terça-feira, dezembro 04, 2007

O Quarto Lilás

Os olhos de Maria procuravam no escuro, sabia de cor as paredes, a arca dos brinquedos, o cavalinho de madeira escura. Conseguia ouvir os pais na sala ao fim do corredor, o passar das folhas do jornal, a colher na chávena de chá, o bule pousado devagar. Tinham-se habituado aos silêncios da filha, pequenos passos na alcatifa, num correr abafado, e a segredos escondidos, por trás de um sorriso irrequieto. Maria tinha apenas quatro anos, mas explorava a casa como se fosse uma caçadora experiente, esperando, observando, descobrindo os cheiros, caminhando devagar, por entre as ervas secas da savana. No quarto, um barulho trouxe o medo, a barriga fria, duas mãos esticadas, num abraço esperado. Dois olhos brilharam, por cima de dentes aguçados, de dedos deformados, em garras afiadas, de um tocar gentil. Maria não conteve um grito, um desejo que se transformou, que chamou os passos pesados na madeira. O pai acendeu a luz, antes de uma prece rápida, por não conseguir perceber. A mãe caiu em desmaio, ao ver as mãos da filha, vermelhas de sangue vivo, que escorria até aos seus pés. Maria chorou baixinho, quando ouviu um esconder apressado, seguido de uma porta fechada.

— Queres esperar? — perguntou João.
Maria não respondeu, ficou parada no princípio das escadas. A casa por fora estava na mesma, a madeira pintada de branco, o telhado feito de telhas negras. Pelas janelas conseguia ver os cortinados de rendas perfeitas, pequenos desenhos que lhe traziam imagens à cabeça. Lembrava-se da mãe a bordar, de se deitar no seu colo, fugindo da sombra no chão, fechando os olhos para o Sol.
— Não acredito que ele não a tenha vendido — disse quase a chorar. — Não acredito que ele não tenha dito nada, mesmo nestes últimos anos. Achas que era por isso que ele sorria, mesmo antes de fechar os olhos?
— Não sei mana, não sei — disse João, ao mesmo tempo que olhava intrigado para a casa. — Acho que ninguém podia adivinhar, depois de tudo o que se passou.
Maria olhou para ele, à espera da pergunta.
— Maria...
— Nunca perguntaste João, tu nunca perguntaste — disse ela olhando-o nos olhos.
— Sim, eu sei... bolas! Tu tinhas quatro anos, eu nem sei o que te perguntar. — Subiu dois degraus sem reparar. — Eu já nasci com o segredo guardado, para mim não era sequer uma hipótese perguntar.
— Eu lembro-me de tudo — disse ela, ao mesmo tempo que subia também os degraus. — Lembro-me de tudo o que se passou naquela noite.
— A sério? — perguntou ele.
— Todos os dias da minha vida, todos os dias da minha vida.
— O que era? — perguntou, relembrando os medos de criança, de histórias assustadoras, que não lhe souberam explicar. — Quem estava contigo no quarto?
— Um amigo João — disse ela, enquanto subia mais um degrau, aproximando-se da porta da entrada. — Era apenas um amigo.
— Mas era real? — perguntou ele, pedindo desculpa com o olhar.
Maria sorriu.
— Para mim era João, para mim era.
Subiram até um pequeno alpendre, empurraram a porta pintada de verde, de tinta ressequida que lhes sujou as mãos. Sentiram o cheiro do pó, de anos de vazio, de silêncio forçado. João entrou à frente, protegendo a irmã, escondendo o medo.
— Onde é o quarto?
— No fim do corredor — respondeu ela, enquanto passava à frente dele, correndo até a uma porta fechada.
— Maria, queres entrar sozinha? — perguntou ele, tentando adivinhar qual era o desejo da irmã.
Ela sorriu outra vez.
— Não João, podes entrar comigo. Só preciso de me lembrar, de ter a certeza, de que nunca me vou esquecer.
— Mana...
— O que foi? — perguntou ela, disfarçando a impaciência, com a mão no puxador da porta.
— Obrigado por partilhares isto comigo, por me levares nas tuas aventuras.
— Tonto — disse ela a rir, com os olhos cheios de lágrimas. — Anda, não vais acreditar na cor das paredes.