segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Durante a Noite

Abro o frigorífico e olho lá para dentro. Tiro um pacote de leite e desejo que não tenha passado o prazo de validade. Tem a data do dia anterior e decido arriscar tentando ignorar o sabor esquisito que me convenço ser apenas da minha cabeça. Dirijo-me à sala às escuras e tento fazer pouco barulho, não quero acordar Teresa, principalmente depois da discussão que tivemos e que provocou a sua ida para a cama mais cedo.
Sento-me à mesa onde horas antes estivemos a comer e ligo o portátil, é algo que faço quase de forma automática, sem nenhum plano. Sei que devia ir deitar-me e abraçar Teresa, mas tenho a cabeça demasiado cheia, tenho de desabafar e só o vou conseguir se escrever algumas palavras. Juro a mim próprio que é só uma hora, mas sei que estou a mentir, nunca é só uma hora.
São duas da manhã e relembro a conversa do princípio da noite, relembro as palavras amargas que Teresa me disse e penso se ela terá razão, se eu mudei assim tanto nestes últimos anos. Sei que as coisas não são como antigamente, mas só nos últimos meses dei conta do quanto nos afastámos um do outro.
Sinto-me saturado e tenho vontade de sair de casa, de guiar sem destino durante horas, só eu e o barulho do carro. Olho para as chaves no móvel da entrada e domino o impulso de me levantar, se Teresa acordar sem eu estar em casa vai ficar preocupada e vai ser mais difícil pôr as coisas bem.
Tenho saudades do tempo em que nos conhecemos, do dia onde tudo começou, do cinema onde éramos as duas únicas pessoas na sala, da queda que dei na escuridão que castigava quem chegava atrasado. Nunca me vou esquecer do seu riso e do meu esforço para conter as lágrimas de dor. Lembro-me de me sentar a seu lado e de não conversámos durante todo o filme, mas de ter a certeza que estávamos juntos e que iríamos estar para sempre.
Os meus pensamentos são interrompidos por um choro, levanto-me e dirijo-me depressa ao quarto que fica ao lado do meu. Consigo lá chegar antes que Teresa acorde e com cuidado afasto os sonhos maus para longe. Sento-me na cama e deixo a mão por cima dos cobertores enquanto o embalo traz o sono até mim.
Acordo com uma mão na minha e pergunto se ele chorou outra vez, Teresa diz-me que não, que julgava que eu tinha adormecido na sala e que me tinha ido chamar. Observo-a enquanto puxa os cobertores para cima e lembro-me outra vez de nós. Ficamos um pouco a ouvir o seu respirar calmo e saímos do quarto de mãos dadas.

7 comentários:

Abelhinha disse...

Lindo!

Muito bonito mesmo.

Adorei

Taniacruz disse...

Muito bonito... transmite uma calma que as vezes faz falta...

Obrigado*

nspfa disse...

inda tu dizes que não descreves realidades...que falas de ficção!Pois a mim poucas coisas me parecem mais reais que o cansaço nas relações e as saudades do tempo da paixão, onde tudo parece louco e irreal.Onde todos os pormenores são guardados na memória e aí teimem em permanecer.

Adorei meis esta tua história, tão cruel, meio dramática, mas completamente real.

grande abarço

Mike Monteiro disse...

Ficção de uma realidade cruel...
Muito bom.

laura disse...

o sorriso de cima é meu. esqueci-me de "assinar" :)

Kiau Liang disse...

Sentir no toque de mão o que o coração, por vezes esqueçe.......

Morgana disse...

comecei a ler-te há pouco tempo..mas já posso dizer com certezas: gosto da tua escrita! beijinhos