segunda-feira, novembro 10, 2008

Humberto

Humberto comia multas de estacionamento, subia e descia a avenida cem vezes por dia, comia as multas que retirava dos carros. Contava aos amigos, os velhos que dormem na rua, que tinha um sonho, comer mil multas num só dia e depois morrer, rebentar, marcar para sempre a montra de uma loja fina. Um dia aconteceu, esperou vinte minutos pelo fiscal, gostava de lhes chamar assim, puxou-o para ver a infracção, a transgressão inaceitável, uns bandidos, todos mortos à paulada. Um último desejo, tinta permanente, um nome, uma assinatura, pelo menos uma vez, a última vez. Ofereceu a caneta ao fiscal, rapaz louro pouco esperto, que não teve tempo de a admirar, ficou coberto da cabeça aos pés, de Humberto e papel, carne, sangue e cuspo, que a saliva é dos ricos, corre pura sem espuma. Juntou-se uma multidão, dizem que eram ao todo mil, perdoados, livres num segundo. Ouviu-se então, ecoou pela avenida, um aplauso, como se fosse para um Rei, que acenava de uma carruagem. Humberto ficou famoso, guardado no coração dos que ali estavam, que só fugiram pela força, esmurrados, empurrados pelos canhões de água, que também lavaram o chão, tudo para a sarjeta. Ficou a dúvida, porque nada havia e a palavra deixou de valer. Restou um segredo, um sinal trocado entre os que viram, que o guardaram, até ao fim das suas vidas. Humberto fez-se cidade.

domingo, novembro 02, 2008

Nightswimming

Comecei a dormir mais, depois de atingir o limite comecei a dormir mais. Ao fim de duas semanas tudo tinha mudado. Passei a acordar durante a noite, como acontecia quando era mais novo. Os sonhos voltaram, o lembrar de longas histórias que decidi esquecer. Nas manhãs, em todas as manhãs, começou a fazer sentido acordar. O leite frio à janela, o pão com passas e canela, o arroz doce quase gelado, roubado ao dia anterior. No prédio em frente vivia uma senhora muita velha, tinha o cabelo mais branco que alguma vez vira. Em casa dela não havia homens, só a filha, uma senhora gorda com um olhar triste, e a neta, que fingia não me ver. Era como se o tempo se estendesse, trazendo história e histórias antigas, quase sempre de quando era miúdo, um rapaz magro, uma noite quente, um banho no escuro, a madeira de uma casa escondida. Um dia a rapariga, a neta da senhora muito velha, sentou-se numa cadeira e olhou para mim, sem desistir, como se ameaçasse ficar ali para sempre. Nesse momento, nesse preciso momento decidi voltar, nervoso, com o que iria encontrar.

Entrei na mercearia com medo, de ser reconhecido, de abraços apertados, de ninguém se lembrar. Uma voz grossa desfez a dúvida.
— Ora, ora! Olha só quem voltou.
Sorri ainda antes de me virar.
— Olá senhor Carlos.
— E lembra-se dos velhos — disse ele num riso sincero. — Maria! Anda cá mulher, que não vais acreditar quem aqui está.
Ouvi uma voz a pedir um minuto e observei a pequena loja enquanto o senhor Carlos atendia uma senhora toda vestida de preto. Passara tardes sem conta naquele sítio, o filho do senhor Carlos e da senhora Maria foi sempre o meu melhor amigo, desde a escola primária até ele emigrar para Inglaterra. Os pais nunca aceitaram a decisão dele, pelos menos era o que diziam, a mim parecia-me ver orgulho, no reflexo das lágrimas. Uma mão separou as fitas de uma porta, dois braços esticaram-se para mim.
— Rui!
— Olá senhora Maria — disse eu já no meio de um abraço. O cheiro dela era o mesmo.
— Ai rapaz! Estás igual, sempre com esses olhos verdes a brilhar.
— Eu? — disse envergonhado. — Vocês é que não mudaram nada. Na verdade, parece que nada mudou, parece que ainda foi ontem que eu e o Filipe corríamos por entre as caixas.
— E me comiam o bacalhau à dentada — disse o senhor Carlos a rir. — Cada vez que me lembro da senhora Júlia a olhar para as marcas dos vossos dentes. Tive de lhe oferecer uma caixa inteira, que a mulher jurava que aqui havia ratos, que nunca mais cá voltava. Lembrava-me bem desse dia, eu e o Filipe escondidos debaixo do balcão, divididos entre a vontade de rir, e a promessa de uma tareia.
— E o Filipe? — perguntei a medo.
O senhor Carlos virou a cabeça, fingiu fazer umas contas num papel.
— O Filipe está bem — disse a senhora Maria em voz baixa.
— Mas e vocês? Está tudo bem entre todos?
— Sim — disse ela a sorrir. — Não ligues a esse velho tonto. O Filipe vai ser pai e nós vamos lá no Natal. Adivinha lá quem já foi comprar os bilhetes de avião todo inchado?
— Ainda bem, eu penso muitas vezes nele, mas...
— Eu sei, não digas nada, a vida é mesmo assim — disse ela olhando para mim com ternura. — Mas e tu? Não esperava ver-te mais por aqui, principalmente depois dos teus pais terem ido embora. Eles estão bem?
— Sim, acho que sim — respondi sem saber bem o que dizer. — Não tenho estado muito com eles, mas sim, estão bem.
— Mas e tu, o que te trouxe cá? Não vieste só visitar estes velhotes — disse ela de forma serena. Não consegui responder.

Passei a tarde inteira na pensão, a contar os minutos, à espera que escurecesse. O encontro com Mariana tinha sido estranho, apesar de ter sonhado com aquele momento tantas vezes. Não esperava que chocássemos no meio da rua, que não precisasse de procurar. O convite chegou como um soco, repetido até eu responder, mas sem ela se parecer importar. Ela continuava a ir nadar ao lago, em todas as noites quentes, como se os anos tivessem sido dias, como se o tempo não demorasse a passar. Saí depois das oito, escolhendo o caminho mais longo, até não poder mais adiar. Parei o carro perto da casa velha, desliguei os faróis e fui engolido pela noite, não havia lua, só estrelas, milhões e milhões de estrelas. Pisei a madeira devagar e sentei-me ao lado dela.
— Demoraste a chegar — disse ela sem desviar os olhos da água. — Pensei se te tinhas esquecido.
— Não — disse com a voz a tremer. — Como é que me podia esquecer?
— Sei lá — disse ela meio a rir. — Podias ter adormecido, ou ficares preso num filme, um daqueles que não conseguimos parar de ver.
Esperei antes de falar, sabia que tinha de falar, ou então nunca iria dizer, tudo o que estava dentro de mim. Obriguei as palavras.
— Lembras-te de aqui termos estado?
Mariana olhou para mim, olhou-me nos olhos, como não fazia desde que éramos apenas dois miúdos.
— Sim, tenho ideia disso. Aconteceu alguma coisa de especial que eu me devesse lembrar? — perguntou numa gargalhada. — Estás com um ar tão sério.
— Aconteceu que essa noite, essa noite em particular, eu...
— Rui, não compliques, fala!
Inspirei fundo.
— É que, vais achar-me maluco, mas eu... eu faço uma coisa estranha, nem sei bem explicar.
— Tenta — disse ela, sem pressa na voz.
— Isto parece de malucos, mas às vezes, às vezes acontece algo completamente banal, uma folha a voar que me bate na mão, o vento numa flor, alguém que diz uma palavra com uma pronúncia esquisita...
— Todas as coisas que acontecem — interrompeu ela. — Estás a falar de tudo, não é?
— Sim, acho que sim.
— Mas e o que é que acontece? — perguntou ela.
— Bem, às vezes eu... às vezes algumas dessas coisas, apesar de não serem diferentes de tudo o que acontece a cada segundo, eu lembro-me delas, vejo-as na minha cabeça centenas de vezes.
Parei um segundo antes de continuar, senti o coração a bater como se fosse rebentar.
— E essa vez, quando aqui estivemos, sentámo-nos precisamente neste sítio e uma gota de suor escorreu-me pelas costas, e... e eu lembro-me disso, da sensação do suor nas costas, lembro-me disso quase todos os dias...
— Rui — interrompeu ela outra vez —, o que é que queres dizer?
Gritei dentro de mim.
— É que... também me lembro de ti, do teu corpo, num fato de banho preto, do cheiro do teu cabelo molhado. Todos os dias Mariana! Penso nessas coisas quase todos os dias, mas não queria, não queria...
Desisti de explicar, pela primeira vez na vida não tentei explicar, esperei, apenas esperei.
— Rui — disse ela, sem precisar de tempo para pensar. — Rui, eu lembro-me de aqui ter estado contigo, mas não me lembro do fato de banho que tinha, não me lembro do que falámos. Acho que o cheiro do cabelo é o mesmo, mas todos estes anos, não foram passados a pensar em ti.
Fiquei à espera que ela continuasse.
— Imagino que tenha sido um sonho bonito Rui.
— Muitos sonhos bonitos — disse eu.
— Mas foram sonhos teus, foram só sonhos teus.
Ficámos em silêncio, um silêncio que não trouxe desconforto, só o barulho da água. Depois, no momento certo ela falou, como se esperasse pelo refrão de uma música, que só ela conseguia ouvir.
— Agora vais-te embora, não é? — perguntou. — Eu sei que ainda não sabes, que não planeaste nada, mas pensa, é isso que vai acontecer, certo? Apesar de todos estes anos, de pensares em mim a toda a hora, de eu ser a razão de teres voltado, no fim vais acabar por ir embora, mesmo que eu te tivesse dito, que todas as vezes que aqui vim, que também sonhava contigo.
Ela tinha entrado em mim, como nunca ninguém tinha feito ela tinha entrado em mim, ao ponto de saber, de me conseguir ler. Mais uma vez desisti de falar, de explicar, para conseguir ouvir, para conseguir sentir. Mariana chegou-se a mim, tirou-me a camisola devagar e despiu também a dela. Tocou com uma das mãos nas minhas costas, durante um segundo apenas, o suficiente para eu me lembrar. O resto da roupa espalhou-se pelo chão e deslizámos para dentro de água, esperámos um minuto por um beijo, pelo entrelaçar dos corpos. No brilho das estrelas vi a expressão dela, o seu sorriso, que me fez lembrar o da senhora Maria, o mais tranquilo que conhecia, que tantas vezes desejei, que fosse o da minha mãe.
— Rui — disse ela, como se estivesse a cantar —, hoje dormes em minha casa, amanhã... para amanhã só quero que me prometas uma coisa.
— O quê? — perguntei.
— Que começas o dia, que vais começar o dia, como se fosse a primeira vez.
— Está bem Mariana, está bem...
Nadámos para o meio do lago, de olhos no céu.

terça-feira, setembro 23, 2008

Another World

Um dia. Existe um momento em que chegamos à dor, em que descobrimos, que estamos inevitavelmente sozinhos, fechados em nós. Um dia. Descobrimos que só nós vemos, que contar não chega, e perdemos a esperança, sem deixar de gritar.

No metro viajo de pé, caminho devagar, olho cada pessoa em silêncio, demoro, arrisco, antes de continuar. À minha frente está um homem musculado, com uma camisola apertada. Tem o cabelo molhado, madeixas separadas pelo suor, que revelam um segredo. Um pássaro tatuado, uma serpente, sangue, uma escolha minha. Olho para baixo e reparo nuns sapatos de mulher muitos velhos, estranho as meias castanhas no calor. Uma delas está rasgada, até perceber. Levanto os olhos e vejo que a mulher não é branca, que as meias não existem, apenas uma cicatriz de tom rosado. Sorrio com a confusão e observo-a. Um fato cinzento que parece encolher, no meio de muito vermelho, menos o fato e a pele. Ao longe outra mulher apanha o cabelo, na esperança de não ser reconhecida. Sei quem é, fala sempre confiante. Prefiro o metro, espreitar sem que perceba, quando fecha os olhos por um segundo. Antes de sair vejo uma rapariga, que usa um gancho verde no cabelo. Está de sandálias, mas tem os dedos muito tortos. Tem a cara gasta. Lembro-me de alguém, que também vi no metro.

Uma tarde fugia para casa, entrei na carruagem e tentei escolher alguém. À minha frente estava uma rapariga. Aproximei-me com cuidado. Parei quando vi as lágrimas. Ela chorava sem parar. Um choro que não se ouvia, um choro sem o soluçar, só lágrimas atrás de lágrimas, sem vergonha, sem se importar. Fiquei a olhar para ela, que não me via, por também estar sozinha. Mas senti a sua dor. Então reparei, nos dedos cortados, amputados ao acaso. O verniz disfarçava alguns, outros era impossível. Fiquei paralisado, na repulsa, ao mesmo tempo zangado, mas com vontade de fugir, ao chocar com os meus medos. Resisti, fiquei, olhei, obriguei-me a olhar, para as mãos imperfeitas, até esquecer. Voltei ao choro, a uma tristeza sem fim. Senti vontade de a abraçar, de dizer que estava tudo bem, que podia descansar, que podia deitar a cabeça no meu colo. Não senti pena, não venci o medo, de lhe tocar nos dedos, de fechar as minhas mãos nas dela. Mas devia tê-la abraçado, tê-la escondido em mim, sentir o seu corpo.

Estou sozinho, mas continuo a gritar, até perder o medo, de me lembrar.

quarta-feira, agosto 06, 2008

O Corcunda

Há demasiadas histórias de corcundas. Monstros, anjos escondidos de dentes podres, de sorrisos inocentes. Há demasiadas histórias sobre pessoas, porque todos o foram, um homem, uma mulher. Demasiadas histórias, sobre um destino alterado, por causa de um alto nas costas, de um curvar dorido. Nunca quis contar a minha, eu também disfarçado, preso nas sombras de uma casa velha. Mas hoje, nos meus últimos dias, já não consigo olhar o céu, só as palavras que escrevo, que desenho devagar. Desejo, sonho em morrer aqui, sobre a minha vida, feita de criar outras, de inventar destinos, em milhares de folhas pautadas. Sei que é difícil acreditar, mas eu não nasci corcunda. Difícil, para muitos impossível, descendo as escadas do casarão, contemplando as figuras, quadros pintados, dos que vieram antes de mim. Uma aberração atrás da outra, poupados ao circo, aos risos e espanto, mas para sempre marcados. Há anos que não desço as escadas, talvez por medo, de enfrentar o espaço vazio, guardado para um último quadro. Mas lembro-me da primeira vez que o fiz, que olhei de frente para a minha herança, e do orgulho nos olhos do meu pai, depois de correr até ele, de saltar para o seu colo e de lhe contar, que descobrira um segredo, que os homens nos quadros, estavam todos a sorrir. Quando fiz dez anos, no dia em que fiz dez anos, o meu mundo mudou. O meu pai, o meu avô, levaram-me até uma porta, que estava sempre fechada. A minha mãe escondeu as lágrimas, abraçada às minhas duas avós, não por medo, por tristeza, mas por saber, que ali, naquele momento, tudo começava, mais uma vez. Entrei à frente, depois o meu pai, o meu avô mais devagar, sempre no escuro, até a porta se fechar, sem ninguém lhe tocar. Só então a luz, mil velas acesas, sem perceber porquê. Nesse segundo vi, escadas sem fim, portas, mesas de trabalho. Só depois reparei, que as paredes, todas as paredes, não estavam pintadas, nem forradas a papel, mas sim tapadas, de forma perfeita, por milhares, milhões, por livros que não era possível contar. O meu pai esperou, aguardou uns minutos antes de falar, depois do meu avô anuir. Contou-me a história, que também era a minha, de todos os que ali tinham entrado, do tesouro que guardavam, escondido, mas que deveria crescer, porque sempre haveria espaço, um lugar vazio numa estante, à espera de outro livro, de mais histórias. Seria essa a minha tarefa, como tinha sido de tantos antes de mim, a partir daquele dia. Lembro-me de olhar para os dois homens ao meu lado, principalmente para o meu avô, duas vezes pai, mais curvado, apoiado numa bengala escura, que o afastava do chão. Lembro-me de ele me começar a explicar, sem pedir desculpa, que eu seria como eles, uma maldição que não era verdadeira, só aos olhos dos outros. Um dever, que não podia ser leve, e só por isso pesado. Ouvi-o em silêncio, em respeito e amor, ouvi o que já sabia, desde que a porta se fechara, quando senti a pressão nas costas, pela primeira vez.

quarta-feira, julho 30, 2008

O Vento

Quando Ana chegou reconheceu o cheiro do chão. Era uma mistura de ervas secas com pequenas flores. Em miúda vendia-as em segredo, nas brincadeiras com o irmão, no terraço da casa dos avós. Alugou uma casa perto do mar, com janelas azuis e fechos ferrugentos. Deitada na cama conseguia ouvir as ondas e todos os dias jurava que sentia o seu gosto. Os dias eram todos iguais. Um livro lido em cima da colcha branca, morangos e amoras comidos com cuidado, um dormir sem horas, sem contar. Ao fim da tarde espreguiçava-se na rede, dava balanço na parede caiada, pintava os pés de branco. Antes de anoitecer saía para respirar, somava cada dia ao anterior, prometia não ter pressa. No primeiro dia reparou num velho sentado no miradouro, fingiu que não o viu, mas sentiu-o antes do resto. Inventou uma brincadeira, um desafio, conseguir não pensar nele durante um dia, depois dois, até onde fosse capaz. Desistiu, ele estava lá, mesmo que ela não olhasse. Sentava-se num banco feito nas rochas, a um passo do vazio. O velho era cego, a senhora que a recebera tinha-lhe contado que ele era cego, disse-o várias vezes, como se tivesse medo que ela se fosse esquecer, depois benzeu-se e saiu. Ana ficou a pensar, sem coragem de perguntar.

— Dizem que o senhor é cego.
Ele inclinou-se para a frente, de cajado a baloiçar entre as mãos.
— Dizem o que eu lhes disse, mais não sabem.
O banco onde o velho estava sentado era feito de rocha cinzenta, esculpido na forma de muitos anos. Ana sentou-se, sentiu a pedra, um aconchego ligeiro, afastado em silêncio.
— E o que é que eles não sabem? — perguntou ela sem tremer a voz.
O velho enfrentou-a no escuro, como se conseguisse ver.
— Perguntas sem saber criança — disse ele.
Ela sufocou as palavras. Queria saber, precisava de saber. O velho contou a sua história.

Sempre amara a mulher, que tinha morrido há dois anos, um desejo que não esquecia. Ela morrera a sorrir, de mãos dadas nas dele, mãos que só podia sentir. Depois veio o fim, o resto de uma vida, uma espera contada, minuto a minuto, em cada bater do coração, no sangue que corria lento. Tinham começado a namorar em miúdos, antes de serem diferentes, antes de respirarem mais depressa. Casaram em Maio, num dia quente, sem nuvens no céu. Adormeceram de olhos no céu, sem desejos para pedir, agarrados com força, pois o vento tenta a sua sorte, leva-nos se não temos cuidado. Um ano, as noites na praia só duraram um ano. Um dia ela não acordou, ardia em febre, pintava os lençóis de vermelho, sem conseguir falar. O velho, nesse tempo um miúdo, subiu ao penhasco mais alto, gritou, suplicou um favor, ofereceu tudo o que tinha, mesmo o que não devia. Nunca descobriu quem respondeu, se o céu ou o inferno, nem branco nem vermelho. A alma foi recusada, não pode ser vendida, não pode ser trocada. Escolheria um dos sentidos, uma parte do mundo, que deveria perder. A resposta foi rápida. Sentiu o cheiro do mar, o barulho das ondas, o sabor a sal, o calor da pele dela nas mãos. Fechou os olhos, no último raio de sol, e respondeu sem querer. Encontraram-no assustado, demoraram a perceber, na pressa de contar. Ela tinha acordado, com a face rosada, mas de sorriso ainda cansado. Pediu para a levarem à janela, para ver o pôr-do-sol.

Ana ficou a olhar para o velho, tentando adivinhar o momento certo.
— Não foi... não foi por causa... ela melhorou sozinha, não foi?
— Sim, não fui eu.
— Mas então... porque é que ficou cego? — perguntou ela em desespero, como se tudo estivesse a acontecer outra vez. — Não faz sentido... não faz sentido.
O velho encostou o cajado à pedra, brincou com as mãos, fez desenhos no ar. Depois continuou.
— O meu pedido, o meu desejo... — disse ele devagar.
— Sim — disse ela ansiosa.
— Eu só pedi, implorei, que me fosse concedido um desejo.
Os olhos de Ana brilharam.
— Ela ficou melhor antes — disse ela, sem precisar de uma resposta.
— Sim, ficou.

Ana correu para casa. Fugiu do passado, de uma história que não era a sua. Durante uma semana não saiu de casa, tentou esquecer, arranjou mil desculpas, mil explicações. Teve vontade de desistir, de ir embora daquele lugar. Mas sabia que o velho estava lá fora, de olhos no mar, sem o poder ver. Sabia que ele esperava por ela, que confiava nela. Ainda não tinha acabado, sabia que ainda não tinha acabado.

— O que é que pediu? — perguntou ela, enquanto se sentava ao lado do velho.
— Desde miúdo, o sonho foi sempre o mesmo — disse ele a sorrir.
— Os sonhos são iguais para todos? — perguntou ela enrugando a testa.
Ele esperou um pouco, agarrou-lhe a mão direita, depois de a procurar.
— Qual é o teu nome?
— Ana, chamo-me Ana.
— Voar Ana, desde pequeno que queria voar — disse ele quase em sussurro.
Ela percebeu, e sentiu um aperto no peito.
— Para voar não é preciso ver, basta que alguém nos ajude, que alguém veja por nós — disse ela ao mesmo tempo que pensava. — Mas nunca o fez, pois não?
Ele sorriu.
— Eu nunca lhe contei, não podia contar, ela nunca me teria perdoado.
— Porquê?
— Porque não era a maneira dela. Um sacrifício. Um pacto com o mal ou com o bem. A certeza de sermos iguais, de não sermos melhores, de sermos um só. Ela nunca me teria perdoado, e eu não podia voar com mais ninguém. Às vezes, nas noites sem lua, quando o vento sopra forte, às vezes, aproximo-me do precipício, e finjo que é o vento que me segura. Mais não posso.
— E o anjo, o demónio, nunca mais o chamou, nunca mais gritou por ele? — perguntou ela, de coração apertado.
— Não, nunca mais. Mas ele aparece à noite, desde a primeira noite, todas as noites, invade os meus sonhos, seduz-me, diz-me que basta um sacrifício.
— Um sacrifico? — perguntou, tentando entender.
— Sim, de alguém que eu ame, de alguém que me ame. — Parou de falar e limpou as lágrimas com um lenço velho amarrotado. — Nem por um minuto Ana, nem por um único segundo, nunca hesitei. Sei que nunca mais vou ver, mas foi sempre uma tentação inútil, pois eu convenci-me, desde o primeiro dia, que morreria na escuridão.
Ana levantou-se e deu um passo até à beira da rocha, sentiu o vazio, o abismo por baixo dela. Então sorriu, escondeu as lágrimas e sorriu. Esticou um braço em direcção ao velho e inspirou fundo antes de o chamar.
— Eu acredito, eu acredito em si. — As lágrimas começaram a cair, a descer pela cara, em direcção ao peito. — Dê-me a sua mão! Eu mostro-lhe o caminho.
Ele esperou uns segundos, antes de esticar a mão direita, de tocar ao de leve na mão dela. Ana atirou-se devagar para trás, fechou os olhos e esperou, até ao último momento esperou, por uma mão que se fechou.

A queda foi rápida, a dor desapareceu depressa, o corpo já não era o seu. Sentia apenas o gosto do sangue quente na boca, um ligeiro tremor, um frio que lhe roubava a visão, que mudava o mundo à sua volta, um mundo que ficava cada vez mais turvo. Conseguiu olhar para cima, ver uma silhueta de braços abertos, inclinada de uma forma impossível. Sorriu, uma última vez.

O velho ficou a olhar para a mão fechada, até o último raio de sol tocar em cada dedo que se abria, até acreditar, que conseguia ver. Abriu os braços e atirou-se contra o vento, uma última vez.

domingo, junho 08, 2008

Esquecer

Contei quatro degraus, quatro degraus cinzentos, gastos, rachados. Senti o vento nas costas e olhei à procura do carro. Tinha a certeza que o tinha deixado perto, de ter jogado com a sorte. Se arranjasse lugar à porta do trabalho o dia correria bem. Uma velha brincadeira, que nunca funcionava. Procurei mais de vinte minutos, fiz a rua para cima e para baixo várias vezes. Cansado, sentei-me num banco castanho. Lembrei-me de uma história antiga, um livro de ficção científica que tinha lido há muitos anos. Era um livro de contos, o primeiro era sobre um homem que um dia saía do emprego e se esquecia onde morava, como se chamava, quem era. No fim, perdido, sozinho, descobria que não era deste mundo, que as memórias esquecidas não eram dele, apenas decoradas. Ri-me, apesar do frio no estômago ri-me, sabia o meu nome, sabia onde morava, só não sabia do carro, mas tinha recordado a história do livro. Tirei o telefone do bolso do casaco para telefonar, por um breve segundo soube, mas esqueci-me para quem ia ligar. Não me lembrava se tinha alguma pessoa, se era casado, se estava alguém à minha espera. Senti-me sozinho. Lembrei-me de uns enormes olhos verdes, disse o nome dela num sussurro, senti o sabor dos lábios, o cheiro da pele. Podia contar todos os beijos que tínhamos trocado, um a um, podia desenhar as cores das camisolas que ela usava, mas não sabia quem me abraçava, quem me embalava antes de dormir. Tive medo de ir para casa, de encontrar alguém que não conhecia, de estar a enlouquecer. Tinha uma aliança na mão esquerda, tirei-a do dedo, segurei-a durante um segundo, depois procurei um nome. Uma data, a aliança só tinha gravada uma data, que não me dizia nada, que me deixava assustado. Esqueci-me de quantos anos tinha, procurei algum sinal nas mãos, marcas de tempo, feridas, a cor dos pêlos. Lembrei-me de um tronco velho, do musgo na madeira, lembrei-me dos insectos na lama, de os guardar dentro de um frasquinho, da minha mãe a ralhar. Lembrei-me da minha mãe, do nome, da cara, da voz, de soprar cinco velas num bolo. Depois esqueci-me, como se num momento corresse no riacho, e no seguinte estivesse perdido. Levantei-me, vi o meu reflexo no vidro de um carro, não era novo, não era velho, continuava a saber quem era, sabia o meu nome, sabia onde trabalhava, o nome de todos no escritório, tive vontade de voltar atrás, de perguntar, de pedir ajuda. Não tive coragem. Esqueci-me do meu pai, pensei outra vez na minha mãe e descobri que não tinha pai, não tinha mãos fortes a segurarem-me, de correr atrás dele, de jogar à bola. Não me lembrava da barba por fazer, do fumo dos cigarros. Lembrei-me da montanha, sorri, tive vontade de chorar, lembrei-me de estar por cima das nuvens, do verde, do barulho da água, do vazio, do medo das alturas, de uma mão que apertava a minha. Abrimos os braços, lembrei-me de abrirmos os braços, de gritar contra o vento, de rir, de sentir que podia voar, de amar. Lembrei-me de mil músicas, da chuva, de todos os dias de chuva, da praia à noite, dos barulhos da floresta, da lua, senti todos os cortes, todas as feridas, a dor em todos os momentos, lembrei-me de todas as vezes que ri, do cheiro da comida ao lume, dos meus avós, da casa fechada, do medo dos fantasmas, de correr, dos pés descalços na areia, dos castelos, senti o sol na cara, as sombras no chão, o céu cor-de-laranja, as histórias, os sítios secretos, o desejo de viajar, de fugir, o medo da tempestade, os arrepios, o coração a bater mais depressa, o Inverno que por fim chegava. Esqueci-me, esqueci-me de tudo, de mim, dos outros, senti o corpo a cair, a visão a ficar turva, que ia perder os sentidos. Sorri, antes de adormecer, desejei estar a morrer, sem saber, mas por tudo sentir, sorri, antes de os olhos fechar, voltei à montanha, ao riacho, aos olhos verdes, aos livros, ao silêncio...

quinta-feira, maio 29, 2008

Time Flies

Fiquei sozinha, acabei por ficar sozinha, mesmo antes de o saber. Deixei crescer o cabelo, o cabelo cinzento que sempre admirei na minha avó, o cabelo que as mulheres sós não pintam, que deixam solto e seco, para voar contra a cara, para magoar a pele fina. Não quis gatos, os gatos são para mulheres divorciadas. Eu nunca cheguei a casar, porque não soube, porque não vi, porque era tarde, porque não olhei para trás, aguentei a dor na barriga. Chamo-me Teresa, nome de mãe, da mãe que não fui, antes de secar, de já não poder. Uso sapatos rasos, digo mal dos outros, de inveja de não os ter, de não saber ensinar as pernas, uso sapatos às cores, só para irritar quem olha, para explicar quem sou, a quem não quer saber. Tenho um lenço com muitas cores, juro que já as tentei contar, mas o vento mistura-as, provoca-me, faz-me rir, por vezes sorrir.

Desci para a praia descalça, senti o verão a chegar, escondido no frio da manhã. Trazia na cabeça o meu chapéu de palha, daqueles que parecem ir desfazer-se a qualquer momento, que fazem sombras engraçadas, que gosto de contar, de tocar com os dedos, de me lembrar do piano. Perdi-me antes de o ver, um segundo antes de o ver, para voltar a mim. Arrisquei algumas palavras.
— Olá, eu sou a Teresa.
O homem virou-se devagar, sem pressa do conhecer. Parecia saborear.
— Olá Teresa, eu sou o Luís.
O silêncio voltou. O Luís olhava o horizonte, dividia o céu com um pincel na mão. Dei um passo à frente, não consegui dar mais, mas consegui ver o quadro que ele pintava. Ele explicou, antes de eu perguntar.
— Estou a pintar a noite.
— O que explica o preto — disse eu sem rir.
Ele murmurou qualquer coisa, antes de se virar.
— Na verdade não é preto, eu sei que parece, mas tem uma gota de tinta branca.
Olhou para o quadro durante uns segundos, acho que a decidir. Depois continuou.
— Consegues ver?
Eu só via preto. Esforçava-me para ver o que ele me queria mostrar, mas só via preto, não percebia a diferença. Falei irritada.
— Deves ter posto mesmo muito pouco branco.
Ele riu-se, encheu-me com o seu riso, esticou a mão para a minha. Leu-me outra vez, pensou antes de mim.
— À noite não consigo, está demasiado escuro, venho cá só para decorar, para mais tarde me lembrar, depois volto de manhã, tento acertar com o branco.
Ri-me antes dele acabar.

Sinto o tempo a voar, dor nos braços, dificuldade em respirar, a ansiedade a crescer. Com o tempo aprendi a lutar, crises do nada, medo de morrer, de não aguentar o segundo a seguir, em longos minutos. Aprendi a estremecer, um arrepio de frio, para me fazer esquecer, para não cair. Mas vivo assustada, feliz e amarga, mas assustada. Gostava de embalar, de cantar baixinho, afastar o diabo, as bruxas más, para a noite ir embora, para correr depressa.

Sentámo-nos na areia. Ele tinha mãos perfeitas, brancas, pequenas, velhas, contavam histórias. Agarrou as minhas, olhou-me nos olhos.
— És uma boa mãe.
Não contive as lágrimas, sem ficar zangada.
— Mas eu nunca... eu não tenho filhos.
— Eu sei. Vejo a forma em ti, mas tenho a certeza, és uma boa mãe.
Não lutei com ele, fechei os olhos e ouvi. Ele respirou fundo antes de falar.
— A minha mãe morreu o ano passado. Uma vida desgraçada, feita de dor, de muita dor, de sangue nos lábios, mordidos durante anos, demasiados anos. Acabou louca, esteve vinte anos internada, sem dizer uma única palavra, a olhar sempre para o mesmo sítio na parede. Nunca percebi para onde ela olhava, procurei, cheguei a levar uma lupa, mas não descobri nada, só o branco da parede, lisa, sem uma imperfeição. Desisti, com o tempo desisti.
— Achas que sofreu? — perguntei sem angústia.
— Morreu numa manhã, fechou os olhos, apenas fechou os olhos, não se despediu, não gritou, não chorou. Num segundo respirou, no outro já não.
— E tu? — perguntei.
Vi na cara dele, o sorriso mais bonito, o mais bonito que alguém alguma vez sorriu.
— Eu acordo todas as manhãs, abro os olhos e lembro-me dela. Todos os dias Teresa. É a primeira coisa em que penso. Lembro-me de uma tarde, quando tinha uns cinco ou seis anos, de estar com a cabeça no colo dela, de ela me estar a secar o cabelo, sinto o cheiro a queimado do secador, sinto o cheiro dela, das mãos, de sabão, do suor, da pele arrepiada. E choro, choro todos os dias, por este sonho repetido, que me aconchega, para sempre dentro de mim.
Olhei para cima para o quadro, procurei no meio do preto. Falei devagar, quase a cantar.
— Acho que está ali uma parte mais clara.
Ele riu-se. Depois pensou, esperou, escolheu as palavras.
— És uma menina assustada. É por isso que consegues ver.
Fechei os olhos, apertei-os muito, antes de os voltar a abrir.

Fiquei sozinha, acabei por ficar sozinha, aprendi a ficar sozinha. Tenho uma mão ao meu lado, que às vezes agarro, aperto até doer. Mas no meu mundo só estou eu, feliz, magoada, irritada, triste, risonha, inspirada, serena. O medo vem, chega sem cuidado, rebenta em mim, parte-me por dentro, rasga-me o corpo. Olho outra vez para a mão, para a mão esticada ao meu lado, hesito, espero, antes de a aceitar, porque sei que não preciso. No céu aparecem mil estrelas, que riscam a noite. E peço um desejo, só desta vez, ser a única a vê-las.

quarta-feira, março 19, 2008

Pai

Viro a cabeça ao ouvir o som de metal no chão. Um homem pragueja e pega no recipiente onde larga as moedas que apanha curvado. Outra pessoa passa a correr e as moedas voam de novo para longe. O homem amaldiçoa a sorte, o mundo, a chuva, sem perceber que está no caminho dos outros. Uma rapariga ajuda-o a procurar as moedas e ele não agradece. Afasto a imagem do meu pai e desço as escadas rolantes.

À espera do metro está um rapaz com um acordeão. É um quadro antigo, igual em tantas recordações, pele escura, dedos sujos, um pequeno cão que nunca cresce, nenhum dos dois cresce, uma garrafa de plástico cortada ao meio, um pedaço de cordel na boca do animal. O rapaz não vê ninguém, distraído com um jogo electrónico nas mãos. O brinquedo deve ter custado mais do que um dia de esmolas, mas ele não se importa. Tenho a certeza que o vai esconder, quando começar a pedir. Lembro-me outra vez do meu pai, não consigo esquecer.

Depois do apitar das portas ouço um cego. Conheço os cegos do metro todos de cor, separo-os em grupos, divido-os por cheiros, pela pena que sinto. Existe um que me irrita, por um dia ter falado mal a uma senhora, mesmo tendo razão. Reconheço-o depressa, jogo com o destino, digo que o dia me vai correr mal se ele me tocar. Ele não me vê, mas dá-me um encontrão quando passa por mim. Segue o seu caminho, mais escuro do que o meu.

A vida do meu pai sempre foi improvável, o Homem-Impossível, como eu lhe chamava, um super-herói imaginado. Um dia comprou um carro, ele comprava um carro novo todos os anos. Fui buscá-lo com ele, brinquei com os dedos na pintura creme, antes de reparar na matrícula. As duas primeiras letras eram as iniciais dele, os números o dia do aniversário. Vi os olhos do vendedor, vi demasiadas vezes aquele olhar. Todos os meses ia ao Bingo, sentava-se numas cadeiras vermelhas, que tinham sido vermelhas. Fazia sempre uma linha, sempre no segundo cartão da noite. Fingia que não acertava em mais nenhum número, de braços sobre a mesa, escondendo o jogo. Os empregados sabiam, calavam-se por simpatia, por pequenas gratificações, por medo. Um dia perguntei-lhe porque o fazia. Riu-se e disse que um dia iria perceber. Nunca percebi, o tempo passou e eu nunca percebi.

As histórias de guerra eram segredo, guardava-as no ar triste, na cara sempre contraída. Só não podia esconder as cicatrizes, seis riscos no rosto, três do lado esquerdo, mais três do lado direito. Contou-me, depois de choros e ameaças. Tinham disparado perto, seis balas que apenas o queimaram, que desenharam uma expressão. Tornou-se uma lenda, caminhava sempre à frente dos outros, que pisavam o mesmo caminho com cuidado. Nunca ia aos encontros de antigos combatentes, não mantinha contacto com aquela outra vida. Mas todos os anos, sempre no mesmo dia de Março, recebia um embrulho cheio de coisas esquisitas. Amuletos, pedaços de tecido camuflado, crucifixos, fotografias de homens feridos. Não perguntei, nunca tive coragem de perguntar.

Volto ao homem que corria atrás das moedas. Imagino-o o dia todo a repetir as mesmas palavras, raiva, dor, ajuda, fome, angústia. Vejo a cidade cinzenta, toda em tons de cinzento. Pergunto como é que as pessoas mudam, porque me parecem todas iguais. À minha frente um ecrã mostra a hora e o dia. Sorrio pelo impossível, porque sempre herdamos algo, mesmo o que fica escondido.

Escolho a chuva e peço três desejos, que o calor que sinto seja o mesmo, que o meu choro seja igual, que um dia se juntem num só.

quinta-feira, fevereiro 21, 2008

Olhos Tristes

amo-te
porque não sei o que sinto
sem saber se te quero
porque sei que te tenho
sem te poder tocar
em todos os dias de chuva
no frio que me abraça
de todas as noites sem fim


— Quando é que escreveste isto? — perguntou ela, disfarçando os olhos tristes.
— Não sei... Ontem... Há uns anos... Parece-me que o escrevo desde sempre.
Maria sentou-se no sofá e puxou João para ela.
— Este amor... Ela existiu?
— Não te sei responder Maria, não tenho a certeza, já não tenho a certeza de nada.
Maria suspirou, sentido o calor de um ombro, embalado no seu.
— Alguma vez te escreveram uma carta de amor? — perguntou ele, com um ar envergonhado.
— Hum... Acho que não. Não, não me lembro de nenhuma. Triste, não é? Tu recebeste?
— Quando era miúdo — respondeu orgulhoso.
— Conta-me!
João deitou a cabeça no colo de Maria, esperou antes de começar a falar, como se primeiro tivesse de sentir.
— Eu tinha nove anos, acho que ela era um ano mais nova. Andávamos os dois na ginástica, ela costumava rir-se para mim. Como sempre não tive coragem de lhe falar, pedi ao irmão dela que o fizesse, que lhe contasse que gostava dela.
— Um emissário — brincou Maria.
— Sim. Uns dias mais tarde fiquei doente, uma semana em casa com anginas. Já não me lembro como é que ela soube, nós nem éramos da mesma turma. Mas um dia o meu irmão trouxe-me uma carta.
— E o que dizia? — perguntou Maria impaciente.
— Que sabia que eu gostava dela, que também gostava de mim, que queria ser minha namorada, coisas de miúdos.
— Que lindo! — disse ela num tom brincalhão.
— Não gozes — disse ele zangado, sem o estar.
— Foi a tua primeira namorada?
— Sim, foi.
— E?
— O que queres saber?
— Vá lá, não sejas assim. Conta-me! O que aconteceu depois?
João esperou outra vez, antes de recomeçar.
— Nada, eu passava por ela e apenas sorria, nem sequer parava. Um dia descobri que ela já tinha outro namorado, devo ter sido o último a saber. Mas também eu nem me aproximava, não tinha coragem. Há coisas que sempre foram assim, que hão-de ser sempre iguais.
Maria passou a mão pelo cabelo curto de João, aconchegou-o nos seus braços.
— Ela não te merecia — disse a rir, um riso que o contagiou.
— Sabes — disse, de olhos no tecto —, durante algum tempo fiquei triste, mas acho que foi o amor mais perfeito que já tive, tão puro que não precisava de quase nada. Não havia o tocar, o cheiro, a roupa entre os dedos, para mim bastavam as palavras que ela escreveu, de saber que gostava de mim. O resto era demasiado real, e eu ainda não sabia como lidar com isso, percebes?
— Sim — respondeu Maria. — E a carta, sabes onde está?
— Não, não sei, apesar de a ter guardado durante muito tempo.
— Estás a brincar — disse ela de olhos muito abertos.
— Não. Durante anos guardei-a a numa gaveta de uma escrivaninha que havia no meu quarto. Lia-a imensas vezes, tantas que o papel começou a rasgar-se nos sítios onde estava dobrado. Gosto de pensar que se desfez em pó, que um dia lhe toquei e as palavras desapareceram à frente dos meus olhos.
— Só tu, só mesmo tu — disse ela a sorrir. — E a rapariga? Continuaste a fugir dela?
— Sim, continuei — disse ele, enquanto tapava a cara com as mãos. — Mas a história não acaba aqui.
— Não? — perguntou ela intrigada.
— Não. Se o mundo, se a vida fizesse sentido, nunca mais a tinha visto, ou se calhar tínhamos vivido um romance trágico, um amor como os dos livros.
Maria conteve a curiosidade, deixou-o continuar.
— Um dia encontrei-a numa festa, acho que devia ter uns dezasseis anos. Nunca mais tínhamos falado, se é que alguma vez o fizemos. Eu pouco sabia dela.
— E o que aconteceu?
— Ela veio chamar-me para dançar, mais do que uma vez. Quando dei por mim estava mais perto do que alguma vez tinha estado. Senti o calor dela na minha cara, senti-a a respirar, senti o corpo junto ao meu. E por um momento, tudo à nossa volta desapareceu, só havia a música, e nós dois a rodar. Então aproximei os meus lábios dos dela devagar, tão perto que ela me beijou. Um beijo que soube a medo.
— A medo? — perguntou Maria.
— Sim, a medo. Não sei explicar melhor. Foi um momento mágico, mas havia algo, alguma coisa que eu não cheguei a perceber. Se calhar foi só de já não termos nove anos, ou então outra coisa qualquer. Não sei, não sei o que foi.
— Viste-a mais alguma vez?
— Sim, nesse mesmo dia, à noite. Não tive coragem de lhe dizer nada, nem sei se queria. Depois disso nunca mais a vi.
Maria ficou pensativa.
— Esse beijo, esse encontro quando já eras mais velho, não faz sentido. Isso que contaste não faz sentido.
— Eu sei Maria. Não penso muitas vezes nisto, não sei porquê esqueço-me desta história, mas sim, foi estranho.
Maria levantou-se, obrigando João a sair do seu colo.
— Bolas, tenho que ir comer um chocolate, queres? — perguntou ela, tentando segurar o riso.
João sentiu um arrepio, um sabor na boca, que desaparecia devagar. Depois riu-se também, e esqueceu-se outra vez.
— Sim, também quero chocolate.

terça-feira, janeiro 22, 2008

Mudança

Desde que tinham entrado no carro Margarida estava calada, sempre com a cabeça encostada ao vidro. Rui repetia em voz baixa o convite que não tinha planeado, tentava perceber o que queria, entender o desejo, a falta de calor.
— Para onde estás a olhar? — perguntou quase irritado.
— Estou a contar as luzes ao longe — respondeu ela sem virar a cara. — Não me digas que nunca o fizeste.
— Quando era criança — disse pensativo —, agora esqueço-me, esqueço-me de o fazer.
Margarida endireitou-se no banco.
— Porque é que me pediste para vir contigo? Nós acabámos de nos conhecer.
— Porque é que aceitaste? — perguntou ele.
— Disseste que me mostravas um sítio secreto, como podia resistir?
Rui acendeu um cigarro, inspirou-o lentamente e ofereceu-o de dedos esticados. Ela recusou. Ele respondeu sem tirar os olhos da estrada.
— Soube no momento em que te vi — disse, enquanto mudava a música. — Quis perguntar-te logo, ainda não tinha ouvido sequer a tua voz.
Margarida não respondeu e virou-se outra vez para a noite.

A areia era grossa, daquela que não se solta da pele. Os dois olhavam o céu deitados de barriga para cima. Margarida tentava lembrar-se do nome das estrelas, mas tinha sido há demasiado tempo. Deitou-se de lado antes de começar a falar.
— Quando é que é suposto começar a cena romântica? — perguntou num tom divertido.
Rui desatou a rir.
— Não é suposto Margarida, acredita que não é suposto — respondeu.
— Qual é a tua história? — perguntou ela com um ar muito sério.
Rui voltou atrás, a um livro de banda desenhada que lera quando tinha treze ou catorze anos. No alto de um prédio um homem rezava, pedia perdão pelo que ia fazer, olhava os carros lá em baixo e ganhava coragem. No último momento arrependia-se, desejava viver, abraçar a mulher, proteger os filhos ainda pequenos. Mas o vento não o ouvia, empurrava-o para o vazio, quase sem tempo para gritar. O livro acabava em tons de vermelho, sobre a neve que cobria a cidade.
— Eu trabalhei no metro — disse ele de repente.
— E? Não estás à espera que eu diga nada, pois não? Para mim é um trabalho como outro qualquer.
Era a brusquidão dela que o atraía.
— Posso continuar? — perguntou, fingindo estar zangado.
— Sim, desculpa — disse ela envergonhada.
— Um dia atirou-se um homem para a linha, mesmo à frente do metro. — Fez uma pausa antes de continuar. — Eu não consegui parar o metro, não dava para parar.
Margarida agarrou as mãos dele, estavam suadas e frias.
— Rui, tens a certeza que queres falar nisto?
Ele baixou a cabeça e continuou.
— Tiveram de me tirar de dentro da carruagem em braços. Fiquei paralisado, na expressão do homem que saltou, nos olhos dele nos meus. — Fez outra pausa, para recuperar o fôlego. — Foi a última coisa que ele viu, o meu olhar assustado.
Uma onda rebentou e encheu a noite de pequenos salpicos, de sal que se conseguia sentir lambendo as gotas nos lábios. Margarida juntou-se a ele, abraçou-o com força e esperou que ele continuasse.
— Dois anos! Dois anos Margarida! Foi o tempo que aguentei, todos os dias, estação a estação, sempre a olhar as pessoas, sempre a tentar adivinhar, sempre com um frio no estômago.
Outra onda rebentou com força, como se o mar sentisse o medo. Margarida desistiu de todas as palavras em que pensou, do consolo que não sabia como dar, encostou-se apenas a ele e ouviu o seu coração acelerado.
— E depois? — perguntou ela.
— Um dia conheci um senhor, um homem na paragem do autocarro. Ele meteu conversa, já nem me lembro sobre o quê, só sei que acabei a contar-lhe da minha prisão, dos meus dias sem fim. Acho que ele me fez lembrar o meu avô, ele conseguia sempre fazer conversa com as pessoas na rua.
— Conheço o género — disse ela a sorrir. — Mas e depois? Disse-te alguma coisa que te ajudou?
— Contou-me uma história, sobre uma briga que tinha tido com um amigo de infância. Uma coisa estranha, conheciam-se desde sempre, mas um dia começaram a discutir por causa de algo sem importância e acabaram à pancada. Quando os separaram praguejaram, disseram o que não sentiam, amaldiçoaram-se mutuamente.
— Homens! — disse ela com um ar de reprovação.
— Pois, homens — disse ele sem convicção. — Mas o outro, o que tinha sido amigo do senhor que me contou a história, parece que lhe lançou uma praga muito estranha.
— Como assim? — perguntou ela intrigada.
— Disse-lhe que no dia em que iria morrer, que nesse dia ouviria uma determinada música antes de morrer.
— Uma música? — perguntou ela, cada vez mais curiosa.
— Sim, uma música. Ele até me disse qual era, mas sinceramente não decorei.
Margarida ficou em silêncio. Pensou como reagiria a algo assim, como seria viver cada dia à espera de uma música, que anunciaria a sua morte.
— Sabes o que é que fez o senhor a quem foi lançada a praga? — perguntou ele.
— Não consigo imaginar — respondeu ela. — Passou a viver apavorado?
— Não! — disse ele com um ar triunfante. — Sabes o que é que ele fez? Eu não acreditei quando ele me contou.
— Conta-me Rui! — gritou ela impaciente.
— A partir desse dia, logo na manhã seguinte, a primeira coisa que ele passou a fazer foi ouvir a música, a que o devia matar.
— Bolas! — exclamou ela. — Ele enfrentou o medo, imagino até que o tenha feito desaparecer. Já o estou a ver, a colocar a agulha sobre o disco, um ritual que às tantas deixou de fazer sentido, que continuou só por hábito.
Rui olhou-a, escondendo o resto da história durante um minuto.
— Não Margarida, ele contou-me, que não havia um só dia, um único dia, em que não sentisse medo, quando a música começava a tocar.
Margarida sentiu a respiração de Rui, a vontade, o pavor de continuar sozinho. Sorriu antes de falar.
— Deixaste o emprego no metro no dia seguinte, não deixaste?
Rui esperou um segundo, para sentir que era verdade.
— Sim, desisti.

Margarida olhava as luzes outra vez. Inspirava o fumo que enchia o carro, que lhe lembrava as viagens com os pais, ela e a irmã à espera do cheiro de um fósforo riscado, da madeira a arder, do ardor na garganta. Encostou a cabeça no ombro de Rui e fechou os olhos. Deixou-se embalar pelo caminho.

quinta-feira, janeiro 03, 2008

Violeta

A mulher vestida de cinzento lembra-me a minha tia Inês, traz-me o seu sorriso de volta, as suas histórias contadas, repetidas vezes sem conta, até já não ter coragem de pedir. O autocarro embala-me a manhã, mergulhando-me em sonhos, afastando o acordar. Lembro-me da minha história preferida.


Era uma vez uma menina, uma princesa que vivia num lugar distante, um mundo feito de erva verde, de montes redondos que escondiam o Sol. A menina chamava-se Violeta, um nome escolhido pelo vento, trazido em murmúrios, no barulho das folhas, da água a correr. Violeta não era filha de um Rei, não conhecera sequer o colo de uma mãe, uma Rainha de coroa dourada, vestida com roupas de seda. Era apenas uma princesa, uma menina, mas senhora de um mundo, de campos que não tinham fim. Nesse mundo não havia noite, só a manhã e o entardecer, só o momento antes da primeira estrela, que chamava a luz outra vez, girassóis gigantes que dançavam sem parar, quase sem descanso, num reflexo eterno. Um dia Violeta conheceu um rapaz, ainda não era um homem quando o descobriu, com uma pequena barba de pêlos louros, trepando às árvores, saltando nas pedras do rio. O rapaz era delicado, educado, ensinado a encantar, virtudes que não faziam sentido no mundo de Violeta, que se apaixonara sem as perceber, mesmo antes de descobrir o que escondiam. Ela ficou presa nas palavras, nas aventuras, em reinos longínquos, em histórias de amor, mas também num raro saber, de conseguir ver melhor, de contar mais cores nos insectos, no apontar de uma flor, de um pôr-do-sol, que nunca chegava a acontecer.


O autocarro trava bruscamente. Sinto uma dor no estômago, um murro invisível, igual ao que sentia, no momento em que o mundo perfeito da menina ruía, nas palavras da tia Inês, quando eu só suportava ouvir o resto, de mãos muito apertadas nas dela.


Uma cor apareceu pela primeira vez, desconhecida, perigosa. Violeta espreitou escondida, não por medo, que não conhecia, não por desconfiança, que não existia, só pelo estranhar, dos braços enormes, cheios de pêlos, só pelo tom da noite, que nunca caía. Aproximou-se devagar, do monstro que era o rapaz, sentiu o cheiro intenso, um odor vermelho, um desejo, que não a conseguiu afastar. O monstro feriu-a, rasgou-lhe a carne, magoou-a para sempre, para ela não esquecer, um último aviso, antes de se transformar, da pele branca voltar a brilhar. O rapaz tocou a ferida, fechou-a com um sopro, mas a cicatriz nunca mais desapareceu. Violeta enamorou-se outra vez, sem o ter deixado de estar, sem esquecer, por nada haver a lembrar. Acreditou, fechou os olhos e ouviu, viu o seu mundo perfeito a brilhar, sentiu algo novo, a primeira vez, o descobrir, o começar. Deu uma das mãos ao rapaz, a outra pousou-a no chão, onde uma trepadeira nascia, procurando um tronco de árvore. A planta enrolou-se no seu braço, apertando-o com cuidado, subindo devagar, sem tocar na cicatriz, até o tapar quase todo, prendendo-a, com medo de a perder. O dia nasceu, sem nunca ter adormecido.


Um bêbado grita, berra, chama pela mãe, ajoelha-se no chão e reza, antes de começar a chorar. O autocarro arranca, deixa para trás o homem, deitado no chão, de olhos no céu. Eu ganho coragem para continuar, inspiro o fumo dos outros, entorpeço os sentidos, tento fugir de mim, para conseguir.


Um bramido fez Violeta correr, pedir, que pudesse estar a sonhar. O monstro tinha as garras espetadas num alce, um amigo antigo, sem tempo de ver, de olhar o mundo à sua volta, com os olhos fechados à força, com um último respirar, do seu próprio morrer. O monstro devorou a carne voraz, cresceu o peito para cima, queimou a terra à sua volta, um desafio em fúria, feito de medo, de ira, de tudo o que não podia existir ali, abrindo uma ferida, que nunca iria sarar. Violeta ficou parada à frente dele, chamou o rapaz uma última vez, por uma resposta que não podia esperar. Tocou-lhe no pêlo com o braço ferido, hesitando só por um fragmento de tempo, antes de se despedir sem mágoa. O monstro era duas vezes maior, mas ficou junto ao chão, aceitando o castigo, pelo qual sempre esperou. Violeta viu os olhos do rapaz, antes de gritar em silêncio. A besta elevou-se no ar, escondendo a dor, quando ouviu as palavras antigas, que o transformaram em pó. A princesa ajoelhou-se, ordenou ao vento que soprasse forte, que afastasse a cor escura do seu mundo. O vento obedeceu, levou com ele o que antes tinha sido o monstro, o rapaz, as histórias, a dor, a cor, a água fria, o belo, o disforme. Cobriu o céu com o pó negro, e fez a primeira noite. A menina, a princesa, deixou por fim as lágrimas caírem, mil lágrimas brilhantes, que se partiram cada uma em outras mil, e essas em outras, até ao fim do tempo. Entregou-as também ao vento, que as espalhou na noite escura, criando as estrelas.


Desço para a rua, e espero o anoitecer. Dói-me esta história, sempre me doeu esta história, mas imagino a menina a olhar o céu, a sorrir, a fazer desenhos com os dedos no ar, unindo as estrelas na forma de um monstro, na forma de um rapaz.