quinta-feira, setembro 28, 2006

Um

À minha frente está sentado um homem de cabelo branco que olha o vazio atrás de mim, que olha os outros passageiros do metro. Penso se estará a tentar adivinhar as vidas e tenho vontade de lhe perguntar, tenho vontade de lhe dar a mão e sentir se está quente. Observo-o sem esconder o olhar e reparo que a camisa que tem vestida é muito velha, está remendada em demasiados sítios e desisto de os contar. Por cima da camisa um casaco sem cor, um companheiro de todos os dias, um casaco mágico. Imagino que nunca o pode tirar, que só o pode despir depois da noite cair, para não perder as memórias, as recordações em forma de cheiro, o tecido gasto pelo Sol. Vejo a mão dele a mexer-se, a apertar outra a seu lado, uma mão cheia de manchas, pequenos sinais que só os idosos sabem admirar, pois dizem que idade temos. A mão é de uma doce senhora, que eu consigo sentir, porque respiro o seu perfume, misturado com os outros que passam. Está vestida com uma camisa quase branca, que já foi branca, mas que agora é só limpa, de tantas vezes lavada, de muitas tardes de chá e de pequenas migalhas de bolo de chocolate. Um alto deforma as suas costas, uma corcunda esquecida, um andar dobrado, mas de cabeça erguida. Desvio os olhos para o lado e encontro lágrimas nos olhos do homem, um choro sem expressão, sem o contrair da cara, sem som, um choro que impressiona, por ser tão calmo. Sei que sonha, sei que recorda, uma vida tão cheia, uma tarde de verão, uma tarde perdida, para sempre lembrada. Ela sorri e descansa no casaco dele. Despeço-me, sem perguntar.

terça-feira, setembro 19, 2006

Medo

Era quase meia-noite e Carlos e Pedro desciam a Avenida Almirante Reis. Era o último dia de Verão, o último dia dos passeios pela cidade, uma Lisboa que parecia olhar para eles, que tomava conta de dois miúdos que se iam tornar adultos.
- Só tenho pena de uma coisa.
Pedro parou e acendeu um cigarro antes de falar.
- O que é que foi? Hoje? Hoje vais começar com as tuas merdas? Não podes caminhar calado? Não podes ficar calado uma vez na vida... não sabes... não sabes que é o último dia, a última vez que caminhamos sem destino?
As últimas palavras de Pedro já tinham sido ditas no meio de um choro quase descontrolado, um choro assustado. Carlos ficou com os músculos da cara todos contraídos, uma máscara de dor que o paralisava numa única expressão e falou de dentes cerrados.
- Parece que está sempre de noite, parece que é sempre tarde.
- O quê?
- A cidade... os prédios, os carros, não me vou conseguir lembrar deles de outra forma, como se nunca os tivesse visto à luz do dia.
Pedro passou a manga da camisa pela cara e ficou a olhar para o chão antes de falar.
- Mas não era disso que ias falar, não era da noite, pois não?
Carlos sorriu com esforço.
- Sabes sempre, não sabes?
- Acho que sim, acho que sei. Olha, desculpa... desculpa eu ter-me irritado. Eu estou a ouvir-te.
- Ia dizer que só tinha pena de não ter amado esta cidade durante tanto tempo, de só a ter amado quando deixei de ter medo.
- Não podia ter sido de outra maneira. Tu sabes que não podia ter sido de outra maneira. Se calhar foi tudo cedo demais, se calhar daqui a uns anos...
Não foi capaz de continuar, recomeçou a soluçar violentamente e ajoelhou-se encostado a um carro. Carlos aproximou-se, tocou-lhe com uma mão no ombro e fechou os dedos com toda a força. Foi sacudido por um empurrão.
- Sai da frente.
Os olhos de Pedro ainda estavam cheios de lágrimas mas já não chorava. Levantou-se e correu pela rua fora. Correu entre os carros aos gritos, correu como se fugisse de alguém, como se fosse um animal encurralado a tentar libertar-se de correntes. Carlos olhava para toda aquela loucura e não dizia nada, ele também se sentia preso, ele também tinha vontade de correr, ele também queria se libertar. Mas não conseguia, fechava apenas os olhos e cerrava os punhos. Gritou.
- Pedro! Pedro! Foge, foge por favor. Não aceites, não temos de ir, não temos de ir...
As palavras que chegaram até ele foram as mais calmas que alguma vez ouvira, as mais serenas que iria ouvir no resto da sua vida.
- Sabes que temos ir, tu sabes que temos de ir.
À sua frente Pedro olhava para ele a sorrir, já não tinha a camisa vestida e a sua pele suada reflectia a luz fraca dos candeeiros. Subiu para cima de um carro e abriu os braços, esticou os dedos como se quisesse agarrar algo, como se desafiasse o destino. Então, sentou-se no tejadilho e começou a cantar baixinho.

- Pai?
A voz de Teresa chamou-o de volta à realidade.
- Diz querida.
- A mãe pergunta se demoras, ficámos de estar em casa dos avós antes das oito.
- Não, não demoro. Diz à mãe que não demoro.
O olhar curioso da filha viu a fotografia nas suas mãos.
- Quem é?
Não teve medo de responder.
- O Pedro, um amigo, um grande amigo.
- Não me lembro de te ouvir falar nele.
Continuou sem hesitar.
- Ele morreu na guerra em África.
- Foram colegas lá?
Sorriu com a palavra que ela escolheu.
- Não, não fomos colegas lá, ele foi para outro lado. Vai descendo que eu vou já.
Teresa fechou a porta atrás dela e Carlos olhou uma última vez para a fotografia amarelecida pelo tempo. Lembrou-se outra vez daquela noite e deixou os olhos encherem-se de lágrimas.

quarta-feira, setembro 06, 2006

A história de amor

- Avó, contas-me outra vez a história?
- Qual minha filha?
- A história de amor.
- Claro querida... claro que conto.

Não conseguia ver, tacteou à sua volta e sentiu o cheiro de cerveja derramada no chão cheio de palha. Havia também pão e carne seca, mas não era capaz de comer. Ao seu lado um monte de pêlos e sangue provocou-lhe mais um vómito violento. Contorcia-se, enrolava-se sobre si mesmo e sentia as lascas da madeira do chão a cravarem-se na carne. A dor trazia-o de volta à vida. Uma porta abriu-se e sentiu outro cheiro, fugiu para um canto escondendo a sua nudez, escondendo a pele suja, negra, áspera, as unhas partidas, as mãos demasiado fortes. Mas ela não se importava, nunca se tinha importado, lambera sempre as suas feridas com paciência, com amor, um amor que não fazia sentido, que não era natural, mas que o fazia adormecer. Repetiu a pergunta, suplicou, pediu a Deus que não tivesse acontecido outra vez, que o deixasse descansar. Era tudo o que desejava, tudo o que sonhava, tudo o que não podia ter. A visão voltava aos poucos, os olhos habituavam-se à luz e podia ver o vestido branco que o abraçava, podia ver o contorno de uma madeixa de cabelo, uma mão sobre a sua. Mas a respiração alterou-se, o coração bateu mais depressa e amaldiçoou os sentidos, o sangue que cheirava não era o seu, nem estava seco entre os seus dedos, era sangue vivo, que corria devagar, mas sem parar. O som de uma gota trouxe um grito que só podia ser seu e sentiu medo. Implorou para que os olhos dela não se fechassem, mas não teve resposta, apenas um último lamento, palavras ditas num sorriso que se fechou.

- Avó...
- Sim?
- Ficas um pouco comigo?
- Dorme, eu fico aqui.

sexta-feira, setembro 01, 2006

O rapaz que escrevia ao contrário

Apaixonada, Susana descia uma das muitas escadas de Lisboa e assobiava acompanhando uma voz feminina, a única que conseguia ouvir nos últimos dias. As paredes estavam cheias de palavras pintadas a vermelho e eram como a letra da música que ouvia.
A doze degraus de distância um rapaz escrevia numa das paredes. Tinha a seu lado uma lata de onde escorria um fio de tinta e ela sorriu com mais uma aposta estúpida que não podia ganhar, mesmo assim cruzou os dedos numa jura que cumpriria, apesar de não acreditar no castigo.
- O que escreves?
- Letras erradas.
- Como?
- Tu ouviste, letras erradas.
Um pingo de tinta tocou outro degrau e decidiu o rumo da conversa.
- Mas não existem letras erradas, só palavras, só as palavras...
Ele afastou-se da parede e fez-lhe sinal para ela se aproximar.
- Diz-me o que vês.
Susana demorou a responder, as palavras não pareciam fazer sentido. Leu-as várias vezes e continuou sem perceber. Olhou para o rapaz que aguardava com um ar ansioso com as mãos juntas, uma prece involuntária, um desejo de partilhar um segredo.
- A solução é simples, não é?
- Sim.
- Estão ao contrário... que estúpida, estão ao contrário. Mas e as letras?
Ele ficou calado. Ela gritou entusiasmada.
- O acento! É o acento que falta no “a”? Mas não é uma letra errada, o acento só lhe vai dar sentido.
- Isso depende de ti...
Percebeu o que ele queria dizer e aceitou o pincel cheio de tinta da mão dele. Esperou um pouco antes de falar.
- Sabe bem.
- Eu sei. Olha, queres vir dar um passeio?
- Quero, quero muito. E a lata, fica aqui?
- Não sejas batoteira, a tinta ainda está a escorrer.