vivo sem ter pedido. Não consigo ver os seus olhos, mas continuo a ouvir a sua voz que me suplica, que me pede algo em troca do passado, um pedido desesperado, um pedido que não posso aceitar.

Levanto-me e desisto, desisto desta luta, desisto deste mundo. À minha volta o silêncio repentino é rompido por alguns gritos de protesto. O sangue no chão nunca é suficiente, o sofrimento é um vicio que esta noite não foi satisfeito.

Não escolho nem o amor nem o ódio e pela primeira vez em anos saio para a rua...

quarta-feira, maio 04, 2005

Sono

Vejo um mundo desfocado à minha frente, tons de negro e cinzento que me tapam os olhos e me aprisionam. Uma música suave embala-me e luto para não dormir. Os sentidos dão-me uma imagem imperfeita do mundo à minha volta e tento encontrar um caminho no meio da luz fraca...

segunda-feira, maio 02, 2005

Ontem

Olho para trás e vejo a luz entrar pela janela. Passaram muitos anos mas ainda consigo sentir o prazer do sol a bater na minha cara enquanto descanso no seu colo. Sinto o ar quente que me faz voar os cabelos molhados e desejo ficar ali para sempre, protegido, aconchegado...amado.

quarta-feira, abril 27, 2005

Na Sala

Espero por ti

Sozinho sentado na sala espero por ti sem ter a certeza que voltarás a este local. Lembro-me de um olhar rápido e das poucas linhas que o descreveram. Não tenho a certeza que tenha acontecido, mas espero pacientemente e escrevo, escrevo para passar o tempo e para tentar adivinhar o futuro.


Nós dois

Entras depressa e olhas para dentro da sala como se procurasses alguém. Fixas os teus olhos nos meus e não os desvias enquanto te sentas à minha frente. É quase insuportável manter o contacto, todo o meu corpo pede para que eu desvie o olhar, para que eu acabe com o sofrimento, para que eu me esconda por um segundo.

Mas pela primeira vez na vida resisto. Não desvio o olhar apesar da dor que sinto, apesar de toda a vergonha, apesar de toda a emoção. E tu sorris, tu percebes que temos algo em comum, algo que não precisa ser dito, uma empatia maior que o mundo e muito mais simples do que as pessoas. Sabes o que penso sem perguntar e eu sei quais são os teus sonhos e os teus medos, o que te faz sofrer e o que te faz rir.

E rimos, rimos os dois sem nunca termos trocado uma palavra, sem sabermos nada um sobre o outro, mas conhecendo-nos melhor do que ninguém.


Até um dia

Alguém chama o teu nome que eu não sabia. É uma parte da realidade que entra neste nosso mundo confuso, neste mundo onde não se sabe nada, mas onde se sente tudo.

Olhas para trás de forma doce mas desafiadora, sabes que nos vamos voltar a ver, sabes que vais voltar a olhar para a minha cara. E eu fico a olhar para ti a desaparecer por trás da porta castanha. A ansiedade vem até mim, mas não me vence, deixa apenas aquele frio que diz que não devo tentar compreender tanto as coisas, que o meu grito de liberdade não é como eu penso que vai ser...

Sorrio e escrevo sobre um encontro futuro, sobre olhares demorados...sobre ti.