quarta-feira, julho 30, 2008

O Vento

Quando Ana chegou reconheceu o cheiro do chão. Era uma mistura de ervas secas com pequenas flores. Em miúda vendia-as em segredo, nas brincadeiras com o irmão, no terraço da casa dos avós. Alugou uma casa perto do mar, com janelas azuis e fechos ferrugentos. Deitada na cama conseguia ouvir as ondas e todos os dias jurava que sentia o seu gosto. Os dias eram todos iguais. Um livro lido em cima da colcha branca, morangos e amoras comidos com cuidado, um dormir sem horas, sem contar. Ao fim da tarde espreguiçava-se na rede, dava balanço na parede caiada, pintava os pés de branco. Antes de anoitecer saía para respirar, somava cada dia ao anterior, prometia não ter pressa. No primeiro dia reparou num velho sentado no miradouro, fingiu que não o viu, mas sentiu-o antes do resto. Inventou uma brincadeira, um desafio, conseguir não pensar nele durante um dia, depois dois, até onde fosse capaz. Desistiu, ele estava lá, mesmo que ela não olhasse. Sentava-se num banco feito nas rochas, a um passo do vazio. O velho era cego, a senhora que a recebera tinha-lhe contado que ele era cego, disse-o várias vezes, como se tivesse medo que ela se fosse esquecer, depois benzeu-se e saiu. Ana ficou a pensar, sem coragem de perguntar.

— Dizem que o senhor é cego.
Ele inclinou-se para a frente, de cajado a baloiçar entre as mãos.
— Dizem o que eu lhes disse, mais não sabem.
O banco onde o velho estava sentado era feito de rocha cinzenta, esculpido na forma de muitos anos. Ana sentou-se, sentiu a pedra, um aconchego ligeiro, afastado em silêncio.
— E o que é que eles não sabem? — perguntou ela sem tremer a voz.
O velho enfrentou-a no escuro, como se conseguisse ver.
— Perguntas sem saber criança — disse ele.
Ela sufocou as palavras. Queria saber, precisava de saber. O velho contou a sua história.

Sempre amara a mulher, que tinha morrido há dois anos, um desejo que não esquecia. Ela morrera a sorrir, de mãos dadas nas dele, mãos que só podia sentir. Depois veio o fim, o resto de uma vida, uma espera contada, minuto a minuto, em cada bater do coração, no sangue que corria lento. Tinham começado a namorar em miúdos, antes de serem diferentes, antes de respirarem mais depressa. Casaram em Maio, num dia quente, sem nuvens no céu. Adormeceram de olhos no céu, sem desejos para pedir, agarrados com força, pois o vento tenta a sua sorte, leva-nos se não temos cuidado. Um ano, as noites na praia só duraram um ano. Um dia ela não acordou, ardia em febre, pintava os lençóis de vermelho, sem conseguir falar. O velho, nesse tempo um miúdo, subiu ao penhasco mais alto, gritou, suplicou um favor, ofereceu tudo o que tinha, mesmo o que não devia. Nunca descobriu quem respondeu, se o céu ou o inferno, nem branco nem vermelho. A alma foi recusada, não pode ser vendida, não pode ser trocada. Escolheria um dos sentidos, uma parte do mundo, que deveria perder. A resposta foi rápida. Sentiu o cheiro do mar, o barulho das ondas, o sabor a sal, o calor da pele dela nas mãos. Fechou os olhos, no último raio de sol, e respondeu sem querer. Encontraram-no assustado, demoraram a perceber, na pressa de contar. Ela tinha acordado, com a face rosada, mas de sorriso ainda cansado. Pediu para a levarem à janela, para ver o pôr-do-sol.

Ana ficou a olhar para o velho, tentando adivinhar o momento certo.
— Não foi... não foi por causa... ela melhorou sozinha, não foi?
— Sim, não fui eu.
— Mas então... porque é que ficou cego? — perguntou ela em desespero, como se tudo estivesse a acontecer outra vez. — Não faz sentido... não faz sentido.
O velho encostou o cajado à pedra, brincou com as mãos, fez desenhos no ar. Depois continuou.
— O meu pedido, o meu desejo... — disse ele devagar.
— Sim — disse ela ansiosa.
— Eu só pedi, implorei, que me fosse concedido um desejo.
Os olhos de Ana brilharam.
— Ela ficou melhor antes — disse ela, sem precisar de uma resposta.
— Sim, ficou.

Ana correu para casa. Fugiu do passado, de uma história que não era a sua. Durante uma semana não saiu de casa, tentou esquecer, arranjou mil desculpas, mil explicações. Teve vontade de desistir, de ir embora daquele lugar. Mas sabia que o velho estava lá fora, de olhos no mar, sem o poder ver. Sabia que ele esperava por ela, que confiava nela. Ainda não tinha acabado, sabia que ainda não tinha acabado.

— O que é que pediu? — perguntou ela, enquanto se sentava ao lado do velho.
— Desde miúdo, o sonho foi sempre o mesmo — disse ele a sorrir.
— Os sonhos são iguais para todos? — perguntou ela enrugando a testa.
Ele esperou um pouco, agarrou-lhe a mão direita, depois de a procurar.
— Qual é o teu nome?
— Ana, chamo-me Ana.
— Voar Ana, desde pequeno que queria voar — disse ele quase em sussurro.
Ela percebeu, e sentiu um aperto no peito.
— Para voar não é preciso ver, basta que alguém nos ajude, que alguém veja por nós — disse ela ao mesmo tempo que pensava. — Mas nunca o fez, pois não?
Ele sorriu.
— Eu nunca lhe contei, não podia contar, ela nunca me teria perdoado.
— Porquê?
— Porque não era a maneira dela. Um sacrifício. Um pacto com o mal ou com o bem. A certeza de sermos iguais, de não sermos melhores, de sermos um só. Ela nunca me teria perdoado, e eu não podia voar com mais ninguém. Às vezes, nas noites sem lua, quando o vento sopra forte, às vezes, aproximo-me do precipício, e finjo que é o vento que me segura. Mais não posso.
— E o anjo, o demónio, nunca mais o chamou, nunca mais gritou por ele? — perguntou ela, de coração apertado.
— Não, nunca mais. Mas ele aparece à noite, desde a primeira noite, todas as noites, invade os meus sonhos, seduz-me, diz-me que basta um sacrifício.
— Um sacrifico? — perguntou, tentando entender.
— Sim, de alguém que eu ame, de alguém que me ame. — Parou de falar e limpou as lágrimas com um lenço velho amarrotado. — Nem por um minuto Ana, nem por um único segundo, nunca hesitei. Sei que nunca mais vou ver, mas foi sempre uma tentação inútil, pois eu convenci-me, desde o primeiro dia, que morreria na escuridão.
Ana levantou-se e deu um passo até à beira da rocha, sentiu o vazio, o abismo por baixo dela. Então sorriu, escondeu as lágrimas e sorriu. Esticou um braço em direcção ao velho e inspirou fundo antes de o chamar.
— Eu acredito, eu acredito em si. — As lágrimas começaram a cair, a descer pela cara, em direcção ao peito. — Dê-me a sua mão! Eu mostro-lhe o caminho.
Ele esperou uns segundos, antes de esticar a mão direita, de tocar ao de leve na mão dela. Ana atirou-se devagar para trás, fechou os olhos e esperou, até ao último momento esperou, por uma mão que se fechou.

A queda foi rápida, a dor desapareceu depressa, o corpo já não era o seu. Sentia apenas o gosto do sangue quente na boca, um ligeiro tremor, um frio que lhe roubava a visão, que mudava o mundo à sua volta, um mundo que ficava cada vez mais turvo. Conseguiu olhar para cima, ver uma silhueta de braços abertos, inclinada de uma forma impossível. Sorriu, uma última vez.

O velho ficou a olhar para a mão fechada, até o último raio de sol tocar em cada dedo que se abria, até acreditar, que conseguia ver. Abriu os braços e atirou-se contra o vento, uma última vez.