quinta-feira, fevereiro 15, 2007

A rapariga do sorriso

- Lembro-me como se fosse hoje. Lembro-me de ter descido as escadas do metro ao som da música, marcando cada tempo em degraus gastos. Era tarde e caminhava lentamente para casa, para um jantar de olhos na televisão, de comida mal mastigada. Quando me sentei à espera senti um olhar, um observar escondido, feito de roupas cinzentas. Olhei por entre as pessoas e um sorriso cresceu para mim, lábios perfeitos, juntos sem esforço. Levantei-me depressa, numa corrida disfarçada, num aproximar nervoso. E fiquei junto a ela.
Maria ficou a olhar para João sem dizer nada, ansiava pela história, verdadeira ou não, desde que a fizesse chorar. Ele continuou.
- Mas não percebi logo, distraído pelos sapatos dela.
- Os sapatos?
- Sim, os sapatos estavam gastos, eram velhos, com umas fivelas muito feias.
- Mas ela...
- Ela estava bem vestida, em tons de cinzento, já te disse. Parecia ter saído de uma montra.
Maria falou, de riso tapado.
- Menos os sapatos...
Ele assentiu, de punhos cerrados.
- Sim, menos os sapatos.
- João, foi aqui?
Ela sabia que sim.
- Sim, eu estava sentado neste mesmo banco.
Maria parou de contar as pessoas, um vício antigo, de horas de espera. Aguardou as palavras em forma de poema, como João sempre fazia. Ao longe ouviu o metro que se aproximava e viu todos a levantaram-se. Eles deixaram-se estar, era o metro das oito, que vinha sempre vazio, reservado, sem paragens. Todas as quintas-feiras vinham ali, assistir à passagem daquele comboio fantasma, que deixava todos nervosos, que lhes trazia risos contidos, na educação de não magoar.
- Fala-me do sorriso.
João fez um ar de indecisão, que não sentia.
- Como é que sabes que vou contar a história do sorriso?
Os olhos dela brilharam.
- Prometes-me que a contas há tanto tempo.
Ele começou a falar, com as mãos juntas em prece, em que não acreditava.
- Maria, ela sorria... ela sorria.
- Sim, eu isso já percebi. Mas porque é que esse sorriso foi tão especial? Era para ti?
- Ao princípio achei que sim, depois duvidei, porque ela... eu nem tinha a certeza que ela estivesse a sorrir.
Uma música começou a tocar na cabeça de Maria. Acontecia sempre que não percebia alguma coisa, quando se zangava, quando estava confusa, trauteava sempre a mesma música, sem fazer um único som. Esperou que ele continuasse.
- É que... é que a cara dela, a cara dela podia ser assim mesmo, percebes?
- Não, não percebo.
Os olhos dele abriram-se, em nervos de não poder continuar a história.
- Maria, eu não sabia se ela estava a sorrir, ou se era a forma da sua cara, da sua boca, um sorriso eterno, um sorriso leve, mas que durava para sempre.
As palavras fizeram sentido, e ela deixou-se cair sobre a parede de metal, que lhe deixava um gosto esquisito na boca.
- Sim, percebo. E o que é que fizeste?
- Entrei atrás dela no metro, queria-me sentar à sua frente, para decidir sobre o que me incomodava, ao mesmo tempo que me dava conforto. Mas só sobrou um lugar ao lado dela, que me escondia, que não me deixava ver.
- Não conseguias ver o sorriso?
- Não, só as unhas pintadas de vermelho.
Maria não conseguiu evitar uma leve ironia, um tom diferente na voz.
- Mas não tinhas dito que eram só os sapatos?
Ele fingiu que não percebeu.
- Disse, mas as unhas também estavam pintadas, com um vermelho muito vivo.
Ela adorava o dramatismo, o sentir, em pequenas coisas.
- Mas afinal qual era o mal das unhas? O vermelho não é assim tão mau.
- Não percebes, não era só a cor, elas... as unhas estavam pintadas como... como se...
Maria sabia bem o que é que ele queria dizer e libertou-o da tortura, de não conseguir.
- Como quando as miúdas pequenas pintam as unhas.
Ele suspirou de alívio.
- Isso, sim, é isso. Mas não estavam... o verniz não saía para fora das unhas, percebes?
- Como assim?
- Era como se tivesse muitas camadas, como se ela as tivesse pintado vezes sem conta. E depois... eram muito pequenas, cortadas até ao limite da dor, em dedos sem vida, pouco elegantes.
A música voltou, Maria deixou-se embalar.
- E o que é que fizeste?
- Ela saiu logo na estação seguinte.
Maria quase se levantou.
- O quê? Sem perceberes o sorriso? Desculpa, mas como é que conseguiste viver sem saber?
Um segundo, João demorou apenas um segundo a responder.
- Não consegui, fui atrás dela.
Chegou um metro e dezenas de pessoas saíram apressadas. João foi o primeiro a parar de rir.
- Acho que ainda não foi desta.
- Parece que não, mas eu sei João, sei que um dia destes vai acontecer.
- Sim, dois reservados, um a seguir ao outro.
Maria fez um ar muito sério, em que nenhum dos dois acreditou.
- Sabes do que é que eu sinto mesmo falta?
- Não.
- Papel de parede.
Era a vez dele ouvir.
- Se soubesses como sinto a falta de passar as mãos pelos desenhos, como em casa da minha avó. Há coisas que nunca deviam desaparecer.
- Eu segui-a.
- O quê?
- Ouviste bem, segui-a, como um daqueles tipos dos filmes, obcecados por alguém.
- Mas, e... conta-me tudo, e ela? João! Diz-me que esta tem um final feliz, por favor.
Ele encheu o peito de ar, como se fosse contar tudo num só respirar. Respondeu em ar traquina.
- Ela esperou por mim atrás de uma esquina, atirou-se para a minha frente em desafio.
- Não acredito! E tu?
- Maria, eu já ia com os olhos cheios de lágrimas, de desespero de a perder.
- Tem um final feliz, eu sei que tem um final feliz.
Maria pôs-se de pé em cima do banco e gritou, girou sobre si mesma, de saia feita de vermelho e amarelo. As pessoas riam-se ao passar, de inveja de não saber. Então agarrou na cara de João e puxou-a até ela.
- Conta-me!
Outro segundo, apenas outro segundo, mais longo do que qualquer outro.
- Um beijo, de lágrimas que se tocaram, num abraço quente...
Não aguentou e completou a frase dele.
- Que nunca conseguiste esquecer.
- Sim.
Maria apertou a boca com força, fechou um soluço com os dedos, sem conseguir respirar, até o soltar, de olhos quase fechados em dor. Falou a chorar, num sentimento sem nome, em breve sorriso, e palavras ditas devagar.
- Tu... sabes ao menos o nome dela?
Ela percebeu o tremor nele, um arrepio que lhe trouxe um sorriso.
- Sim, mas é um segredo que não posso contar.