terça-feira, agosto 22, 2006

Ansiedade

Rui esperava dentro do carro. Não fumava há mais de dois anos e o fumo ardia-lhe nos pulmões como se fosse a primeira vez. Sabia que não devia estar ali, sabia que podia estar a alguns minutos de fazer a maior asneira da sua vida, mas esperava, esperava enquanto o cigarro ia ficando mais pequeno.
Num prédio em frente uma porta de vidro abriu-se, mais uma vez a ponta do cigarro brilhou e os seus olhos fecharam-se com o reflexo do Sol. Quando voltou a conseguir ver já uma figura caminhava em direcção a ele, não era quem esperava.
Olhou para o relógio que nunca usava e contou as horas, o calor era insuportável e perguntou-se mais uma vez porque é que tinha cedido à tentação de esperar ali por ela, porque é que se deixara guiar por uma obsessão. Sentia que ia estragar tudo de vez.
A porta abriu-se mais uma vez e não precisou de ver quem saía para ter a certeza. Tinha sido sempre assim, sentia... antes de ver.
Ela começou a andar devagar na sua direcção até que de repente parou, com ela era igual, sentiam-se, isso ela não podia negar. Rui sabia que eram feitos um para o outro, só não sabia porque é que tudo tinha falhado. Olhou para baixo à espera que ela chegasse.
Sentiu um vulto ao seu lado.
- O que é que estás aqui fazer?
Deixou-se estar sentado no carro, estático, sem reacção. Não tinha nenhum plano, só tivera coragem para guiar até àquele sítio. Não sabia o que dizer.
Joana tinha os olhos cheios de lágrimas que não deixava cair e perguntou mais uma vez.
- Ouviste o que eu perguntei? O que é que estás aqui a fazer? Como é que me encontraste?
Ele não conseguiu responder e ela começou a afastar-se do carro. Abriu a porta.
- Espera...
- Não temos nada a dizer. Só não sei como descobriste onde trabalho.
- Quando se deseja muito uma coisa não é assim tão difícil.
- Chegaste a pensar se eu desejava voltar a ver-te?
A voz dela não tinha o tom melodioso de antigamente, estava sempre presente uma agressividade, um apontar de culpa. Era impossível esquecer o que tinha acontecido. Olhava para ela e num segundo recordou tudo. Mas já não conseguia pensar nas coisas boas, só nas discussões, só nos gritos pela noite dentro. Só conseguia pensar no dia em que tudo mudara, quando lhe agarrara com força num braço, quando sentiu que tinha feito algo que não podia ser desfeito. Lembrava-se da cara dela e de a ver agarrada ao braço enquanto decidia. Continuava a não saber porque é que as coisas não tinham dado certo, mas sabia exactamente o momento em que se dera a ruptura, quando ela decidiu que o seu gesto não tinha desculpa... e se afastara sem dizer uma palavra.
Respondeu de forma atrapalhada.
- Eu... eu... tu sabes o que eu sinto por ti.
Joana pensou antes de responder.
- Sim... eu sei. Mas isso não chega, pois não?
- E ficamos assim? Depois de tudo, ficamos assim?
Ela não olhava sequer para a sua cara, como se não tivesse coragem de ver os seus olhos, como se não quisesse arriscar voltar atrás.
- Rui... não percebes que acabou? Não percebes que as coisas já não fazem sentido? Olha para ti, olha para o que estás a fazer, como é que é possível imaginares que podemos recomeçar tudo?
- Mas e o que sentimos?
Um ar de desespero antecipou a resposta.
- Rui, olha onde chegaste, tu estás a seguir-me... tu não te apercebes, pois não?
Ele não respondeu, na verdade já não estava a ouvir. Fixava um grupo de pessoas do outro lado da estrada e tentava adivinhar sobre o que falavam, tentava adivinhar as suas vidas. Sabia que Joana tinha razão e isso doía, doía saber que era última vez que olhava para ela.
- Tens razão.
Joana fez um ar espantado.
- O quê?
- Tens razão, não podemos voltar atrás. E não fiques com esse ar desconfiado, estou a falar a sério.
- Tens que admitir que é estranho, uma mudança tão súbita de comportamento.
- Eu acho que sempre soube, só não queria ver... e de repente fiquei cansado das minhas obsessões, de todos os disparates que fiz neste último ano... fiquei cansado de mim.
- Assim, de repente?
- Sim, assim de repente.
Joana olhou para ele sem medo, olhou para ele e viu uma pessoa que julgava já não existir. Mas era tarde.
- E... e ficas bem?
Rui sorriu.
- Não... claro que não fico bem.
Abriu a porta do carro e entrou sem se despedir dela, sentiu o calor na cara e os olhos a arder. Arrancou sem olhar para trás e ligou o rádio, uma música começou a tocar, uma música com palavras simples, "this is the first day of my life". Não conseguiu deixar de sorrir.

7 comentários:

laura disse...

às vezes basta o reconhecimento de algo para dar o primeiro passo. só que esse primeiro passo custa tanto....

gosto de te ver regressado. mesmo :))

Anónimo disse...

O mesmo estilo do livro....é bom ler coisas novas...continua a ficar a mesma vontade de ler mais.....e um romance, para quando ? Para podermos matar o desejo de querer ler mais.
Boa...continua :-)

laura disse...

Estou agora a ouvir a música. É linda :) Faz-me lembrar "November" dos Azure Ray, lembras-te? É triste, doce e, ao mesmo tempo, muito positiva, como se, de facto, este fosse o momento em que tudo muda, em que somos obrigados por uma força desconhecida a dar o passo em frente. Um pé, depois o outro. Não conhecer o caminho custa, mas acaba por ser a melhor parte. Vens?

Mike Monteiro disse...

Simples mas inspirado. Como sempre.

pinky disse...

muito bem escrita, a história com a face de qq um de nós!

xein disse...

AH QUE BOM!!!! Vim aqui só por descargo de consciência e que bela visão. Vários textos novos.... Este está inspirado como sempre.... Que bom estares de volta Rui! ;)


Sente-te

Anónimo disse...

Adorei!

Beijinhos

Eduarda