quinta-feira, fevereiro 02, 2006

O Conto

Eram três da manhã e Ricardo continuava acordado, a seu lado Carla dormia profundamente sem saber que ele a observava. Passou os dedos pelos seus cabelos e dominou a vontade de chorar, o medo de a perder era quase insuportável. Ela acordou.
- Não estás a dormir...que horas são? Não reparei quando te vieste deitar.
- São três.
- O que se passa?
- Nada de especial, só não consigo dormir, volta para os teus sonhos.
- Agora já acordei...bem que podes me contar o que vai nessa cabeça.
Ela conhecia-o bem demais e não ia desistir, sabia que não ia conseguir desviar o assunto.
- Há uma hora atrás acabei de escrever o melhor conto de toda a minha vida.
- O melhor?
- Sim, o melhor.
Carla percebeu que ele falava a sério e esfregou os olhos para espantar o sono.
- E?
- E acho que não vou poder escrever mais nada depois disto.
- Não sejas doido.
- Estou a falar a sério.
- Mas porque é que dizes isso?
- Porque no momento em que acabei senti-me vazio.
Levantou-se e dirigiu-se à janela, não conseguia encará-la.
- Ricardo...olha, eu não quero parecer insensível, mas não achas que és capaz de estar a exagerar? Tu ficas sempre assim quando acabas de escrever algo. Eu percebo a tua angústia, mas vais ver que daqui a uns dias já estás frente ao computador sem me ligares nenhuma.
Ele virou-se de repente e deixou-a ver as lágrimas que lhe corriam pela cara.
- Eu não tenho mais nada para te oferecer.
- Ricardo...eu..eu sei que te pedi para falares, mas não vou ter uma discussão sobre as tuas inseguranças a esta hora, acho que devias tentar dormir.
Deixou-se cair na cama e tocou-lhe outra vez no cabelo, pensou se seria a última vez que o fazia.
- Desculpa, eu não queria chatear-te.
- Acho que devíamos falar amanhã, vais ver que já não pensas assim, não achas?
- Sim, não te preocupes, tu já sabes como é que eu sou, amanhã falamos.
- Eu amo-te, sabes isso, não sabes?
- Sim, eu sei, vai dormir, eu vou só à sala um minuto, tenho de gravar o que escrevi.
Ela olhou para ele com um ar espantado.
- Desculpa?
- O que foi?
- O que foi? Tu achas que escreves o melhor conto da tua vida e...e não o gravas?
Respondeu sem olhar para ela enquanto saía pela porta do quarto.
- Seduziu-me a possibilidade de o poder perder, uma estupidez, eu sei. Já volto.
Sentou-se frente ao monitor preto e tocou numa tecla qualquer, o texto apareceu de novo e leu mais uma vez o que tinha escrito nessa noite. Quando acabou escolheu um título banal e gravou o ficheiro. Foi-se deitar sem pensar no dia seguinte.

15 comentários:

miak disse...

A escrita é assim muitas vezes. Mas pode não ser.

Pode ser só alegrias...levada tranquilamente, sem medo de errar.

Sem medo de não encontrar o conto perfeito.

Anónimo disse...

Entendo isto tão bem!acho eu...bolas estou imprópria para comentar o que que quer que seja,eu sei o que dói sentir assim...ou a mim dói-me...vou estudar,já venho!
Beijos
MI

kolm disse...

Será que algum dia nos vais contar o conto do conto... contaras-nos tu esse conto que deixa um homem (ser humano) vazio e triste...
Um dia sim... tens que contar...

p.s. estou a ver que a apanhaste! :) desconfio igualmente que tem vontade própria... mas podemos sempre tentar dar-lhe um "empurrãozinho"...

xein disse...

E acreditas que esse conto existe??? Se formos ver bem....Há sempre falhas. Faz parte da condição humana! :)

Sente-te

Abelhinha disse...

O ser humano tem a necessidade constante de aperfeiçoamento.
O que hoje se acha perfeito, amanhã, daqui a duas semanas, 6 anos, uma década, tem muitas imperfeições...

Um novo conto saltará do nada, como uma torrada salta da torradeira.

Penélope disse...

Pergunto o mesmo que a ‘Xein’ – existirá o conto perfeito?
E se for o conto perfeito, não existirão outros contos para serem contados?
O que hoje consideras perfeito, amanhã ou depois poderá ainda ser «melhorado»… «quem escreve um conto acrescenta um ponto ou uma vírgula passadas algumas vigílias» ;)
Penélope

Kiau Liang disse...

é necessário ter medo, de algumas coisas, torna a vida mais "coração na boca"

laura disse...

Claro que se sente um vazio. As histórias não são só palavras. Saem de cá de dentro, da carne. e com custo, a maior parte das vezes. e quando saem de rajada, pela noite dentro, quando não conseguimos parar de escrever, quando somos arrastados pelo sopro de uma história que quer ser contada, depois o que fica? Uma pele vazia, inerte, na maior parte das vezes. E nunca mais seremos capazes de escrever como acabámos de fazer. porque acabámos de dar o melhor de nós. A vida, as relações também são assim. Sentimos por vezes que damos tanto, que fizemos o melhor de nós, e que não irá sair mais nada das nossas mãos, do coração. Mas acaba sempre por sair. Não é?

Madame Pirulitos disse...

E nunca é o que se imagina ser...

nspfa disse...

Durante quase um ano escrevi mails a um ritmo quase alucinante para a pessoa que me inspirava a vida e a alma. de cada vez que terminava um relia-o e sentia exactamente o que dizes no conto. Ficava com uma sensação de angustia ao pensar que nunca mais conseguiria escrever uma coisa assim! Depois, passados uns dias, voltava a escrever um ainda maior e mais sentido e de novo a mesma sensação de vazio no fim. Agora, bem vistas as coisas, sei que teria continuado a escrever no mesmo ritmo e com a mesma inspiração durante uma eternidade de anos. na minha opinião tudo tem a ver com o facto de se escrever com o coração ou com obrigação.

muito boa esta reflexão.Parabéns.

grande abraço

jctp disse...

- Mas afinal, que conto é esse? Posso vê-lo?
- Sim. Está aqui. Podes lê-lo.

(O conto que ela leu)

- Mas, isto não é possível. Como é que tu sabias que...
- Não sei.

kolm disse...

Se queres que te diga nem sei como o consegui escrever.
Corro contra o tempo, que nem consigo pensar... responsabilidades de um mundo material...

Bom fim de semana, e boas inspirações.. :D

Aq disse...

É. É verdade que quando venho a este blog, perco a noção do tempo. Em relação a este tema (se é q há um tema nesta história simples e bonita como todas) tenho um sentido diferente. Nunca chego realmente, a vazar, depois de escrever o que quer que seja. Isso às vezes, é assustador. Não deixa contudo, de ser um desconforto diferente do do teu "Ricardo". O vazio de emoções, ou o excesso delas, acabam por ir dar ao mesmo. A um permanente estado de insatisfação.

Aq disse...

Correcção:
Onde escrevi "diferente do" devia ter escrito "igual ao" :)

Abelhinha disse...

Rspiff:

Lancei-te um desafio na minha colmeia.

Beijocas