quinta-feira, fevereiro 23, 2006

A chuva não parava de cair

A chuva não parava de cair, uma chuva fina daquelas que pode cair durante horas a fio, sem um segundo de intervalo, sem um momento de descanso. Rui lembrou-se outra vez do momento em que tinha decidido vir a Londres.
Era tarde e tinha de escolher um sítio para comer. Reparou numa montra iluminada do outro lado da rua, uma pizzaria com um ar acolhedor que o convenceu sem ter de pensar. Entrou e sentou-se numa mesa perto da janela, agora já não se importava que chovesse e enquanto esperava ser atendido divertia-se a observar o reflexo das luzes dos carros no vidro salpicado por pequenas gotas de água.
O restaurante não era muito grande e não estavam muitas pessoas na sala. Todas as mesas estavam cobertas por uma toalha de quadrados vermelhos e brancos e tinham sobre elas pratos, talheres e copos que brilhavam ao luz de velas. Pela primeira vez desde que chegara sentiu-se bem e quase desejou poder ficar ali apenas a observar, a olhar os outros.
Uma voz chamou-o à realidade.
- É português? Acertei, não acertei?
Ficou de tal forma espantado que não respondeu logo ao homem parado à sua frente e que começava a perder o sorriso enquanto tentava emendar o que tinha dito.
- I’m sorry, please...
Interrompeu-o.
- Não, não peça desculpa. Sim, sou português, mas como é que descobriu?
- Ah! Eu sabia, em vinte anos nunca me enganei uma única vez, acho que deve ser um dom que eu tenho.
- Um dom?
- Sim, um dom.
E rebentou num riso que o deixou muito vermelho, seguido de uma tosse que parecia ir durar para sempre. Demorou a recompor-se e continuou.
- Ai, desculpe, mas é este maldito tempo, as saudades que eu tenho de Portugal, do nosso sol.
- Pois, imagino.
- E vive onde, lá na nossa terra?
- Vivo no Porto, mas nasci e cresci em Lisboa.
- Muito bem, muito bem, que saudades...nem imagina...mas não o chateio mais, aqui tem a lista, fique à vontade.
- Obrigado.
Ficou a ver o homem a dirigir-se a outra mesa onde um casal se tinha acabado de sentar e reparou que não parecia a mesma pessoa, como se a alegria se tivesse apagado no momento em que começara a falar outra língua. Baixou os olhos para a lista e começou a ler quando ouviu uma voz atrás de si.
- Eu devo ser a única pessoa em que o dom dele não funciona.
Virou-se para ver quem estava a falar e encontrou uns enormes olhos azuis que o olhavam a sorrir.
- Desculpe?
- Estava a dizer que o dom dele não funciona comigo, já uma vez me perguntou se eu era francesa, mas quando eu lhe disse que não fez um ar estranho e não perguntou mais nada.
- Se calhar não funciona com raparigas louras de olhos azuis.
Ela riu e passou as mãos pelo cabelo.
- Se calhar não...eu sou a Susana e estou em Londres há dois anos, tu deves estar de férias, certo?
Rui olhou para a mochila que o denunciava.
- Sim, estou...eu sou o Rui, queres...eu não sei se...o que eu queria dizer era...
- Se me quero sentar contigo?
- Sim, desculpa...é que não estava à espera de encontrar...de encontrar alguém com quem conversar, ainda por cima alguém português, tenho passado muito tempo sozinho nos últimos dias.
Ela levantou-se e sentou-se ao lado dele.
- Mas quando ele vier aí outra vez não lhe digas nada, está bem? Não quero que ele se sinta infeliz, sempre são vinte anos sem falhar uma única vez.
- Eu não digo, está descansada.
Durante o jantar Susana contou que viera para Londres estudar um ano e que tinha acabado por ficar a trabalhar na Universidade. Não tinha sido nada muito planeado e desejava voltar a Portugal, só não sabia muito bem quando. Rui não contou porque é que viajava sozinho e desejou que ela não perguntasse, estava a ser uma noite muito agradável e não lhe apetecia recordar os últimos meses da sua vida.
Era quase meia-noite quando deixaram o restaurante e como não chovia decidiram caminhar um pouco.
- Acho que da próxima vez que lá fores devias dizer alguma coisa.
- Estás tonto? Ele nunca me ia perdoar e eu gosto muito de vir aqui. De qualquer forma se ele não descobriu até agora, já não vai descobrir.
- Sim, acho que tens razão.
- Mas mudando de conversa, só temos falado quase de mim.
Rui ficou pouco à vontade e as palavras saíram com dificuldade.
- O que é que queres saber mais sobre mim?
- Estou a ver pelo tom que não é um assunto que te agrade.
Ela falava de um forma directa, mas delicada e isso desarmava-o.
- Desculpa, eu realmente tenho tentado não pensar muito em algumas coisas nos últimos tempos.
- Mas não tens de falar se não quiseres.
Parou no meio da rua e olhou para ela demoradamente.
- Mas eu quero, ou melhor, eu não quero...mas preciso. E tenho a sensação que te posso contar tudo, porque achas que isso acontece? Será que é mais fácil partilhar as coisas que nos magoam com alguém que quase não conhecemos?
- Há quem prefira chamar a isso empatia, mas se calhar podes ter razão.
- Eu não queria dizer que não tenho empatia contigo...eu...tu percebes...
Ela sorriu.
- Claro que percebo. E estou a ouvir.
Olhou outra vez para os olhos dela e sentiu um frio no estômago.
- Sabes? E se de repente não fosse assim tão importante?
- Como?
- Se não fosse tão importante tudo o que aconteceu até hoje. E se eu te dissesse que estou farto de ser tão complicado, de fazer a vida tão complicada? Porque é que não pode ser tudo diferente? Porque é que eu tenho este feitio? Porque é que eu penso um milhão de vezes nas mesmas coisas? Porque é que eu sou tão ansioso? Porque é que eu não posso dizer apenas que sou eu? Que existo e que estou aqui, que há duas horas atrás não te conhecia e que agora estou à tua frente e me sinto completamente apaixonado por ti...me sinto apaixonado por ti e sei que isso não faz sentido nenhum e que estou só outra vez a ser o mesmo impulsivo de sempre, estou a ser...
Parou para respirar e continuou.
- Susana, eu quero ser diferente, eu quero mudar, mas não quero deixar de ser o que sempre fui, não quero perder as coisas boas que tenho, não quero...já não sei, isto faz algum sentido para ti?
Mais uma vez os olhos dela sorriram para ele.
- Afinal sempre tinhas alguma coisa importante para dizer.
- É...acho que sim, desculpa...uma pessoa passa anos a esconder as coisas dela própria e depois explode.
- E isso é mau?
- Não sei se é mau...é novo para mim.
Ela aproximou-se dele e agarrou-lhe com força uma das mãos.
- Anda! Acho que temos de conversar, acho que tens muito para falar, muito que está aí dentro guardado.
Ele não respondeu e apenas seguiu a seu lado. As ruas estavam quase desertas e enquanto observava a cidade pensava no que tinha acabado de dizer.
Ela reparou no ar sério dele e brincou.
- Então estás apaixonado por mim?

6 comentários:

inBluesY disse...

(desabafo)
como tudo seria mais simples se fosse de facto assim ... simples!

laura disse...

terminaste da forma perfeita. :)

Kiau Liang disse...

...todos os dias nos apaixonamos por coisas, pessoas, cores, sabores, ou apenas estórias simples....

Madame Pirulitos disse...

Olha...foste a Londres.
Podes mesmo ir onde quiseres...ser quem quiseres.
E eu vou contigo.

nspfa disse...

Há uns anos fui a Londres sozinho ver um concerto. Quem ía comigo teve de desmarcar à ultima e não me apeteceu perder o espectáculo. Este teu post foi o que me fez lembrar. Eu até tinha namorada na altura, mas as coisas já andavam meio torcidas e no que mais pensava era encontrar lá alguem com quem pudesse falar em português e de preferência sobre o assunto que abordas. Só n me imaginava numa pizaria mas sim num banco de jardim do hide park!:-) tinha gostado mesmo, mas passei os 3 dias a falar mesmo a lingia deles com, basicamente, empregados das lojas. Ou seja, n tive a mesma sorte do Rui desta história.

Continua assim inspirado. Grande abraço

aquiles disse...

é verdade que é apaixonante apaixonarmo-nos... (várias vezes)
é verdade que há noites que valem vidas...
é verdade que há impulsos imperativos...

é verdade que existem "mas" mesmo grandes... e que as coisas não funcionam assim,
é verdade que uma paixão pode ser assim... (mas tem pouco valor)

o que é mesmo verdade, é que tudo o que faz mais sentido e é mais precioso não se conhece numa noite, talvez nao se conheça numa vida...

(falo de amor)