terça-feira, dezembro 04, 2007

O Quarto Lilás

Os olhos de Maria procuravam no escuro, sabia de cor as paredes, a arca dos brinquedos, o cavalinho de madeira escura. Conseguia ouvir os pais na sala ao fim do corredor, o passar das folhas do jornal, a colher na chávena de chá, o bule pousado devagar. Tinham-se habituado aos silêncios da filha, pequenos passos na alcatifa, num correr abafado, e a segredos escondidos, por trás de um sorriso irrequieto. Maria tinha apenas quatro anos, mas explorava a casa como se fosse uma caçadora experiente, esperando, observando, descobrindo os cheiros, caminhando devagar, por entre as ervas secas da savana. No quarto, um barulho trouxe o medo, a barriga fria, duas mãos esticadas, num abraço esperado. Dois olhos brilharam, por cima de dentes aguçados, de dedos deformados, em garras afiadas, de um tocar gentil. Maria não conteve um grito, um desejo que se transformou, que chamou os passos pesados na madeira. O pai acendeu a luz, antes de uma prece rápida, por não conseguir perceber. A mãe caiu em desmaio, ao ver as mãos da filha, vermelhas de sangue vivo, que escorria até aos seus pés. Maria chorou baixinho, quando ouviu um esconder apressado, seguido de uma porta fechada.

— Queres esperar? — perguntou João.
Maria não respondeu, ficou parada no princípio das escadas. A casa por fora estava na mesma, a madeira pintada de branco, o telhado feito de telhas negras. Pelas janelas conseguia ver os cortinados de rendas perfeitas, pequenos desenhos que lhe traziam imagens à cabeça. Lembrava-se da mãe a bordar, de se deitar no seu colo, fugindo da sombra no chão, fechando os olhos para o Sol.
— Não acredito que ele não a tenha vendido — disse quase a chorar. — Não acredito que ele não tenha dito nada, mesmo nestes últimos anos. Achas que era por isso que ele sorria, mesmo antes de fechar os olhos?
— Não sei mana, não sei — disse João, ao mesmo tempo que olhava intrigado para a casa. — Acho que ninguém podia adivinhar, depois de tudo o que se passou.
Maria olhou para ele, à espera da pergunta.
— Maria...
— Nunca perguntaste João, tu nunca perguntaste — disse ela olhando-o nos olhos.
— Sim, eu sei... bolas! Tu tinhas quatro anos, eu nem sei o que te perguntar. — Subiu dois degraus sem reparar. — Eu já nasci com o segredo guardado, para mim não era sequer uma hipótese perguntar.
— Eu lembro-me de tudo — disse ela, ao mesmo tempo que subia também os degraus. — Lembro-me de tudo o que se passou naquela noite.
— A sério? — perguntou ele.
— Todos os dias da minha vida, todos os dias da minha vida.
— O que era? — perguntou, relembrando os medos de criança, de histórias assustadoras, que não lhe souberam explicar. — Quem estava contigo no quarto?
— Um amigo João — disse ela, enquanto subia mais um degrau, aproximando-se da porta da entrada. — Era apenas um amigo.
— Mas era real? — perguntou ele, pedindo desculpa com o olhar.
Maria sorriu.
— Para mim era João, para mim era.
Subiram até um pequeno alpendre, empurraram a porta pintada de verde, de tinta ressequida que lhes sujou as mãos. Sentiram o cheiro do pó, de anos de vazio, de silêncio forçado. João entrou à frente, protegendo a irmã, escondendo o medo.
— Onde é o quarto?
— No fim do corredor — respondeu ela, enquanto passava à frente dele, correndo até a uma porta fechada.
— Maria, queres entrar sozinha? — perguntou ele, tentando adivinhar qual era o desejo da irmã.
Ela sorriu outra vez.
— Não João, podes entrar comigo. Só preciso de me lembrar, de ter a certeza, de que nunca me vou esquecer.
— Mana...
— O que foi? — perguntou ela, disfarçando a impaciência, com a mão no puxador da porta.
— Obrigado por partilhares isto comigo, por me levares nas tuas aventuras.
— Tonto — disse ela a rir, com os olhos cheios de lágrimas. — Anda, não vais acreditar na cor das paredes.

terça-feira, novembro 27, 2007

Fado

Três mulheres esperavam encostadas à parede. Sentadas num banco de madeira esfregavam os pés, escondiam as meias cheias de buracos. Estavam todas vestidas de negro, como se o sentir da música a isso obrigasse. Rui não gostava de fado, só sentia falta do cheiro das velas, do vinho vermelho no copo, do sabor a cortiça enrolado na língua. Desde que chegara pouco comera, meia morcela assada, duas fatias de pão mal cozido, e azeitonas, muitas azeitonas. Prometeu a si próprio que só tinha de esperar mais uns minutos, a Lurdes ia cantar, e ela chorava sempre no fim.
O frio da rua recebeu-o, roubou-o ao calor da lareira, das braseiras escondidas debaixo das mesas. Desceu a Rua do Alecrim, contando as moedas perdidas nos bolsos, sonhando com o fim da noite, com Licor Beirão na tasca do Silva, antes do demorado adormecer.
Um homem. Estava um homem à beira da estrada, com metade dos sapatos fora do passeio. Um carro parou perto dele, julgando que queria atravessar. O homem sorriu, de forma gentil indicou a passagem, o caminho que nunca estivera tapado. O carro arrancou, apenas para logo travar bruscamente, por causa de um rapaz louro que passou a correr, que nunca chegou a perceber, que ali, num segundo, cabia toda a sua vida.
Rui olhou para o homem, estava vestido com um sobretudo preto, cabelo curto, mãos nuas, sapatos engraxados. Dirigiu-se a ele.
— O rapaz podia ter morrido — disse, sem coragem de atravessar a rua.
O homem olhou espantado.
— Vês-me criança? — perguntou em voz alta.
Rui não respondeu, ficou paralisado com o grito.
— Responde-me! Tu consegues ver-me? — gritou outra vez.
Rui aproximou-se. O medo desapareceu, no momento em que percebeu.
— Tu és o destino — disse com uma voz calma.
O homem sorriu, cresceu numa gargalhada, num riso aos soluços.
— Anda, vem comigo — disse, começando a andar.
Caminharam em silêncio durante mais de uma hora, numa noite sem lua, sem barulho de animais. Os homens do lixo sacudiam os contentores para os camiões, as ruas eram lavadas com mangueiras compridas, água suja que escorria para as sarjetas. Rui guardou as perguntas, esperou em nervos, numa ânsia disfarçada.
Perto do rio o homem parou e tirou-lhe o cigarro da boca.
— Isso vai acabar por te matar.
Rui olhou para o chão. Pisou a beata, esmagou-a de raiva.
— Calma, era só uma expressão — disse o homem a rir.
— Mas não está já escrito? — perguntou com medo.
O homem ficou calado. Rui não aguentou.
— Não percebo. Se tu... se está escrito, porque é que tens de intervir? O rapaz louro... ele devia ter... não era isso que estava... não era isso que devia ter acontecido?
O homem continuou calado.
— E eu? São os cigarros, o vinho? Não tenhas pena de mim, por favor, tudo menos pena. O destino é isso, não é? Tudo está escrito, páginas e páginas, com tudo o que aconteceu, com tudo o que vai acontecer.
O homem puxou-o com força. Agarrou-lhe a cara com as duas mãos.
— Rui, tu tens um dom, vês o que os outros não conseguem. Não estragues tudo, são demasiadas respostas.
Afastou-se, depois de um beijo, um toque de lábios, sem calor nem frio. Rui ficou a vê-lo a ir, resistindo ao chamar, agradecendo baixinho. O vento trouxe palavras, que mal conseguiu ouvir.
— São acertos criança, são só pequenos acertos.

segunda-feira, novembro 19, 2007

Tudo o que somos

Sentei-me à espera do metro. Passei as mãos pelo cabelo, apenas para respirar fundo, para lembrar a mim mesmo que estava triste. Ao meu lado estava uma senhora, uma mulher de cabelos brancos com as mãos aquecidas debaixo de um xaile. Passou um homem vestido com um casaco creme e atirou uma moeda para a frente dela. Olhei para o chão e vi um pano cinzento cheio de moedas, demasiadas moedas. Dei por mim a falar, antes de ganhar coragem para o fazer.
- Desculpe, isso não é seu, pois não?
Ela esboçou um sorriso muito leve. Respondeu de olhos nos meus.
- Já cá estava quando cheguei, mas não tinha moedas, deve ser do cabelo comprido.
Não percebi o que ela dizia.
- Como assim?
Ela repetiu com paciência.
- Disse que deve ser do cabelo comprido, as mulheres mais velhas não o usam comprido, muito menos sem o pintarem.
Achei que o silêncio falava por mim, dizia que eu percebia. Passaram duas raparigas por nós e cada uma delas deixou uma moeda. A senhora agradeceu, desejando sorte e saúde. Eu voltei às perguntas.
- Estão aí muitas moedas. Há quanto tempo está aqui?
Ela olhou para um relógio pequeno que tirou de um bolso.
- Há umas duas horas. É de facto muito dinheiro.
Tentei contar, ela interrompeu-me.
- E tirei de lá as notas, o metro a passar fazia-as voar.
Rebentei de ansiedade e falei em voz alta.
- Eu sou invisível, sabia?
Ela não se assustou e falou devagar.
- São como os bares dos filmes, não são?
Não percebi a pergunta, ela explicou antes de eu perguntar.
- Os transportes públicos, acho que são como os bares dos filmes, aqueles onde há sempre um conselho atrás do balcão.
Sorri para ela antes de continuar.
- Sinto-me invisível, sinto-me vazio, sem nada a que me agarrar. Às vezes acho que não existo para os outros, que acabo sempre sozinho.
Ela olhou para mim sem expressão. Tive medo.
- Não me vai dizer que devia dar graças por tudo o que tenho, pois não?
Ela não respondeu. Eu continuei.
- Não me vai dizer que as pessoas é que criam os problemas, vai?
Senti uma mão quente na minha.
- Não, não vou. Queres ouvir uma história?
Disse que sim. Ela inspirou antes de começar, eu percebi que não a podia interromper.

Contou-me que tinha nascido numa aldeia muito longe, a terra dos dias compridos, como lhe costumava chamar. Todos trabalhavam a terra, endureciam as mãos na enxada, vergavam as costas até não se conseguirem endireitar. Era gente pobre, gente de pouca conversa, que as palavras secavam a boca, mesmo a quem tinha pouco que dizer. Ela tinha nascido de destino já feito, entre casas de pedra escura, de barulhos de cascos no chão, de água sempre fria, de jantares em silêncio, de velas contadas para a noite, do adormecer no escuro, de orações repetidas, sem ter nada que pedir, enquanto o terço escorregava entre os seus dedos de miúda. Um dia, devia ter uns doze anos, chegou à aldeia um rapaz. Diziam que era filho de um padre, que o mandara para ali antes de se matar, por não aguentar a vergonha. O rapaz ficou a viver em casa de um prima do padre, que se passou a vestir sempre de negro, mas que não conseguia esconder o ouro, os fios brilhantes entrelaçados ao pescoço, uma riqueza que viria a amaldiçoar. Uma noite, pouco tempo depois do rapaz ter vindo para a aldeia, o pai dela entrou em casa a falar muito alto, tão alto que ela parou de rezar. Encostou-se à porta do quarto e ouviu-o a contar à mãe o que andavam a dizer sobre o rapaz, que ele não era normal, que tinha um pacto com o diabo, que os animais gemiam de medo quando passava, que as árvores perto do riacho estavam a secar, desde que ele começara a passar os dias deitado perto da água. Mas o pai tinha mais para contar, lembrava-se que tinha baixado a voz para ela não o ouvir, mas que não tinha obedecido ao medo e ouviu, o pai falou muito baixo, mas ela ouviu. Todos comentavam que o rapaz não tinha sombra, que não deixava pegadas atrás dele, mesmo quando caminhava na lama, que a sua voz não voltava com o eco, o seu sopro não fazia tremer a chama das velas, que o caminho dele não ficava marcado no mundo, como os espíritos que o terço afastava. Nunca tinha ouvido o pai tão preocupado, o que só compreendera mais tarde, pois aquele mundo fechado, aquele mundo que era igual desde sempre, tinha sido abalado, tinha sido perturbado no seu equilíbrio. No dia seguinte saiu de casa sem avisar, desafiando o que sabia ser a vontade do pai, correu em direcção ao riacho sem saber porque o fazia, sem conseguir deixar de o fazer. Ao chegar viu que as árvores estavam despidas de folhas, mas que pequenos rebentos verdes nasciam nos ramos. O rapaz estava sentado numa pedra. Ela chegou perto dele e tocou-lhe, para saber se era verdade, para saber se ele existia. Ele esperou que ela sentisse o calor, antes de lhe agarrar o braço com força, antes de a magoar sem maldade, de a ferir com cuidado. No dia seguinte ela fugiu, com a ajuda do choro escondido da mãe. Só voltou à aldeia dez anos depois, a tempo de ver o pai sorrir pela primeira vez na vida, antes do seu último suspiro. O rapaz tinha desaparecido pouco tempo depois dela ter fugido, ninguém sabia o que lhe tinha acontecido.

O metro apitou antes de fechar as portas e eu voltei a mim. A senhora agarrava o pulso direito com a mão esquerda. Eu precisei de ter a certeza, para acreditar.
- Posso ver?
Ela não respondeu. Puxou a manga da camisa para trás e mostrou-me o braço. Não tinha nenhuma marca, só o passar dos anos, escritos na pele branca e enrugada. Fiquei preso numa vertigem, tentando perceber o sentido.
- Mas o seu braço não está marcado.
Ela sorriu.
- Pois não, mas não há um dia que passe que não o sinta.

segunda-feira, novembro 12, 2007

Julieta

Julieta era uma rapariga muito magra, de braços finos e dedos compridos. Tinha olhos negros, muito negros, que quase desapareciam na cara. Todos achavam que sofria de alguma doença, de um mal que a iria consumir, dia após dia, ano após ano, até morrer num suspiro, num sopro que não se conseguiria ouvir. Ninguém sabia a verdade, Julieta, como outras raparigas de olhar triste, era uma fada. No Inverno costumava passear sozinha, pouco depois do sol nascer, corria por entre os arbustos de braços abertos, sem tocar as gotas presas nas folhas. No verão respirava o ar quente da tarde, tossia a terra seca, o pó que se levantava com o bater dos pés. De dia andava descalça, de pedra em pedra, sorrindo para o seu reflexo no rio. À noite calçava sapatos brilhantes, por cima de pequenas meias, com delicadas rendas nos tornozelos. Julieta esperava um homem, mesmo sendo ainda uma criança, porque as fadas nunca são mulheres. Um sonho que trouxera o castigo, de viver longe do bosque, sem nunca mais poder voltar. As fadas não crescem, mesmo as amaldiçoadas, as que sangram no corte de uma folha. São crianças para sempre, presas em corpos delicados, que mostram os primeiros sinais de amor, que querem explodir de sentir, proibidas de o ser. Julieta sabia que um dia iria morrer, fecharia os olhos distante, mas acreditava, sem se arrepender, no sonho de um homem, com as mãos nas dela. Por isso cantava, repetia em voz baixa, no medo de não conseguir.

vem meu amor
sente a minha mão
ajoelha-te num pedido
em palavras sem fim

vem meu amor
que a morte corre veloz
para me roubar a vida
que eu prometi guardar

vem meu amor
encosta o teu peito ao meu
sente o calor do sol
antes do frio da noite

sábado, novembro 03, 2007

A Rapariga Sem Nome

— Sua puta! — gritou o homem do casaco preto, ao mesmo tempo que acertava na cara da rapariga do cachecol verde e lilás. — Não pediste àqueles dois armados em hippies. Filhos da puta de meninos da mamã.
A rapariga dirigiu-se ao casal vestido com roupas largas e coloridas. Eles deram-lhe mais sorrisos do que dinheiro. Acho que tiveram pena. O homem continuou a praguejar.
— Merda, assim não consigo. — Largou a guitarra e levantou-se enquanto gritava. — Vou ver se como qualquer coisa. Vê lá se tomas conta das coisas. Puta distraída, andas sempre com os cornos noutro mundo.
Não resisti e aproximei-me.
— Porque é que deixas ele tratar-te assim? — perguntei eu, depois de lhe ter dado duas moedas, de lhe ter tocado nas mãos.
— Ele não é sempre assim, falta-lhe... ele ainda... ele ainda não comeu.
A resposta era envergonhada, mas ela nem por um segundo baixou a cabeça. Não estava a mentir, sabia o que eu sabia, o que todos sabiam.
— Não vejo o que vês — disse eu.
— Não tenhas pena de mim — disse ela de forma calma. — Foi ele o primeiro, o único que me ouviu, que escreveu para mim, as canções... as músicas que eu esperava desde sempre.
Lembro-me dos olhos cinzentos, daqueles que se misturam com todas as outras cores. A cara dela mostrava o pouco que tinha, magra, seca, queimada do sol. Mas não apagava a beleza, era impossível esconder, o que ela parecia determinada em esquecer. Os dedos da mão esquerda estavam quase castanhos, marcados por demasiados cigarros.
— Não os consegues fumar, pois não? — perguntei, mesmo sabendo a resposta.
Ela riu-se.
— Foda-se! Não consigo mesmo, alguns só lhes dou uma passa para os acender, essa merda faz mal aos pulmões.
— Tu também não... — Arrependi-me. — Desculpa, não tenho nada a ver com isso.
— Deixa, não há problema. Sim, não fumo, não bebo e não me drogo. — Inspirou o ar da noite antes de continuar, a noite que eu não tinha visto chegar. — Por outro lado vivo na rua, com um músico drogado, bêbado e que ainda por cima me bate, por isso não me dês já os parabéns.
Rebentámos numa gargalhada a dois, depois de um segundo de riso contido.
— Como é que ele se chama? — perguntei, estranhando a minha curiosidade.
— Fernando — respondeu ela pensativa, como quem tem algo mais a dizer. — Fernando, Fernando, senhor Fernando, que me tem presa num feitiço.
— E como é que ele te enfeitiçou?
Ela sorriu, e eu senti o coração apertado, por saber que nunca mais a ia ver.
— É engraçado — disse ela meio a rir.
— Então? — perguntei.
— Devia ter sido ao contrário. Ele ouviu-me um dia a cantar, sentada ali em cima no miradouro. Sabes onde é?
Eu acenei que sim, mentindo só para ela não parar a história.
— Esteve uma hora a ouvir-me escondido, pelo menos foi o que ele disse. Uns dias depois encontrou-me no mesmo sítio. Trazia com ele um monte de folhas todas amarrotadas, escritas a lápis com uma letra muito bonita. Contou-me que não dormia há dois dias, que só pensava em mim, que tinha escrito e composto sem parar, que eu o inspirava. Pediu-me que fosse dele, muito antes de me beijar.
Fiquei a olhar para ela, contendo as lágrimas, invejando a sorte deles.
— Deve ter sido especial — disse, sentindo o vento que passava por ela.
A rapariga sorriu de olhos cintilantes, antes de responder.
— Ainda é... pelo menos quando me consigo lembrar. — As lágrimas correram pelo rosto dela abaixo, riscando o pó e a rua, colados à sua pele. — Obrigada! Obrigada por teres perguntado.
Senti vontade de a levar dali, de a proteger, de lhe perguntar se tinha esperança. Não me atrevi. Ela percebeu.
— Queres ouvir-me cantar?
— E ele? — perguntei com medo que ela desistisse.
— Não te preocupes, ele vai demorar. — Pegou na guitarra e puxou-me pela mão. — Vou mostrar-te o miradouro, aquele que tu fingiste que conhecias.

segunda-feira, outubro 29, 2007

Tokyo Moon

Num segundo andei para trás no tempo. O medo de sair à rua. A noite só se tornou perigosa por causa de tanto a repetir, mas o tempo disfarçou a verdade, de que nunca iria esquecer. Uma lâmina dançou à minha frente, incomodando-me menos que o cheiro de dentes podres, de riso inventado. Abri a camisa, arranquei botões que caíram ao chão, um de cada vez. Enchi o peito, mostrei o coração em provocação, beijei o ar entre nós. Enlouqueci, por um breve momento enlouqueci. No dia seguinte estava dentro de um avião. Levei mais de um dia a chegar, sem a bênção do sono, contando estrelas através da janela. Desembarquei quase do outro lado do mundo, onde o sol devia nascer, mas só me lembro da chuva. Demorei uma hora para sair do aeroporto, ébrio de sensações novas, de aromas irreconhecíveis, da falta das palavras, substituídas por brilhos sempre presentes. Por várias vezes ajoelhei-me em tonturas, vertigens que me obrigaram a tocar o chão, a sentir o calor das pedras alisadas. A porta giratória apareceu à minha frente, oferecendo uma oportunidade de fuga. Primeiro hesitei, temendo ficar preso, depois saí para a rua, respirei fundo e encontrei a noite. Nada me podia ter preparado. O barulho era ensurdecedor, as luzes lutavam para me cegar, milhões de luzes, de todas as cores. Olhei para o céu, um pequeno pedaço de céu que conseguia ver entre os arranha-céus. Então vi-a, despida das nuvens, escondida atrás de um guindaste. Uma lua perfeita, que me tinha seguido. Corri, atirei-me para a frente de carros que se desviavam sem um protesto, larguei as malas e comecei a rir como um miúdo pequeno. Gritei e imitei barulhos de animais. Era invisível para os estranhos à minha volta. Levantei os braços para a chuva, não havia sentido, só repetia o que vira num filme. O medo estava lá, nunca tinha deixado de estar. Mas a lua era a mesma, o que me trazia conforto. Demoraram dois dias a encontrar-me, no meio do lixo, de comida que não experimentei. A água era demasiado quente, o cheiro a incenso fez-me vomitar. Não compreendi os rituais, como se houvesse algo que não podia levar de volta, como se me obrigassem a ver, a ordem que não podia ser desfeita. Eu não lhes podia contar, que nos libertamos sem saber como. Viajei em silêncio, sem estar sozinho.

quarta-feira, outubro 17, 2007

A Casa Abandonada

Estás sentada num sofá feito de um verde esquecido, tapado por uma manta de cores esbatidas, que os meus olhos ainda vêem garridas. Deixo o tempo passar antes de falar.
— Tenho tão pouco para te dar.
Olhas para mim a chorar. As palavras chegam antes de um beijo.
— E ainda assim é tanto.

No Jardim

— Anda Rui! Despacha-te! Deve estar quase alguém a passar.
Eu olhava para o muro e hesitava, estava coberto de trepadeiras, armadilhas que me podiam fazer escorregar. Foste sempre tu que indicaste o caminho, que desafiaste o medo. Pisei o muro apenas durante meio segundo, num equilíbrio que não podia manter, sem perceber a escolha, antes de decidir saltar. Tu recebeste-me a sorrir.
— Achei que ias desistir — disseste, escondendo o riso. — Pensei que caías para o outro lado.
— Achas que ninguém vai aparecer? — perguntei.
— Não sejas tonto, a casa está abandonada há anos. Só tinha medo que nos vissem a entrar.
— Desculpa — disse envergonhado. — Precisei de ganhar coragem.
Já não te ouvi a dizer que não fazia mal, enquanto corrias por entre as árvores.
— Espera por mim! — gritei.
Estava muito calor e a roupa colava-se ao corpo, num prazer de sentir, de cheirar o mundo à nossa volta. Caminhei atrás de ti de olhos fechados, com as mãos à minha frente, para afastar os ramos da cara. O Sol passava entre as folhas e as sombras tremiam por cima de mim. Imaginei que estava num comboio, que viajava de cabelo ao vento, que esticava os braços num voo fingido. Quase que conseguia sentir o cheiro a queimado, era um comboio antigo, que se alimentava de fogo, e respirava um fumo espesso. Mais uma vez chamaste-me, trouxeste-me até ao teu mundo, que se confundia com o meu.
— Anda ver, descobri um sítio incrível.
Ainda tentei perguntar, o que os teus gritos responderam, enquanto rebolavas por um monte abaixo. Deitei-me e rebolei também sobre a erva alta, perdendo a conta às voltas, rindo sem pensar em mais nada, até a barriga doer, até ficar enjoado, tonto de tanto repetir. Sentámo-nos sem forças, o Sol brilhava atrás de um telhado, brincava às escondidas comigo, mostrando-se sempre só um pouco, mesmo antes de desaparecer. Senti o teu cheiro, que não sabia existir, senti a tua mão na minha, e os teus olhos nos meus, a minha boca na tua, os lábios juntos, as cócegas no pescoço, a roupa amarrotada, um sino de uma igreja ao longe, um último raio de Sol, no meio dos teus cabelos.
— Diz-me! — disse, sem me afastar. — Como é que vai ser quando formos crescidos?
Os teus olhos brilharam.
— Rui, nós nunca vamos crescer.

segunda-feira, setembro 10, 2007

Mãe

Toda a vida vi a minha mãe a chorar quando lia. Não conseguia tirar este pensamento da cabeça, a livraria estava quase a fechar e eu só pensava nela agarrada a romances antigos, daqueles que pareciam ter tido sempre as folhas amarelas, quase castanhas. Não sei onde é que ela os ia buscar, alguns tinham as capas rasgadas, outros não tinham sequer as primeiras páginas, o que não a parecia incomodar, quase podendo jurar que a maior parte das vezes começava a meio, em histórias já conhecidas. À minha frente vi um desenho que me atraiu a atenção, passei os dedos sobre um relevo que não existia, como se pudesse sentir, para poder escolher. Pequei no livro e dirigi-me ao balcão. Estavam duas pessoas à minha frente, um rapaz que insistia numa queixa qualquer, uma rapariga longe, de olhos muito abertos, que piscavam um de cada vez. Voltei às tardes de criança. Esqueci-me do tempo.
— Boa tarde — disse a rapariga atrás do balcão. — É só o livro?
— Sim — respondi, despertado do sonho.
O barulho da máquina registadora fez-me levantar os olhos, que me levaram a outros em lágrimas. A rapariga tentava secar as gotas que manchavam o vermelho da capa.
— Desculpe, acho que é melhor levar outro — disse ela. — Não faço ideia se vai ficar marcado.
Não resisti à pergunta.
— Posso perguntar porquê?
Ela sorriu antes de responder.
— Não são lágrimas tristes, este livro traz-me boas recordações, sempre que o leio farto-me de chorar.
Lembrei-me da minha mãe, naquele preciso momento lembrei-me de anos de dor.
— Sabe, esse livro é para a minha mãe — disse, de olhos presos aos da rapariga. — Ela chorava sempre que lia.
— Disse que ela chorava, já não o faz? — perguntou ela.
— Acabo sempre a falar no passado — disse eu depois de pensar um segundo. — Acho que o faço de forma automática, aconteceram muitas coisas no passado.
— Eram os melhores momentos, não eram? — perguntou ela num tom impaciente, de quem conseguia adivinhar.
Fui apanhado de surpresa. Nas palavras dela percebi. Levei um minuto a responder. Ela esperou, sem precisar de repetir a pergunta.
— Bolas! Nunca tinha pensado nisso — disse eu com o peito a rebentar. — Sim, eram os melhores momentos, quando a apanhava a chorar, no medo de perguntar, para apenas descobrir, que as lágrimas eram pequenos sorrisos, no sentir de histórias de paixão.
Esperei outra vez, antes de continuar.
— Sim, foram os únicos momentos, em que tenho a certeza que ela estava feliz.
No dia seguinte ofereci outro livro à minha mãe, com uma dedicatória que a fez chorar. O livro de capa vermelha ficou para mim, as manchas das lágrimas nunca saíram, e ainda me fazem sorrir.

quinta-feira, agosto 30, 2007

O Livro Perdido

Desde sempre que existem, não os vemos porque não sabemos como, mas eles caminham na nossa sombra, escolhendo o chão que não pisamos, ocupando o espaço vazio entre nós. Os mais pequenos têm a altura de um arbusto de Fevereiro, nem um cabelo a mais, uma obrigação que não questionam, que os faz curvar, e os afasta do céu. Os maiores tocam as árvores, as folhas mais baixas de um pinheiro com seis anos, esticando-se em dor, longe da terra e do cheiro da erva. A uns chamaram-lhes elfos, duendes, gnomos, seres antigos que conheciam feitiços secretos. Mas eles só guardam o que esquecemos, todas as ideias que temos, mas que não sabemos recordar. Os outros foram trolls, ogres, monstros terríveis, em histórias de assustar. Mas eles só guardam o que perdemos, todas as coisas que pensamos serem nossas, mas que desistimos de procurar. Existem duas salas, a primeira está cheia de livros, folhas antigas escritas à mão, letras desenhadas muito devagar, palavras que se juntam uma última vez, depois da certeza, de que nunca mais serão lembradas. A segunda sala está cheia de caixas, arrumadas por gigantes que não sabem ler nem escrever, que as separam por sons, barulhos que só eles conseguem ouvir. Esta é a história de um livro perdido.


As oficinas

A espera era a melhor parte, antes de tudo começar a ser esquecido, de ser escondido para sempre. O pequeno ser aguardava as palavras, preparava-se para decorar o que não seria repetido, estalava os dedos antes de começar a escrever. Atrás dele outros não fingiam entusiasmo, as ideias eram quase sempre pobres, pequenos recados sem importância, que escreviam sem prazer, mas de forma cuidada. O pequeno ser era o único que sonhava, que acreditava que nem tudo estava escrito no mundo dos homens, que ainda era possível, um último pensamento inspirado, por alguma razão esquecido, que ele tivesse a missão de guardar.

O gigante olhava o monte à sua frente, um trabalho que sabia não ter fim. Agarrou num objecto brilhante e abanou-o junto ao ouvido, fingindo que decidia, antes de o atirar para dentro de uma caixa. Os outros desprezavam-no, invejando a sua sorte, de olhos feitos de esperança, de que um dia iria achar um tesouro, mesmo que há mais de dois séculos isso não acontecesse. Mas o gigante não procurava o que todos pensavam, num desejo que escondia, dia após dia, esperando que ninguém descobrisse.

De repente as palavras pararam, os objectos deixaram de cair, o silêncio instalou-se de uma forma desconhecida. Era um livro, só podia ser um livro. Os dois sabiam, os dois conheciam a lenda, de uma disputa que durara cem anos, para saber quem guardaria um livro, uma história perfeita encadernada a ouro, uma oferta a um Rei louco, que a levara consigo na morte. Os dois esperaram pela decisão, jurando que outros cem anos passavam. Mas desta vez a capa era de cabedal velho. O gigante controlou a dor.


Um encontro raro

O pequeno ser abriu o livro devagar, quase esquecera o toque, habituado às palavras que não eram escritas. Os livros eram quase sempre para os gigantes, sem nada que os distinguisse, contando histórias banais, tantas vezes repetidas, que nunca eram esquecidas. Mas sentia que aquele era especial, pois tinha parado as oficinas, numa dúvida pouco comum, em quem sabia escolher. A primeira surpresa não o desanimou, pois a capa era velha, mas as folhas ainda eram brancas, uma mescla improvável, que tentou não perceber. O segundo olhar trouxe o desconforto, ao mesmo tempo que a porta abanou, no mesmo momento que o livro se fechou. O bater era demasiado forte, obrigando-o a olhar para cima, antes mesmo de abrir. A voz era doce.
— O livro está perdido — disse o gigante sem olhar para ele.
Não havia palavras a mais, os dois só argumentariam por cortesia.
— A escolha foi feita — respondeu calmamente.
O gigante olhou para baixo.
— Não é antigo, pois não?
O pequeno ser respondeu em pose orgulhosa, que não sabia imitar.
— Vocês não deviam vir até aqui.
O gigante sorriu.
— Não é proibido, é errado, mas não é proibido. — Fez uma pausa antes de continuar. — Não é antigo, pois não?
Nenhum dos dois sabia mentir.
— Não, para nós não é antigo — respondeu o ser que tinha a altura de um arbusto. — Como podes saber?
— Porque estive à espera — disse aquele que trazia agulhas de pinheiro presas no cabelo.
— Eu também — disse o pequeno ser.


Uma confiança rara

O convite foi feito, cumprindo as regras que nunca tinham percebido, por não ser possível. O gigante sentou-se no chão, desafiando os seus. O livro foi aberto entre os dois, as páginas viradas à vez, passando pelo que sabiam não ser importante, sentindo a ansiedade do descobrir. Mais de vinte páginas antes do fim, uma, duas, três páginas atrás, seis linhas escritas à mão, no meio do que não tinha sentido, seis linhas que não podiam ter adivinhado, que trouxeram lágrimas contidas, num choro que não sabiam. O desafio chegou sem estranheza.
— Também tens de o copiar? — perguntou aquele que estava sentado.
— Sim, os livros também são copiados — respondeu aquele que teimava em respeitar a altura, o tamanho do segundo mês dos homens. — As cópias são guardadas na primeira sala, os originais são queimados no terceiro forno.
— Este não será.
O pequeno ser não disse nada.


Uma viagem rara

A estrada era quase um mito, poucas vezes falada, feita de perigos escondidos, mas bem desenhada. Pequenas ervas marcavam o caminho, de cada um dos lados da terra batida, sem se atreverem, conservando as curvas do trilho mágico, da única passagem para o outro mundo. Não existiam árvores perto da estrada, como se os bosques tivessem medo, como se tudo pudesse desaparecer. O pequeno ser tentava não ouvir o vento, que trazia promessas difíceis, de clareiras ao Sol. Falou para conseguir.
— Pensas nele?
— Penso no que escreveu — disse o gigante. — Com tão poucas palavras...
— Vocês não sabem ler — disse o mais pequeno dos dois.
— Vocês também estão proibidos de sonhar — disse aquele que tinha de esperar no andar, respeitando as diferenças.
O pequeno ser levantou um pouco a cabeça, quebrando pela primeira vez o juramento. Antes de responder sentiu que podia sorrir, sabia que o outro fingiria não ver.
— Sempre acreditei no sonho, de que algo podia surgir do escuro — disse, voltando aos poucos ao seu andar, feliz pela breve sensação de ser livre. — Só não percebo como se pode esquecer.
— O livro está perdido — disse o gigante quase em sussurro.
O pequeno ser não disse nada. Não tinha a certeza.

A noite caiu, sem estrelas, sem barulhos de animais. Estavam perto da encruzilhada, onde havia uma pedra que tinha sido partida em dez partes iguais, onde um coração tinha sido enterrado. As pedras marcavam diferentes caminhos, que não eram difíceis de escolher, para quem esperara durante tanto tempo. Seguiram pelo terceiro, contando a partir da segunda árvore, no sentido do vento. Faltava pouco, os dois sabiam que faltava pouco.


O menino assustado

O homem estava sentado numa cadeira que baloiçava. Parecia um miúdo, mesmo depois de muitos anos. A pele tinha rugas largas, o cabelo era cinzento, sobre um castanho que desaparecia todos os dias, mas as mãos eram pequenas, como se tivessem desejado não crescer. O pequeno ser reconheceu uma pequena corcunda, vencida mas não esquecida, de quem suportara o peso do mundo, antes de aprender a sentir. Os dois avançaram em silêncio, sabendo que ele não os podia ver, mas esperando pacientemente por um fechar de olhos, um ligeiro dormitar, que recebesse o livro que seguravam. Uma voz afastou os pássaros das árvores, uma mão fechou-se sobre a capa de cabedal. Já não era possível voltar.
— Rui! Rui! Estás aí? Acho que vai chover, senti o vento forte nas janelas.
O homem não respondeu. Uma mulher aproximou-se, pisando a madeira descalça, como fazia quando era ainda uma rapariga.
— Rui, o que se passa? Porque não respondes?
Sentou-se no chão à frente dele, depois de perceber as lágrimas.
Ele abriu o livro, começando a contar as páginas pelo fim. Depois leu devagar, antes de começar a falar.
— Fui eu que escrevi estas linhas — disse, lutando contra o soluçar.
Ela sorriu antes de responder.
— Eu sei Rui.
— Como? — perguntou ele.
— Porque as repetes muitas vezes, quando adormeço no teu colo.
O homem transformou-se num rapaz, num menino pequeno que não se importava de chorar. A mulher era também uma menina, que lhe segurava a mão com força.
— Porque não guardaste o livro? — perguntou ela, ao mesmo tempo que percebeu.
Ele levantou-se e puxou-a para cima.
— Anda, vamos para dentro.
— E o livro?
— Tenho de o perder outra vez — disse a sorrir.


O princípio

O pequeno ser ficou a vê-los entrar dentro da casa de madeira. Falou em poucas palavras, não por cortesia, apenas porque não precisava.
— Não estava esquecido.
Sentiu o respirar por cima dele.
— Não, não estava esquecido.

quarta-feira, agosto 01, 2007

Lua

A rapariga tinha um lenço feito de vermelho e branco. Atado atrás da cabeça, cobrindo-lhe quase todo o cabelo, escondia desenhos de luas nas dobras do tecido. A pele era escura, os olhos à noite eram pretos, de manhã acordavam azuis, um segredo revelado no meio do riso, um desafio que reflectia a luz de uma fogueira. Uma pedra brilhava no colo, uma jóia de lados iguais, que era impossível contar. Uma pergunta fez-me tremer, quando a mão já não era minha.
- Queres saber o que diz?
A voz traiu-me, no que não sabia.
- Quem é que te disse que eu quero saber o futuro?
Não suportei o olhar, que chegou antes das palavras.
- Eu não falei no futuro, eu não sei nada do futuro. Mas posso dizer quem és... achas que tens coragem?
A pedra rodou e mostrou o quarto crescente. Esqueci-me de mim. Gritei.
- Não te mexas! Por favor não te mexas, tens a lua presa dentro da tua pedra. Não é um reflexo, ela está mesmo lá dentro. Eu... eu não acredito...
Ela ficou quieta. Estava assustada, por saber, por não estar preparada. Mas não precisou de olhar para ver, o que ouvira em histórias antigas, o que era proibido ler. Fechou a minha mão antes de falar.
- Desculpa mas não posso, não tenho nada para te dizer.
Afastou-se meio passo, mas a lua continuava a brilhar. Eu queria ouvir.
- E fico sem saber quem sou?
Ela sorriu, ela apenas sorriu, segurando as lágrimas, apertando os lábios. Eu fechei os olhos no perceber. Aproximei-me. Descobri o seu cheiro.
- Porquê o medo?
- Não é medo, eu não tenho medo, mas...
Uma madeixa de cabelo soltou-se sobre a cara dela. Era áspero. Eu adivinhava os seus pensamentos.
- Mas não nos ensinam a acreditar.
- Não... não ensinam.
A lua escondeu-se entre nós.

sexta-feira, junho 29, 2007

For The Dark Finds Ways of Being

Rui esperava nas escadas, preso entre o dia e a noite, olhando a lua que aparecia por cima das árvores. Pela primeira vez em anos sentia-se bem, sabia respirar o ar fresco que chegava devagar. Não era capaz de dizer há quanto tempo ali estava, sorria ao pensar que podia ser desde sempre, que era capaz de acreditar. Viu um brilho num arbusto e disse as palavras, de quem pede em vez de mandar. A luz escondeu-se, na impaciência de se mostrar.
Margarida aproximou-se em silêncio, com um beijo demasiado perto, e um tocar delicado de dedos compridos. Falou no tempo certo, de quem aprendera a esperar.
- Estás aqui há muito tempo?
Ele sorriu antes de responder.
- Sim, estou. Queres ver uma coisa?
O coração dela bateu mais depressa.
- Sim, mostra-me.
Rui esticou uma das mãos em direcção aos arbustos, a outra ofereceu-a a Margarida, que a apertou com muita força. Ao princípio nada aconteceu, apenas o vento nas folhas, e a noite que continuava a chegar. De repente uma luz, que se acendia e apagava, depois outra, com o mesmo brilho incerto, até que apareceram mais, pequenos pontos cintilantes que se juntaram num só. Rui fechou a mão que estava esticada, e trouxe-a até ao seu peito. Margarida não conseguiu conter um riso, quando a luz se dividiu em mil, numa explosão em direcção a eles, no momento em que a tarde se despediu. Falou sem largar a mão dele.
- Rui, são pirilampos.
Ele aproximou-se dela, sentindo o mundo à sua volta, antes dos lábios se tocarem. Por fim a noite chegou.

segunda-feira, junho 25, 2007

O Aviso

Tenho uma história para contar, uma história que ainda não acabou. Mas primeiro tenho de falar nos livros, nos livros em geral, em todos os que já li, todos os que nunca acabei, ou mesmo os que ainda não abri.

Nunca marquei os livros, desde muito pequeno, quando lia aventuras passadas em ilhas de piratas, de lanches de pão com vegetais frescos, que me pareciam esquisitos, e ao mesmo tempo perfeitos. Nessa altura acabava os livros no dia em que os começava. Acho que foi por isso que ganhei o hábito de não marcar as folhas, porque a maior parte das vezes não chegava a parar. Depois comecei a ler livros maiores, que me passaram a acompanhar durante alguns dias, uns durante semanas. Continuei a não marcar o sítio onde parava, o que me obrigava a procurar, ou então a decorar o número da página, o que hoje não sei se seria capaz, por o sentir tão difícil, um número que não quer dizer nada, no meio de tantas outras hipóteses. Somos estranhos, com a nossa capacidade de perceber diferenças, que temo só existam em nós, como distinguir o lado esquerdo do direito, o azul do vermelho, ou reconhecer um riso no meio da multidão.

Uma noite comecei a escrever, depois de mil tentativas falhadas. Escrevi em dor, no meio de sangue e frio, de perda e redenção, até um final de tarde, em tons de amarelo-torrado. No momento em que acabei percebi, contive as lágrimas no saber, que tinha conseguido dizer o que sentia, mais, que tinha conseguido gritar o que estava tão fundo dentro de mim. Depois desse dia escrevi de forma compulsiva, dizendo o que era impossível de outra forma, sofrendo e sorrindo com as histórias que criava. Mais sofrendo do que sorrindo. E parei de ler. Os livros passaram a ser como portas, aberturas para outras realidades. Bastavam algumas páginas lidas, e começava a criar as minhas histórias, fechando os livros dos outros, que eram apenas pontos de partida.


A história

Três anos depois, um pouco mais talvez, juntei dois ou três livros para as férias, um hábito antigo, mesmo sabendo que não os ia ler. Já com a escolha feita olhei para a estante e hesitei, setecentas páginas pareceram-me demais, mas não consegui resistir. Comecei por esse livro, que falava de magia, de feitiços antigos, de magos e de bruxas. Fiquei preso, sempre foram as minhas histórias preferidas, mas que nunca escrevi, preferindo as pessoas, as experiências que não vivi, mas que consigo contar, por tanto as imaginar. Sorri, por voltar ao meu mundo, por sentir que tinha recuperado uma parte de mim, voando depressa através das páginas, assistindo a bailes no meio de sonhos, num mundo de fantasia, com elfos, fadas, corvos, feiticeiros, espelhos, um mundo onde o bem e o mal não se distinguem, onde é mais difícil escolher o caminho.

Não reparei no primeiro sinal, um pequeno sinal, mas que devia ter observado com mais atenção. Um dedo, como prova de um acordo, um pagamento que seria exigido, num contrato feito só de palavras, e num confiar arriscado. Era esse o segredo de uma das minhas histórias, que chegou na forma de um sonho, o mais completo que já tive, que me fez levantar e escrever, para não esquecer, para conseguir contar mais tarde. Um dedo, que faltava na mão de uma mulher, um pequeno detalhe escondido, que nunca contei a ninguém, um prazer só meu, no criar além das palavras, não dizendo tudo o que sei.

Um dia acordei de outro sonho, no tremer de um beijo, sem conseguir perceber, se o beijo pertencia ao sonho, ou ao meu desejo já acordado, uma diferença enorme, entre o que está no outro mundo, ao que acontece depois, mesmo que no mesmo segundo. Como sempre que acontece, fiquei melancólico, lutando por não ter de decidir, por não ter de saber. Acabei com o livro nas mãos, ignorando o aviso, de que o sentimento de falta é mau companheiro, nas dúvidas que chegam com a manhã.

Foi na página cento e sessenta e quatro. Foi nessa página que tudo mudou, que julguei enlouquecer, por ter a certeza de já ter lido aquelas palavras, de já as ter partilhado, de já as ter repetido vezes sem fim. No medo fechei o livro, senti o coração a bater mais depressa, senti uma vertigem que me fez segurar, um frio no estômago do qual não me consegui libertar. Não percebi o que estava a acontecer, pois apesar de o esperar, ninguém está preparado para ver o reflexo num espelho, sem saber de que lado se está. E ali fiquei, tendo sempre desejado o impossível, sempre chamado o outro mundo até mim, sem saber o que iria sentir, quando o visse à distância de um querer. Quando voltei a abrir o livro, demorei a encontrar, porque não tinha marcado, porque quase posso jurar, que as palavras já não eram as mesmas.

Hoje espero, porque sei, porque é a única verdade que conheço, que algumas vezes, em certos momentos, tudo faz sentido, até que no momento seguinte, a realidade apaga a certeza, talvez por não ser verdade, ou porque ainda não sabemos compreender, enquanto um livro aguarda, com um marcador no meio das folhas, numa página que não decorei.

segunda-feira, junho 11, 2007

À Chuva

João olhava para o mar de lágrimas nos olhos. Desde que chegara à praia que chorava sem parar, perdido no meio de pensamentos que repetia vezes demais, de músicas que já deviam fazer parte do passado. Esperava por Maria sem ter a certeza de que ela ia aparecer, sem saber se ia poder desabafar com a única pessoa que o percebia.
Ouviu atrás dele um barulho de carro a parar, seguido de uma porta que se abriu e fechou. A madeira estalou com o peso de alguém a andar em cima dela. João continuou a olhar o mar, apesar de tudo a ansiedade não era tão grande como antes, podia esperar para saber.
Uma voz chegou, sentida como um abraço, apesar do tom brusco.
— Bolas João! Não podes continuar a fazer isto! Sabes em quantos sítios já procurei por ti?
Maria conhecia-o demasiado bem, o que nem sempre ajudava, em desencontros que a irritavam.
— Desculpa ter desligado o telefone — disse, antecipando a crítica —, não era para que tu não me encontrasses.
Ela sentou-se ao lado dele no banco de madeira.
— Pois, espero que não, depois de cinco mensagens a dizer que precisavas de falar comigo. Não podias ter dito onde estavas?
— Eu não sabia Maria, quando dei por mim estava aqui, nem me lembro bem de ter guiado até cá.
Dos olhos verdes continuavam a cair lágrimas, pequenas gotas que se misturavam com a areia. Ela esperava sem perguntar, os dois eram como dois pratos de uma balança, sempre em posições opostas, sempre em equilíbrio, mas nunca à mesma altura. No último ano era sempre o prato dele que estava em baixo, suportando um peso que Maria não carregava.
— Sabes o meu antigo chefe? — disse ele, tentando controlar o soluçar na voz. — Ontem vi-o no metro.
— Aquele em que bateste?
A recordação ainda trazia de volta o sentimento de raiva, mas que, estranhamente, começava a diminuir.
— Eu não lhe bati — disse sem convicção. — Aquilo foi mais um empurrão, ele é que caiu mal.
Maria largou uma gargalhada.
— Caiu mal? Caiu mal de cabeça, queres tu dizer.
— Tens muita piada.
Ela controlou o riso, recordando os momentos difíceis que o amigo passara.
— Desculpa — disse ela, ao mesmo tempo que lhe roubava uma lágrima da face. — Eu sei que tu sofreste muito por causa dele. Mas porque é que te lembraste disso agora?
João falou devagar, como quem pensa em cada palavra antes de a dizer.
— Vi-o ontem no metro, acompanhado de uma mulher, uma rapariga.
Maria esperou.
— Ela devia ter uns trinta anos, um pouco gordinha, mas não era feia, não era... — Tossiu antes de continuar. — Eu nunca achei que houvesse uma mulher neste mundo que o quisesse, era uma garantia minha, de que a vida podia ser justa.
— Castigando-o? — perguntou ela.
— Sim, castigando-o. Eu sei que não é correcto, que não faz sentido passar o resto da vida à espera de o ver infeliz, mas ali naquele momento não fui capaz de conter a frustração, pela bondade no olhar da rapariga, por uma beleza simples, uma beleza que eu achei que ele não merecia.
— Mas não foi só isso, pois não? — disse ela, ao mesmo tempo que o empurrava com o ombro, tentando acalmá-lo.
João tossiu outra vez antes de continuar.
— Não, não foi. O que aconteceu depois deixou-me desarmado.
— Como assim? — perguntou ela de olhos semi-cerrados, por causa da luz e da curiosidade.
— Maria, eles iam um pouco à minha frente, conversando enquanto caminhavam. Eu não os conseguia ouvir, mas consegui perceber que algo se passava, sentia-se um problema qualquer entre eles, como se um dos dois fosse começar a chorar a qualquer momento.
— E depois? — Maria estava ansiosa, dominando as perguntas com medo que ele se calasse.
— Depois? Depois dei por mim a imaginar o que conversavam, a inventar palavras saídas da boca deles, a ter a certeza que estavam a acabar um namoro, que nem sequer sei se existe.
— E?
— E aí começou o meu problema — disse ele em voz baixa. — Dei por mim a desejar que ela não o deixasse, que resolvessem aquilo, que fossem felizes. Merda! Dei por mim parado nas escadas do metro, a desejar que fossem felizes. Percebes isto Maria? Consegues explicar-me isto? Eu sei que não sou assim tão boa pessoa.
Ela olhou para ele e sorriu. João estava com a barba por fazer, uma barba que começava a ser branca e lhe dava um ar engraçado, pois continuava com um ar de miúdo. Maria tinha a certeza que ele seria sempre assim, mesmo quando fosse muito velho.
— Achas que foi pena? — perguntou ela enquanto lhe dava a mão.
— Não, o pior é isso, tenho a certeza que não foi por pena que senti o que te disse. Sabes, eu odeio aquele homem, eu ainda sinto o coração a bater mais depressa quando me lembro de tudo o que ele fez, de tudo o que me aconteceu depois daquele acidente estúpido. Eu não o desculpo, nem acho que ele seja boa pessoa, mas... mas Maria, ontem, enquanto olhava para ele a conversar com a rapariga, nesse preciso momento, senti... — A voz tremia-lhe e mordeu o lábio de baixo. — Bolas! Queres saber a verdade? Senti-me próximo dele, senti uma vontade enorme de que eles ficassem bem, senti que isso era muito importante para mim.
Maria sorriu outra vez, desejando que ele entendesse.
— Olha, já ouviste falar em pessoas que viajam até sítios sobre os quais leram? — A pergunta pareceu estranha, mas deixou João curioso.
— Como assim? Lês algo que se passou num lugar e depois vais visitá-lo?
— Mais ou menos, começou por ser isso. Algumas agências de viagens começaram a aproveitar o sucesso de alguns livros e depois a organizar viagens que seguiam os sítios onde a história se passava.
— Acho que li alguma coisa sobre isso — disse ele sem perceber porque é que ela se tinha lembrado de falar naquilo. — Sinceramente sempre achei que era o tipo de coisas para turistas americanos, daqueles que andam sempre com camisas coloridas.
— Sim, eu sei — disse ela a rir. — Mas houve quem tivesse agarrado nessa ideia e tivesse se lembrado de uma coisa mais simples.
— Algo mais simples? — disse ele intrigado.
— Sim, a ideia é a de ler os livros num sítio que tenha a ver com o título ou com a história dos mesmos.
João passou as mãos no cabelo, tentado perceber o sentido do que Maria lhe estava a dizer.
— Mas não é o mesmo das viagens?
— Não, nada tão elaborado — disse ela entusiasmada. — O livro fala numa praia, tu só o podes ler numa praia, o título é O Comboio Fantasma, tu...
— Leio-o no comboio — completou ele.
— Mas que não tem de ser assombrado — disse ela. — Percebes? A ideia é ser uma coisa simples.
— Maria, acho a ideia muito boa, mas... — A frase ficou a meio de propósito.
— Queres saber porque falo nisto?
Ele fechou os olhos, por não precisar de responder.
— Lembrei-me de uma pessoa — disse ela, aproveitando para recordar. — Uma pessoa que lhe aconteceu uma coisa, não importa o quê, mas algo que lhe mudou a vida.
— E o que é que isso tem a ver com os livros? — perguntou ele.
— Ele... essa pessoa, ele adorava ler dessa maneira, raramente lia um livro sem seguir o ritual de procurar, embora eu ache que às vezes fazia ao contrário, escolhia primeiro o sítio e depois o livro — disse ela no meio de um sorriso.
João sentiu que percebia, antes de ter a certeza.
— E depois? — perguntou ele.
— Aquilo que eu disse que lhe aconteceu, foi uma coisa muito traumática, muito forte, num lugar onde ele esteve anos sem conseguir ir, até que... João, ele um dia apareceu-me em casa, numa noite de temporal, e trazia debaixo da roupa um monte de folhas escritas à mão.
— O que eram? — perguntou ele impaciente, desejando que ela contasse a história mais depressa.
— João, ele escreveu sobre o que tinha acontecido anos atrás, sobre o que carregava com ele todos os dias. — Fez uma pausa antes de continuar. — Ele foi lá, foi lá onde tudo aconteceu e leu o que escreveu, libertou-se, percebes? Se tu o tivesses visto, chorou a noite toda, parecia uma criança.
João ouvia Maria sem dizer uma palavra.
— De manhã queimou os papéis, disse que não precisava mais deles. — Não conseguiu impedir uma lágrima de cair, João fingiu que não reparou.
— Era alguém muito importante para ti? — perguntou com medo da resposta.
— Sim, mas não dessa maneira que estás pensar — respondeu ela. — Foi o meu pai.
João voltou a olhar o mar, lembrou-se dos últimos dias e do que o tinha levado ali. Lembrou-se de tudo o que não entendia, de tudo o que lhe enchia a cabeça. Pensou na história que acabara de ouvir, mais uma vez sentindo, antes de saber.
— Maria, desculpa mas... é que é disto que eu tenho tentado fugir, de tudo o que parece fazer sentido, dos números que escondem segredos, das palavras que parecem ter sido escritas para nós, das músicas que nos fazem doer o estômago. É de todas as obsessões que tento me ver livre, de achar que num segundo posso mudar tudo, dizendo a mim próprio, vezes sem conta, que não existe uma fórmula secreta para resolver todos os problemas.
— Sim, eu sei — disse ela de forma calma.
— Sabes? Então porque é que me contaste isto tudo? O que é que é suposto eu fazer, agarrar em tudo que escrevi nos últimos anos e ir de sítio em sítio ler sobre cada problema da minha vida?
— Não João, tu já resolveste os teus problemas, só não deste ainda conta disso.
O dia ficou mais cinzento, por causa de uma nuvem que tapou o Sol, uma ameaça de chuva que os fez sorrir aos dois, no recordar de tardes de Inverno, em corridas de perder o fôlego.
— Maria, às vezes tenho vontade de te beijar.
Ela sorriu envergonhada, mas sem desviar os olhos dos dele.
— Não sei porque demoras tanto.
A chuva começou a cair.

domingo, abril 29, 2007

A Casa da Bruxa

Foi numa manhã de Abril que me voltei a lembrar de uma história de infância, a da casa da bruxa. O dia começou no cansaço de uma noite de insónia, embalada pelos gritos de uma mulher, uma prostituta que nem deve ter aceite o dinheiro, de tanto prazer que agradeceu aos céus. Afectava-me o desempenho do meu vizinho, que não precisava de pagar, mas que se recusava a dar de outra forma, a partilhar um pouco que fosse do seu dom.
Acordei cedo e lutei para não me deixar ficar na cama, fugi em direcção a um sítio que queria visitar há anos. Demorei menos de uma hora a chegar ao fim da estrada, o resto tinha de ser feito a pé, uma coragem que estranhei, perguntando a mim mesmo porque é que não estava deitado, sorrindo com os cumprimentos matinais que tinha recebido na estação de serviço. Andei pelo meio das árvores até chegar ao cimo de um caminho feito de pedras arredondadas, uns degraus muito gastos serviam de porta de entrada ao miradouro e subi-os dois a dois até ficar cego com o Sol da manhã, antes de conseguir ver a paisagem que me tinham prometido. Jurei a mim mesmo que dali conseguia ver o mundo inteiro e que no dia em que conseguisse voar, seria do alto daquelas pedras que saltaria para o vazio. Um sonho antigo.
Meti-me outra vez à estrada, com outro desejo escondido no sorriso, tinha de deitar fora a ansiedade que me acompanhava nas últimas semanas. Em Abril a minha praia ainda devia estar quase deserta, apenas visitada por doidos e mães divorciadas, acompanhadas por pequenas miúdas de cabelos dourados, que se afastavam para poder brincar.
Deve ter sido a música, só pode ter sido a música que me distraiu, no repetir exagerado, chorando e rindo em partes que sabia de cor. Dei por mim numa estrada desconhecida, com placas que indicavam o destino traçado, mas sem conhecer as casas por que passava, sem saber para que lado a estrada seguia, depois de cada curva feita devagar. Continuei a cantar, voltando sempre ao início da música, sem me preocupar, sabendo que mais cedo ou mais tarde havia de chegar.
Mal vi a casa percebi que já ali tinha estado, era o caminho antigo feito pelos meus avós, antes das auto-estradas, antes de viajarmos sem olhar. Nesses tempos sentia sempre um arrepio na espinha, um medo que demorava, uma vontade de me benzer à qual não cedia, por ter medo que Deus se zangasse, por ter medo que a bruxa estivesse à janela, distribuindo maldições aos que se atrevessem a rezar. Tive de parar.
A casa da bruxa estava na mesma, com os azulejos castanhos e o alpendre cheio de enormes potes de barro. Quando era miúdo só pensava na bruxa, no mal que ela me podia fazer, nunca pensei no bizarro de toda aquela história, uma bruxa que vivia numa casa à beira da estrada, uma casa que não parecia assombrada, que não estava no meio de um bosque sombrio. Nunca me tinha importado com a falta de um ambiente sinistro, sem deixar adivinhar o que estava por trás. Só naquela manhã de Abril decidi que não podia ficar sem saber, que tinha de descobrir o porquê da fama da mulher, que eu nem sabia se existia.
Aproximei-me da porta nervoso, tinham sido muitos anos de virar os olhos, de contar até mil para não pensar em mais nada. A primeira surpresa veio com o toque da campainha, feita de cantos de pássaros, rouxinóis e canários, que não foram suficientes para soltar o riso, para deixar de sentir o medo. A porta abriu-se sem perguntas, ao mesmo tempo que percebi que estava uma chave do lado de fora, um convite que não me deixava descansado, na confusão da simpatia, com uma armadilha montada.
Uma voz chegou até mim, sincera como os olhos da rapariga que apareceu à minha frente.
- Bom-dia, posso ajudá-lo?
Respondi ao mesmo tempo que dei um passo atrás, num gesto automático que não consegui evitar.
- Bom-dia, eu vi que vendem potes e queria...
O olhar da rapariga desarmou-me, mas falou sem parecer zangada.
- Nunca tirei a placa, nunca tive coragem para a tirar. Acho que é uma forma de dizer que estou em casa, uma forma de não me sentir sozinha.
Fiquei a olhar para ela sem conseguir dizer nada. Ela continuou a falar de forma despreocupada.
- Não me estou a queixar, não estou a dizer que me sinto sozinha, não é isso. Estava só a dizer que os potes me fazem companhia, me trazem boas recordações, recordações que não quero esquecer.
No meio da surpresa pelas palavras dela, não consegui evitar a pergunta.
- Mas esta, mas esta não é a casa da bruxa?
A rapariga parou um segundo, ficou completamente imobilizada, antes de rebentar numa gargalhada, um riso que me irritou, ao mesmo tempo que me prendeu. Ela demorou um pouco a recompor-se. Falou ainda no meio de pequenos ataques de riso.
- Ai, não posso, desculpa mas não estava à espera disto. A casa da bruxa? Ai, ai, que eu não aguento.
Esperei mudo pela explicação. Ela esforçava-se por parar de rir, um riso contagioso que me magoava cada vez menos. Devia ser um pouco mais nova do que eu e era muito bonita, o que eu tinha demorado a perceber, por estar à espera de uma bruxa. Ela continuou mais calma.
- Ai, desculpa. Não sei o que me deu. A casa da bruxa? Tu deves estar a falar da bruxa da serra. Sim, é verdade, agora que penso nisso, acho que as casas são parecidas, mas isso fica um pouco longe daqui.
Percebi o meu erro, tinha sido por causa da música.
- Desculpe... desculpa, acho que vinha distraído. E de repente vi a casa.
- E?
A pergunta trouxe um ar curioso, com pequenas rugas nos olhos.
- É que quando eu era pequeno tinha muito medo de passar aqui.
- Na outra casa, queres tu dizer.
- Sim, na outra casa, tinha muito medo de passar perto da outra casa. E hoje o dia começou tão bem, depois de uma noite tão má, que eu... eu nem sei porque parei. Acho que tinha esta dúvida desde sempre.
Ela sorriu, mostrando-me que percebia.
- Às vezes é preciso voltar um pouco atrás, não é?
O meu ar de dúvida não a fez parar.
- Às vezes sentimos que temos de resolver o passado para seguir em frente.
Concordei, sem nunca ter pensado no que era óbvio, no que me prendia.
- Sim, acho que sim.
Ela fechou a porta atrás dela, não para se proteger, apenas por hábito. Sentou-se nas escadas do alpendre e puxou-me uma das mãos.
- Sabes, eu não tenho a certeza que tenha de ser assim.
Sentei-me ao lado dela, num conforto que me fazia sentir bem.
- O voltar atrás?
- Sim, mas eu tenho a resposta na mesma.
- A resposta?
O ar dela era triunfante, como um miúdo pequeno quando sabe um segredo.
- A história da bruxa, a minha mãe uma vez falou-me nela, quando passámos pela casa, embora ache que ela não tenha reparado na semelhança com a nossa.
Esperou um pouco para dominar outra vez o riso. Fez um ar sério antes de falar.
- É uma história simples, uma história triste.
A ansiedade tomou conta de mim.
- Havia mesmo uma bruxa?
- Uma pobre mulher, que numa brincadeira, numa festa, fez algumas adivinhas.
- Adivinhas?
- Sim, acho que se pôs a adivinhar o futuro de todos os que estavam na festa. Não sei porque fez isso.
- E?
- Não sei bem o que aconteceu, a minha mãe também não sabia, mas acho que deve ter acertado em alguma coisa, algo que veio a acontecer a uma das pessoas.
Imaginei a festa, vi todos à volta da senhora, imaginei os olhares apreensivos e as conversas em voz baixa. Mesmo sem saber, percebi que o que a mulher adivinhou não tinha sido agradável. Perguntei com medo da resposta.
- Sabes o que é que ela previu? Não deve ter sido nada de muito bom.
Ela concordou.
- Sim, não deve ter sido. Mas não sei, só sei que foi uma brincadeira que mudou a vida da mulher.
- Porquê?
- Não sei os pormenores, a minha mãe só sabia da história porque havia uma senhora que trabalhou aqui connosco que era de lá, que tinha família para esses lados. Só sei que ela e o marido tiveram de se mudar.
- Foram embora?
- Sim.
Voltei às viagens com os meus avós, às centenas de vezes que passei pela casa que me assustava.
- Então, quando eu passava na estrada...
Ela percebeu.
- Sim, não estava lá ninguém, só uma história que se espalhou, uma história triste. Desculpa, quando perguntaste pela bruxa só me deu para rir, não pensei logo nisto. Lembro-me do dia em que a minha mãe me contou, lembro-me de nesse dia ter vindo para casa a pensar como é que tinha sido o resto da vida daquela mulher.
Fiquei um pouco calado, tentando arrumar recordações antigas.
- Bolas, que história! Uma coisa tão simples e uma marca que ficou para sempre.
Ela apenas fechou os olhos, sem precisar de responder. Não senti a obrigação de fazer conversa, mas falei na mesma, deixei as palavras saírem sem pensar.
- E tu? Vendes potes?
Ela riu-se de uma forma que me fez tremer.
- Não, eram da minha mãe. Ela e o meu pai foram viver para o norte, para ficarem mais perto dos meus avós.
- E tu ficaste?
- Eu estive a estudar fora, tinha acabado de voltar e decidir ficar, muitas das coisas que mais amo estão perto daqui. Na altura tinha imensos planos para mudar a casa, mas foi sempre assim que a conheci e ainda não decidi arriscar, um dia deste tenho de pensar nisso outra vez.
- E nunca vem cá ninguém tentar comprar nada?
- Não. Estranho não é? Mas pessoas a fazer perguntas sobre bruxas, isso é quase todos os dias.
O riso voltou e o final da manhã ficou perfeito. Ela fez um ar arrependido antes de continuar, um pequeno sorriso que eu tentei decorar.
- Eu sou a Raquel, queres entrar?
Lembrei-me que ia a caminho da minha praia.
- Eu sou o Rui e adorava entrar, mas...
- Mas...
- Eu ia a caminho de um sítio, é um sítio secreto, onde nunca levei ninguém.
Ela esperou que eu continuasse.
- Queres ir comigo?
- Nunca lá levaste ninguém?
Sorri envergonhado.
- Não.
Ela devolveu o sorriso.
- Sim Rui, quero ir.
Foi nessa manhã de Abril, uma manhã de caminhos trocados, de músicas repetidas, de segredos partilhados, foi nessa manhã que me voltei a lembrar da casa da bruxa, um medo de pequeno que se transformou, mas que nunca esqueci.

domingo, abril 08, 2007

Fugir

Sentada na areia Joana esperava, de olhos no mar, de pele beijada pelo vento, de mãos em contar infinito, da areia que escorria. O barulho de passos não calou os lábios secos, no dizer de um poema. João esperou um pouco antes de falar.
- Eras capaz de repetir isso para sempre, não eras?
Joana não respondeu logo, não precisava de responder. Sentia a cara quente por causa do Sol, imaginava a marca do dia seguinte, mas resistia a mexer-se. A praia estava quase deserta, mas em breve deixaria de ser sua, até ao Outono, até aos últimos dias de Setembro.
- Viste o teu pai?
João respondeu, entre os dedos fechados sobre a boca.
- Foi esquisito.
O mar desapareceu.
- Esquisito como?
- Eu estava sentado no café e vi-o ao longe.
Parecia que escolhia as palavras.
- Eu sei que parece impossível, mas acho que nunca tinha observado o meu pai ao longe, como quando olhamos outra pessoa, um desconhecido qualquer.
- E o que viste?
- Vi um homem cansado, de aspecto frágil. Vi um homem velho, de pernas magras, de cabelos brancos e olhar triste, desorientado. Sabes, ali no meio do centro comercial, entre centenas de desconhecidos, acho que olhei para ele como não fazia há muitos anos. Doeu muito Joana.
Ela hesitou, na história que queria contar, sem saber se conseguia.
- Alguma vez te contei da vez que o meu pai desapareceu?
- Não, acho que não deves ter contado, sou eu que estou sempre a falar do meu.
Joana inspirou fundo antes de começar.
- Quando o meu pai fez trinta e oito anos, no dia em que fez trinta e oito anos, a minha mãe deixou-o dormir até tarde, ele gostava de dormir de manhã. Nesse dia ela pediu-me para o acordar para o almoço, lembro-me como se fosse hoje, de ter subido as escadas depressa, de levar um beijo preparado, um abraço desejado, que me protegia, que me fazia sentir segura. Mas encontrei uma cama vazia.
- Como assim?
- Em cima da cama estava um papel, uma mensagem com poucas palavras, que dizia para não nos preocuparmos, que apenas nos dizia para não nos preocuparmos.
- Mas... onde? E a tua mãe?
A recordação do momento era dolorosa, mesmo depois de compreender, era sempre dolorosa.
- A minha mãe? A minha mãe estava na cozinha, lembro-me que estava a pôr um bolo no forno quando entrei aos gritos, era um bolo de chocolate, daqueles que eu nunca vou conseguir fazer.
- Mas e ela?
João percebeu a dor, misturada no meio de sorrisos.
- Ela ficou calada uns minutos, depois continuou a preparar a festa, que ambas sabíamos já não ir acontecer.
Fez uma pausa antes de continuar. João não a apressou.
- Voltou uma semana depois, exausto, com a barba por fazer. Trazia pequenas folhas presas no meio do cabelo, a roupa manchada de castanho e verde, e cheirava a flores.
- A flores?
- Sim, não deve ter tomado banho em toda aquela semana, e só cheirava a flores.
João imaginou o pai de Joana todo coberto de folhas, sentiu vontade de desaparecer também.
- Ele não contou, pois não?
Ela sorriu.
- Não, nunca disse uma palavra sobre o assunto.
- E a tua mãe?
Os olhos de Joana abriram-se muito. Uma vez João pedira-lhe para tirar os óculos escuros, para ver a sua expressão, para poder ver através deles, para sentir as histórias que contava. Desde esse dia, desde esse primeiro pedido, era sempre a primeira coisa que ela fazia quando estavam juntos, no meio de sorriso partilhados.
- João, se tu pudesses ter visto o brilho nos olhos dele, se o tivesses visto quando entrou em casa. Era impossível ter perguntado.
- Joana...
Ela sabia o que ele ia perguntar, esperou pelas palavras.
- Joana, eu vi o meu pai pela primeira vez, não foi? Eu hoje, quando o vi a andar sem ele saber, foi isso que estranhei, foi ter percebido que ele tem uma vida, para além de ser pai, de ser marido, de também ser filho. É isso que me estás a querer dizer, não é?
Como em tantas outras tardes, Joana ficou em silêncio, no prazer de poder esperar, de não ter pressa em responder.

quinta-feira, março 29, 2007

Dormir

Rui olhou para a cadeira partida e mordeu o lábio de baixo. O gosto de sangue na boca não o fez mexer.
- Filhos da puta!
A mãe gritava desesperada, lutava por se libertar dos braços fortes que a agarravam. No meio de palavras sem sentido mordia, arranhava, esmurrava. A sua cara era a mais perfeita imagem de dor que alguma vez tinha visto. Como se todos os músculos da cara tivessem paralisado num segundo, como se ela se tivesse transformado numa estátua, no momento de maior sofrimento de uma vida. Não parava de gritar.
- Eu não quero! Eu não quero! Deixem-me!
Não conseguia desviar os olhos da cadeira, da madeira sobre o tapete. Sempre ali estivera à espera, até ser destruída em poucos segundos. Um som abafado chamou-o de volta. O pai deixou a mão esquerda debaixo do braço, na tentativa de esconder, de não conseguir confessar, de não ter coragem de pedir perdão, pelo que ninguém o culpava. A mãe caiu desamparada, depois de um momento de equilíbrio impossível. Desejou que estivesse morta e hesitou na ajuda, no baixar em esforço, no cansaço de tantos dias, do afecto esquecido, que já não acreditava ter tido.
- Pai... eu não aguento.
O pai ajoelhou-se sem responder. Tocou no cabelo dela e penteou-o com as mãos, desfez-lhe as rugas de dor com cuidado, num saber feito de dedos acostumados. Moldou um sorriso suave, em jeito de despedida, da melhor maneira que sabia. Amava-a, no meio da loucura continuava a amá-la, mais do que tudo.
- Vai Rui! Ela não vai demorar a acordar, se queres vai agora, não saias com ela aos gritos, não a leves assim contigo, vai-te pesar para sempre.
O pai chorava enquanto falava, num controlo que parecia frágil, mas sem ceder ao desespero, sem poder ceder ao desespero.
- Pai, eu não queria que fosse assim, mas... mas eu não aguento, eu preciso...
- Tens de viver... eu sei, tu tens de viver.
Rui fechou os olhos, imaginou-se a dormir, em cobertores aconchegados, no toque frio de lençóis. A cadeira continuava a um canto, num desafio que não suportava, por lhe mostrar que não era capaz, que não tinha força para ficar. O resto da sala olhava, sofás castanhos de pele, com pequenos ornamentos de metal, quadros de olhos desviados, de sombras em chão de pedra, com pessoas a dançar. Ao fundo um enorme móvel de madeira escura, quase preta. Tinha resistido a tudo, ao repetido desmontar, na tentativa de fugir, ao passar do tempo, que parecia sempre maior. No meio tinha umas gavetas com puxadores dourados, gavetas que estavam sempre vazias. Lembrava-se de as abrir e fechar, de aprender a contar nesse gesto supersticioso, de ter medo do que pensava, de repetir boas palavras, no meio de pensamentos tristes. No tecto um candeeiro feito de mil vidros, imitações de cristal, que quase não faziam barulho. Tinha uma única recordação, de uma tarde de sol, de reflexos na parede, de adormecer devagar.
- Pai...
- Não expliques, não digas nada, vai... vai antes que ela acorde, peço-te... vai antes que ela acorde.
Rui limpou as lágrimas, antes de sorrir.
- Pai, ajuda-me a pô-la no sofá.
Abraçaram-se, num choro que era dos dois, que nunca os ia deixar longe, em dias que não podiam adivinhar. Rui tocou na cara da mãe, tentando aprender, deixando os dedos perceber, um sorriso que teimava em desaparecer.

domingo, março 11, 2007

O Homem na Esquina

Rui adorava aquela altura do ano, quando ainda não fazia calor, quando o suor ainda não lhe escorria pelas costas, e sentia arrepios pela manhã. Ia todos os dias a pé para o emprego, para poder olhar as pessoas, sentir o cheiro das últimas castanhas, trazido pelo vento, que lhe lembrava o frio. A cidade habituara-se a ele, ao seu andar devagar, ao sorriso escondido, à música repetida em voz baixa.
Ao chegar à Rua Augusta, uma última mania, uma obsessão antiga, raspar o ombro numa das esquinas, sujar o casaco na pedra. Sempre que não usava o Metro passava por ali, tocava na parede, um ritual que não podia explicar. Naquele dia, como em tantos outros, avançou decidido, antecipando a dor, que não chegou a sentir. Encostado ao prédio, um homem de barba cinzenta, mal cortada mas limpa. Ficou parado no meio da rua, sem saber o que fazer. Não podia continuar, não tinha por onde passar, mesmo que pudesse esperar, por um leve afastar, por meio metro de caminho. Nunca poderia passar entre o homem e a esquina, ficariam para sempre ligados, com as vidas cruzadas.
Passaram dez minutos e sentou-se no chão, mais tarde podia telefonar, para mentir, uma desculpa qualquer, mas não podia sair dali, estava preso. O seu adversário parecia ter tempo, nem sequer olhava para ele, apenas murmurava algumas palavras, rezas que imaginava. Observou-o várias vezes, até o decorar, cabelo comprido debaixo de um boné azul, roupa lavada, de certeza emprestada, e mãos perfeitas. Era isso que o incomodava, as mãos eram perfeitas, as unhas estavam arranjadas, sem o poderem estar. Era como se tivessem tirado um vagabundo da rua, o limpassem durante semanas, lhe dessem comida quente, uma cama com lençóis de flanela e uma manta às riscas. Mas não pudessem apagar a rua, marcada na pele, nos olhos quase fechados. Ouviu pela primeira vez a voz dela.
- Não consegues passar, pois não?
Respondeu sem olhar.
- Não, não consigo.
- É na parede que tocas?
Não valia a pena mentir.
- Na esquina, mesmo onde ele está.
Ela sentou-se ao seu lado.
- Já reparaste que parece fazer de propósito?
- Sim, não sei como, mas ele parece saber. Acho que não vou sair daqui tão cedo.
Demorou muito tempo a virar a cara, depois de a tentar adivinhar. Continuou.
- Sabes, não estava à espera, julgava que já era capaz de superar isto. Mas ele está tão agarrado à parede.
- Já não te acontecia há muito tempo?
- Sim, desde que o escrevi em história. Pensei que me tinha libertado.
Estavam sentados a uns cinco metros do homem, mas não tinha a certeza que ele não os ouvisse. Ela continuou, em palavras esperadas.
- Quem foi?
Ele riu-se.
- A minha avó materna.
- Alguma vez fizeste a pergunta, alguma vez te explicou porque o fazia?
- Sim, mas só em sonhos, em palavras escritas.
- E ela, nunca leu essas palavras?
- Não, não tive coragem, nela é tão natural. Uma vez montaram uma escada à porta de casa, umas obras quaisquer no andar de cima. E ela para sair tinha de passar debaixo da escada.
Sentiu o olhar curioso, antes da pergunta.
- E ela?
- Esteve dois meses sem sair, a minha mãe tinha de lá ir todos os dias levar comida.
- A sério?
- Sim, mas sabes o mais engraçado?
- Diz.
- Eu acho que nem era bem uma escada, mas ela enfiou aquilo na cabeça.
O homem não se mexia um milímetro.
- E essa história, a que escreveste, como é que acabava?
- Como todas as outras, meio perdidas, no desejo que as consigam perceber.
Ficaram calados, de ombros colados, ao som dos carros que passavam. Rui gostava de imaginar, de sonhar a rua cheia de saltimbancos, com tochas a arder que iluminavam as caras que espreitavam, com o tilintar das moedas, sacos cheios de ouro, chapéus com guizos, fogo cuspido, pequenos cães que andavam em duas patas.
Continuava sem saber o nome rapariga. Sentia-se confortável com isso, desejava não ter perguntado sempre, ter descoberto mais cedo, o prazer de esperar. Ela interrompeu os seus sonhos, pelo menos parte deles.
- E tu, porque é que voltaste a ser um rapaz assustado? Ou nunca deixaste de o ser?
A resposta era simples
- Vivia num sonho, recusando viver, por ter tudo o que queria. Um dia quiseram acordar-me, trazer-me de volta ao mundo.
- Médicos?
Rui fez um ar misterioso, que não conseguiu manter, por causa da vontade de rir.
- Eu gosto de os ver como feiticeiros.
Ela sorriu, com os olhos a brilhar. Ele imaginou que reflectiam o fogo das tochas.
- E porque é que voltaste?
Respondeu de olhos fechados, como quem pede permissão.
- Na verdade demorei, quiseram que decidisse, que escolhesse entre duas vidas.
- E?
- Estive dois anos internado.
Ela não conseguiu esconder o espanto.
- Foi difícil?
Ele hesitou, mas continuou.
- Não percebes, eu escolhi o sonho.
- Durante dois anos?
- Podiam ter sido mais, ou apenas um dia, não era importante, só me lembro do dia em que saí, de estar sentado numa cama, com uma mala à minha frente. Nem fui eu que a fiz.
Sentiu uma mão na sua.
- Mas voltaste.
- Sim, voltei.
- Queres contar?
- Um dia... um dia ela desafiou-me...
- Ela... desculpa, continua.
- Ela desafiou-me, a viver também neste mundo.
Antes de continuar olhou para a rua, prometeu que iria voltar à noite, sabia que ia estar cheia de magia, de pequenos teatros de marionetas, de mulheres contorcionistas, de pessoas pequenas, e de gigantes brincalhões, a cumprimentar quem passa.
- E conseguiste?
Rui levantou-se e ajudou-a a erguer-se.
- Mais ou menos, ainda fico preso...
- Por pessoas no caminho?
Sabia que ela o entendia, desde a primeira pergunta.
- Sim, por pessoas no caminho.
- Rui... e ela?
Estranhou, por nunca ter dito o seu nome. Respondeu no respirar.
- Ainda ando à procura, os dois mundos são diferentes.
Demorou um segundo, numa pausa para pensar.
- Se calhar és tu...
Um som de guitarra chegou até eles, trouxe palavras simples, mil vezes ouvidas, mil vezes repetidas. Começou a pensar na noite, a escolher as palavras, no momento certo para a convidar. Ela tentou disfarçar um sorriso, um sorriso do tamanho do mundo.
- Queres voltar para trás?
Ele olhou mais uma vez para a rua, já não conseguia fugir do sonho, da noite que demorava em chegar.
- Não, não é preciso, vou passar. Acho até que lhe devia agradecer, por me ter feito parar.
Ela continuava a sorrir.
- Podes estar cá às oito?
- Sim Rui, estou aqui às oito, neste mesmo sítio.
Não houve despedida, apenas um saber, um sentir, de um noite mágica, com a qual não conseguiam deixar de sonhar.
O homem na esquina sorriu, antes de se afastar devagar.

domingo, março 04, 2007

O Carro Antigo

Era a única pessoa na praia. Lembro-me de ser a única pessoa na praia quando vi o carro a descer a estrada. Era um carocha dos antigos, feito de um verde quase azul, de tantas pinturas. Não podia acreditar que o tinhas, pensei que gozavas comigo ao telefone, quando me avisaste, quando me disseste como ias aparecer. Sorria ao ver, tinham passado quinze anos, mas o carro tinha de certeza muitos mais.
Paraste ao meu lado e eu não hesitei, em ouvir o ranger da porta, num esforço de lábios fechados. Não falava com ninguém há dois dias, o cumprimento saiu em forma de voz rouca.
- Olá!
- Olá Júlio, não mudaste nada.
Passei as mãos pelo cabelo, para ter a certeza que mentias, para provar a mim próprio que o tempo passara, voara sem eu dar por isso, até te ver de novo.
- És simpática, mas a verdade é que mudei.
Sentei-me no banco de pele castanha, senti um toque áspero nas mãos, como um aviso, que não me deixava esquecer.
- Ainda não acredito que andas nisto, já devia ser uma antiguidade quando te foste embora.
- Era do meu avô, o carro era do meu avô.
- Ele?
- Sim, morreu há dez anos.
Arrependi-me no momento, lembrei-me de ouvir uma voz chamar-te, lembrei-me de sermos crianças, em brincadeiras sem fim.
- Desculpa, ele era como um avô para todos nós.
Os teus olhos brilharam.
- Não consigo vendê-lo, acredita que já tentei.
Riste de forma sincera, como só tu sabias, como só tu sabes.
- Se soubesses quantas vezes já fiquei parada.
Ri-me também, por educação, por partilha, sem saber porquê. Não me sentia nervoso, tudo era como tinha de ser.
- Júlio, deves estar a pensar...
Não a deixei acabar.
- Não Luísa, não estou a pensar em nada, estou só contente de te ver.
Inclinaste a cabeça, como quem olha pela primeira vez. Eu insisti.
- Eu não estava a mentir, mudei mesmo.
- Estou a ver, percebo que sim.
Nunca vou esquecer, o meu olhar demorado, um vestido de cores vivas, com um perfume de fazer fechar os olhos. No colo um botão aberto, reflexos de um fio de prata, que já brincara no meio dos meus dedos. Em silêncio relembrava a letra de uma música, um pedido em tom suave, para ficares comigo. Então deixei a minha mão na tua, o teu cabelo encostado a mim, da cor dos raios de Sol, que se escondiam no meio das folhas das árvores. Falei em voz baixa, continuei a pedir para ficares, para nunca nos perdermos. Tu apenas sorrias.

Era a única pessoa na praia. Repetia para mim o que não era verdade, pois os teus braços estavam no meio dos meus, os teus lábios passavam-me segredos, em beijos cheios de ti. Quando fecho os olhos, vejo sempre a luz no vidro, ouço o mar ao longe, sinto o teu cheiro, a tua pele nas minhas mãos, os seios descaídos, num envelhecer que me trazia a certeza, o saber, a calma, de já nada importar.
Um beijo, só desejava um beijo, como o primeiro, em jogos de miúdos, em tardes de Verão. Mas tinha-te em mim, como nunca tinha tido, como nunca tinha conseguido ter, por não saber como. E escrevo, transformo em palavras o que recordo, como se visse tudo de fora, dois corpos sem idade, num silêncio imaginado.


Ao fim da tarde

Sentámo-nos na areia, a trocar um cigarro, inspirando o fumo à nossa volta. Repito as tuas palavras, para não as esquecer.
- Nunca imaginei ver-te a fumar.
Roubei um pouco do que não era meu, ao respirar com mais força.
- Só em ocasiões especiais.
Ela riu.
- Como quando tens sexo com uma... O que somos nós Júlio? Ia dizer com uma velha, mas acho que ainda não sou uma velha, mas também não sou... O que somos nós Júlio?
Lembro-me do que respondi, só o escrevo por querer sentir.
- Luísa, não sentes? Não sentes este torpor que percorre o corpo, um estremecer que demora?
Ela parou para pensar.
- Sim, sim... acho que tens razão. Júlio... podemos ficar aqui, podemos ficar sem falar?
Nunca cheguei a responder.

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

A rapariga do sorriso

- Lembro-me como se fosse hoje. Lembro-me de ter descido as escadas do metro ao som da música, marcando cada tempo em degraus gastos. Era tarde e caminhava lentamente para casa, para um jantar de olhos na televisão, de comida mal mastigada. Quando me sentei à espera senti um olhar, um observar escondido, feito de roupas cinzentas. Olhei por entre as pessoas e um sorriso cresceu para mim, lábios perfeitos, juntos sem esforço. Levantei-me depressa, numa corrida disfarçada, num aproximar nervoso. E fiquei junto a ela.
Maria ficou a olhar para João sem dizer nada, ansiava pela história, verdadeira ou não, desde que a fizesse chorar. Ele continuou.
- Mas não percebi logo, distraído pelos sapatos dela.
- Os sapatos?
- Sim, os sapatos estavam gastos, eram velhos, com umas fivelas muito feias.
- Mas ela...
- Ela estava bem vestida, em tons de cinzento, já te disse. Parecia ter saído de uma montra.
Maria falou, de riso tapado.
- Menos os sapatos...
Ele assentiu, de punhos cerrados.
- Sim, menos os sapatos.
- João, foi aqui?
Ela sabia que sim.
- Sim, eu estava sentado neste mesmo banco.
Maria parou de contar as pessoas, um vício antigo, de horas de espera. Aguardou as palavras em forma de poema, como João sempre fazia. Ao longe ouviu o metro que se aproximava e viu todos a levantaram-se. Eles deixaram-se estar, era o metro das oito, que vinha sempre vazio, reservado, sem paragens. Todas as quintas-feiras vinham ali, assistir à passagem daquele comboio fantasma, que deixava todos nervosos, que lhes trazia risos contidos, na educação de não magoar.
- Fala-me do sorriso.
João fez um ar de indecisão, que não sentia.
- Como é que sabes que vou contar a história do sorriso?
Os olhos dela brilharam.
- Prometes-me que a contas há tanto tempo.
Ele começou a falar, com as mãos juntas em prece, em que não acreditava.
- Maria, ela sorria... ela sorria.
- Sim, eu isso já percebi. Mas porque é que esse sorriso foi tão especial? Era para ti?
- Ao princípio achei que sim, depois duvidei, porque ela... eu nem tinha a certeza que ela estivesse a sorrir.
Uma música começou a tocar na cabeça de Maria. Acontecia sempre que não percebia alguma coisa, quando se zangava, quando estava confusa, trauteava sempre a mesma música, sem fazer um único som. Esperou que ele continuasse.
- É que... é que a cara dela, a cara dela podia ser assim mesmo, percebes?
- Não, não percebo.
Os olhos dele abriram-se, em nervos de não poder continuar a história.
- Maria, eu não sabia se ela estava a sorrir, ou se era a forma da sua cara, da sua boca, um sorriso eterno, um sorriso leve, mas que durava para sempre.
As palavras fizeram sentido, e ela deixou-se cair sobre a parede de metal, que lhe deixava um gosto esquisito na boca.
- Sim, percebo. E o que é que fizeste?
- Entrei atrás dela no metro, queria-me sentar à sua frente, para decidir sobre o que me incomodava, ao mesmo tempo que me dava conforto. Mas só sobrou um lugar ao lado dela, que me escondia, que não me deixava ver.
- Não conseguias ver o sorriso?
- Não, só as unhas pintadas de vermelho.
Maria não conseguiu evitar uma leve ironia, um tom diferente na voz.
- Mas não tinhas dito que eram só os sapatos?
Ele fingiu que não percebeu.
- Disse, mas as unhas também estavam pintadas, com um vermelho muito vivo.
Ela adorava o dramatismo, o sentir, em pequenas coisas.
- Mas afinal qual era o mal das unhas? O vermelho não é assim tão mau.
- Não percebes, não era só a cor, elas... as unhas estavam pintadas como... como se...
Maria sabia bem o que é que ele queria dizer e libertou-o da tortura, de não conseguir.
- Como quando as miúdas pequenas pintam as unhas.
Ele suspirou de alívio.
- Isso, sim, é isso. Mas não estavam... o verniz não saía para fora das unhas, percebes?
- Como assim?
- Era como se tivesse muitas camadas, como se ela as tivesse pintado vezes sem conta. E depois... eram muito pequenas, cortadas até ao limite da dor, em dedos sem vida, pouco elegantes.
A música voltou, Maria deixou-se embalar.
- E o que é que fizeste?
- Ela saiu logo na estação seguinte.
Maria quase se levantou.
- O quê? Sem perceberes o sorriso? Desculpa, mas como é que conseguiste viver sem saber?
Um segundo, João demorou apenas um segundo a responder.
- Não consegui, fui atrás dela.
Chegou um metro e dezenas de pessoas saíram apressadas. João foi o primeiro a parar de rir.
- Acho que ainda não foi desta.
- Parece que não, mas eu sei João, sei que um dia destes vai acontecer.
- Sim, dois reservados, um a seguir ao outro.
Maria fez um ar muito sério, em que nenhum dos dois acreditou.
- Sabes do que é que eu sinto mesmo falta?
- Não.
- Papel de parede.
Era a vez dele ouvir.
- Se soubesses como sinto a falta de passar as mãos pelos desenhos, como em casa da minha avó. Há coisas que nunca deviam desaparecer.
- Eu segui-a.
- O quê?
- Ouviste bem, segui-a, como um daqueles tipos dos filmes, obcecados por alguém.
- Mas, e... conta-me tudo, e ela? João! Diz-me que esta tem um final feliz, por favor.
Ele encheu o peito de ar, como se fosse contar tudo num só respirar. Respondeu em ar traquina.
- Ela esperou por mim atrás de uma esquina, atirou-se para a minha frente em desafio.
- Não acredito! E tu?
- Maria, eu já ia com os olhos cheios de lágrimas, de desespero de a perder.
- Tem um final feliz, eu sei que tem um final feliz.
Maria pôs-se de pé em cima do banco e gritou, girou sobre si mesma, de saia feita de vermelho e amarelo. As pessoas riam-se ao passar, de inveja de não saber. Então agarrou na cara de João e puxou-a até ela.
- Conta-me!
Outro segundo, apenas outro segundo, mais longo do que qualquer outro.
- Um beijo, de lágrimas que se tocaram, num abraço quente...
Não aguentou e completou a frase dele.
- Que nunca conseguiste esquecer.
- Sim.
Maria apertou a boca com força, fechou um soluço com os dedos, sem conseguir respirar, até o soltar, de olhos quase fechados em dor. Falou a chorar, num sentimento sem nome, em breve sorriso, e palavras ditas devagar.
- Tu... sabes ao menos o nome dela?
Ela percebeu o tremor nele, um arrepio que lhe trouxe um sorriso.
- Sim, mas é um segredo que não posso contar.

domingo, janeiro 21, 2007

Em Verso

O coração de João batia mais forte, como se fosse rebentar, um fim longe de casa, numa estúpida viagem, que não queria ter feito.
- Não aguento, não posso mais, é que neste momento, para mim é demais.
Ana sentou-se nas escadas a rir, da rima e da sua sorte. João tinha decidido só falar em verso, depois de um desgosto de amor. Mas para quem não nascera poeta, a decisão levara ao silêncio, a palavras estranhas, de sentidos trocados. O riso fê-la esquecer a tortura, de seis meses contados, antes de começar a falar.
- Não desistes pois não? Homem, ela foi embora, não volta mais, percebes? E tu não podes continuar com este disparate, vais afastar todos.
Ele continuava a respirar com dificuldade, sem responder. Ana levantou-se, de cara zangada.
- Chega, eu não alinho mais nisto, vou-me embora! Podes ir pensando, podes ir decorando, palavras que rimem com “sozinho”. Eu continuo o meu caminho.
Desceu as escadas, dois degraus de cada vez, numa pressa que não queria esconder. João ficou a olhar para ela, até ser apenas um pequeno ponto, que se misturou com o rio de gente, que passava numa rua abaixo. Falou, porque ninguém o podia ouvir.
- Desculpa, eu também estou farto disto.
Pela primeira vez em meses não rimou, sentindo um vazio, pelo que já não fazia sentido. Olhou para cima e viu uma varanda cheia de flores, uma cortina branca que esvoaçava, ao som de um piano, de notas tristes repetidas. Não conseguiu reprimir um grito, um chamar por alguém, que não sabia se existia.
- Olá! Olá! Quem está aí a tocar?
A música parou e a cortina caiu de forma suave, pela falta de vento. Um senhor muito velho mostrou-se à tarde, vestido com uma espécie de roupão, muito gasto nas mangas. O cabelo tinha sido louro, mas faltava demasiado, para ser possível perceber, porque é que o penteava, com cuidados de cavalheiro. João ficou à espera que ele falasse, que lhe respondesse, mas ele mantinha os lábios juntos, segurando um cigarro, que voltara a acender. João não aguentou.
- Senhor! Boa tarde, eu... era o senhor que estava a tocar piano?
O velho tossiu antes de responder.
- Sim, era eu. Era você que estava aos gritos? É difícil tocar, é difícil a ouvir gritar.
- Sim, era eu e...
Ana já devia estar no hotel.
- Era eu e uma amiga. Ela foi-se embora, eu... eu tenho estado insuportável.
O velho tossiu outra vez, enquanto sorria.
- Suba! É o primeiro esquerdo, a porta do prédio está aberta, como se alguém fosse entrar.
Não percebeu a frase do homem, mas a porta estava mesmo aberta, uma porta antiga, que já tinha sido verde. As escadas eram de madeira, de uma cor diferente do corrimão, de verniz a estalar. O cheiro era quase insuportável, por ser tão forte, de recordações, tantas vezes vividas, para sempre guardadas. A tosse veio antes da voz.
- Sentiu, não sentiu?
Não sabia do que ele falava, o cheiro roubava-lhe a razão.
- Desculpe, não percebo.
O resto do cigarro ardeu todo de uma só vez.
- Claro que percebe.
Hesitou na certeza, antes de responder.
- É... é o cheiro, o pó no ar, o toque da madeira, eles contam...
O velho sorriu de orelha a orelha.
- Vidas, eles contam vidas. Sabe porque é que é assim? Eu tenho uma teoria.
- Uma teoria?
- Sim! É da madeira, ela absorve tudo.
João fechou os olhos, para sentir mais uma vez, antes de entrar no apartamento. Ele tinha razão.
A casa estava demasiado cheia, como se cada canto tivesse esperado, por um candeeiro em forma de mulher, por um relógio de marfim, uma máscara africana, de olhos assustadores. Percebeu que podia ficar ali dias inteiros, sem precisar que lhe contassem, por preferir imaginar, viagens sem fim.
- Tem aqui muitas histórias.
Duas mãos envelhecidas acordaram o piano, notas tocadas quase em silêncio.
- Não se ofenda por não olhar para si, a música também nos aproxima, também nos faz compreender, perceber os outros.
- A música?
O velho sorriu, antes de responder, numa frase demorada, quase cantada.
- Sim, a música pode ser melhor que as palavras, quase tão perfeita como o toque. Meu rapaz, se conseguir conhecer alguém desta forma, se ela também...
João percebeu o que o homem fazia, depois de estranhar. Ele falava ao mesmo tempo que a música, ao mesmo ritmo que os dedos tocavam no piano, num entoar que só fazia sentido, depois de se acreditar. E juraria para sempre, que o fazia a chorar.
- Eu fazia versos, eu só falava em verso, rimas difíceis, que me deixavam preso, no que não conseguia dizer.
A música parou e o homem virou-se para ele. Parecia tão velho, e ao mesmo tempo tão limpo, tão doce, que lhe apeteceu abraça-lo, num choro que recusava, que esquecia, há demasiado tempo. Sentiu conforto na voz dele, mesmo no meio do silêncio.
- Rapaz, temos muito que falar.
Lembrou-se de casa, e de chá com canela, em tardes de Inverno.

domingo, janeiro 14, 2007

O Espelho

Passo frente a um espelho, daqueles que esquecemos na parede, gastos nos cantos. Vejo uma cara envelhecida, pelo passar das horas, minutos de que perdi a conta. Estou despido, pêlos brancos no peito, mostram o caminho fechado, de volta ao passado. Fecho os olhos, até ver os teus.

Combinámos que serias tu a escolher o sítio, mas agora duvido, por estar perdido. O teu carro ao longe, demasiado lento, aumenta a minha ansiedade, em saber o que queres de mim, depois de quase te conseguir esquecer. A porta abre-se devagar, o convite confunde-se com a dúvida, e fico junto ao muro, por não conseguir andar. Espero por ti. Pela voz que nunca deixei de ouvir.
- Olá.
Desisto das primeiras palavras, todas inúteis, desajustadas do momento. Fico em silêncio, para não errar, para não começar a perder, mais do que já sinto.
- Não dizes nada?
Sou obrigado a arriscar.
- Estás bonita, estás sempre bonita.
- Obrigado.
Hesitas, mas sabes que tens de continuar, foste tu que me chamaste.
- Rui, eu... deves estar a pensar porque é que pedi para vires aqui.
Respondo irritado, mas só eu é que percebo.
- Não, na verdade não estou, só não consegui dizer que não. Mas juro Leonor, juro que se me disseres, neste momento, daqui a um minuto, se me disseres que te vais embora, que desistes de falar, juro que não faço nenhuma pergunta, que não olho para trás.
A tua pele muda de cor, por espanto e dor, por saberes que falo a sério, mesmo no meio do medo, que me faz tremer a voz.
- Não, eu não vou mudar de ideias, não te chamei por impulso, mas por precisar de te dizer, por ter de confessar, o que tu sempre soubeste, o que...
Interrompo-te, no meio do que quero ouvir.
- Não, mil vezes não! Não vais dizer que me amas, mas que não podes ficar, ou que não queres ficar.
- Mas...
Não te deixo continuar, mais uma vez.
- Não, já te disse que não, não quero saber.
- Mas eu sofro...
Rebento em choro, de vontade de te abraçar.
- Sofres? Tu sofres? E eu Leonor, como se chama o que eu sinto?
Não respondes, sei que não podes responder.
- Cinco anos! Cinco anos Leonor! Sem uma palavra tua, sem ao menos fingires, sem pelo menos me enganares, numa amizade sem sentido, que me fizesse esquecer, a solidão de todas as manhãs, de todos os dias, contados um a um.
Olho para ti, o mais tarde que consigo. Na tua cara um reflexo, do mar ao longe, e uma lágrima fica segura, como se o tempo parasse, antes de cair. Desisto, de não te deixar falar.
- Rui, eu não tenho mais nada para dizer, a não ser o que não queres ouvir, dizer que te amo, antes de morrer, antes que daqui a trinta anos, acorde em sobressalto, por palavras que fechei em mim, sem as poder gritar.
A dor é insuportável, de te querer abraçar, mas continuo a ouvir.
- E sim, tens toda a razão, de me julgar, de não me perdoar, mas ouve-me por favor, porque nunca mais nos vamos ver, deixa-me, uma vez na vida, a última vez na vida, dizer o que sinto, e chorar contigo. Eu amo-te, eu amo-te!
Falo de forma fria, que sabes não sentir.
- E o que é que queres que eu diga? Que fico feliz em saber, que te desejo boa sorte, uma despedida, de sorriso fingido, de não ser quem sou...
Não consigo continuar, e espero pelas tuas palavras.
- Não, eu só queria... Rui... eu só queria...
Choro como nunca chorei na vida, como não chorei, na outra despedida, de mentiras repetidas, em que não acreditei. E então desisto, para te abraçar, num cheiro que conheço, que reconheço, para não esquecer.
- Amo-te tanto Leonor, amo-te tanto...
A tarde desaparece, numa noite fria. O abraço dura para sempre.

Sinto o frio do chão, que me traz de volta a mim, ao meu reflexo no espelho, que me olha a sorrir. Lembro-me de nós, de músicas, palavras, risos, cigarros de mão em mão, da roupa molhada, da noite, da água fria, lembro-me do vento, do teu cabelo a voar, de lábios a brilhar, depois do pôr-do-sol, de sapatos coloridos, mãos dadas, olhos fechados, de correr, beijos, sonhos, sussurros, em versos, de sentir. Fecho os olhos, e deixo o corpo estremecer, como no refrão de uma música, que estou sempre a ouvir, quando penso em ti.