quarta-feira, agosto 04, 2004

A Música

Adeus

Ana e Luís seguiam devagar pela rua. Estavam quase encostados um ao outro mas não se tocavam, mesmo assim existia uma sensação de conforto, como que um amparar mutuo. Este era o seu mundo, um mundo de silêncio onde tudo era quase entendido sem o uso das palavras, sem que fosse preciso explicar o que ia na cabeça de cada um, um mundo onde existia uma tristeza sempre presente que os unia de uma maneira muito forte, mas que fazia com que os seus olhares fossem tristes e distantes.

Luís desistira de tentar convencer Ana a ficar e sabia que aquele era um passeio de despedida. Dois anos de convivência diária, de muitos risos e algumas lágrimas, iam finalmente chegar ao fim. Depois da última conversa, ele já não tinha coragem de tentar convence-la de que estava a cometer o erro da sua vida, que não ia haver outra hipótese para serem felizes. Ela não ia ouvir e ele não ia tentar mais.

Parou à entrada do metro, o local onde sempre se separavam, e ficou a olhar para a sua cara durante algum tempo. Abriu a boca mas não foi capaz de falar, queria dizer-lhe que a vida não devia ser assim, que não se pode querer controlar os sentimentos, mas sabia que ela naquele momento não era livre, estava prisioneira das suas ideias e nesse estado não podia pensar da mesma maneira que ele.

Deu-lhe um beijo na face e afastou-se sem olhar para trás, tinha de começar a viver uma nova vida e era melhor começar já.


Manhã

De repente tinha começado uma vida nova e nos primeiros meses quis fazer tudo o que não tinha feito nos últimos anos, todos aqueles desejos que estavam esquecidos e que agora tinha decidido retomar. Mas Ana estava sempre presente, não havia um dia que não pensasse nela, ou que não sentisse que aquele pequeno frio no estômago era o seu inconsciente a dizer que ainda não a tinha esquecido.

Mas o tempo traz algum sossego e o que era uma obsessão transformou-se numa recordação que cada vez incomodava menos. Ficava a imagem dela à entrada do metro e a sensação de vazio que tinha sentido.

Durante algum tempo ainda foi tendo noticias através de amigos comuns, ela tinha seguido a carreira de sucesso que queria e casado com o homem com que sonhara, mas não com o homem dos seus sonhos, achava ele. Mas ao fim de um tempo deixou de saber o que se passava, a distância afasta as pessoas, especialmente as que já estão afastadas antes de se separarem fisicamente e pôde seguir com a sua vida.


Escrever

Passaram cinco anos e Luís levava a vida possível. Não era uma pessoa infeliz e a maior parte dos dias sentia que estava bem e que tinha uma boa vida, mas havia um sentimento de tristeza que era quase imperceptível para os outros, mas que estava sempre presente. Ele sabia reconhece-lo e lembrava-se de uma fotografia de um dos seus discos favoritos, uma cara triste, uma cadeira velha e uma angústia no ar com que se identificava. Apesar de tudo era um disco alegre, nada parecido com a fotografia da capa. Ele sentia algo parecido na sua vida. Era a capa do disco que não fazia sentido, ou era ao contrário?

Mas a maior parte das vezes sentia-se feliz, ou fazia por isso. Preferia seguir as letras do disco, que se tinha tornado na sua maior companhia, uma nova obsessão que não compreendia, tudo o que estava escrito parecia vir da sua cabeça. Sabia que podia só ser pelo facto de ser especialmente susceptível àqueles versos, mas não deixava de ser uma coincidência muito grande.

Luís era também um escritor, mas de uma forma solitária, dono de um blog que ninguém lia a não ser ele próprio. De qualquer forma era na escrita que se encontrava, era através das histórias que criava que vivia outras vidas que eram ao mesmo tempo parte da sua e o oposto da mesma. Ele escrevia sempre na primeira pessoa e contracenava com muitas pessoas que não existiam, reflexos imperfeitos de outros com quem se tinha cruzado, mas que não conhecera o suficiente. Era preciso completar as peças, era necessário imaginar cada fala, cada pensamento e até as características físicas destes seus companheiros irreais.


Reencontro

Mas a vida é estranha e às vezes parece que anda em círculos. Este era o pensamento na cabeça de Luís quando ao subir a rua viu uma figura conhecida a vir em direcção a ele. Ela estava mais velha, o olhar tinha algo de diferente, como se o tempo tivesse apagado um pouco do brilho que ele nunca esquecera.

Sorriu e avançou para ela, deram dois beijos e ficaram a olhar um para o outro sem dizer nada. Ana parecia cansada e foi com uma voz trémula que perguntou como é que ele estava, nunca mais tinham falado desde a separação no metro e havia um certo desconforto no ar. Luís não respondeu, sabia que ela lhe queria contar alguma coisa e que as perguntas de circunstância só iam fazer com que ela demorasse mais tempo a falar. Reparou que os seus dedos estavam vazios.

Sentaram-se num banco de jardim e Ana falou e contou tudo o que se tinha passado desde que se tinham despedido. Tinha passado anos muito bons a nível profissional e pessoal, era vice-presidente de uma empresa muito importante e tinha casado com uma pessoa que parecia ter sido feita para ela. Alguém que a fazia ter conforto, alguém que lhe tinha dado segurança, a relação que ela sempre desejara. Mas o seu discurso era triste e desanimado. Mesmo assim Luís conteve a sua curiosidade e continuou a ouvir Ana a falar ao ritmo que queria, contando como as coisas tinham corrido muito bem até um certa altura, até ao momento que se tinha instalado uma sensação de vazio na sua vida, até ao momento que tinha de completar com sonhos os seus dias. Nunca aconteceu nada de grave, nenhuma traição, nenhuma discussão séria, só um desanimo crescente e uma ruptura inevitável sem nenhuma conclusão, sem nenhuma lição a tirar. Ana perguntou se não podia ser feliz, Luís não respondeu...


Mar

Levantou-se, deu-lhe uma mão e disse para saírem dali. Foram até ao pé do mar e ficaram sentados no carro a observar as pessoas a brincarem na praia. Luís não teve coragem de ligar o rádio, sabia bem o que é ia começar a tocar, não teve forças para enfrentar tudo outra vez e ficou apenas a ouvir o barulho do mar. Ficaram em silêncio muito tempo, até àquela hora em que a noite se confunde com o dia e tudo se mistura, tudo parece diferente. Mas era um silêncio confortável, sempre foi, não precisavam de falar para saber exactamente o que se passava na cabeça do outro...e beijaram-se.

Foi o beijo mais intenso das suas vidas, a emoção que sentiram não era comparável com todas as experiências passadas, a saudade não era só um sentimento abstracto e podia quase sentir-se entre eles e as suas mãos apertavam com força o corpo um do outro como se não se fossem ver nunca mais. Mas para Luís havia algo que não estava certo, alguma coisa que o fez afastar-se e refugiar-se nos seus pensamentos, a sensação que sentia ao abraçar Ana era muito boa, mas parecia desajustada no tempo, parecia que, de alguma forma não fazia sentido, isto apesar de ainda sentir o seu gosto na boca e de saber que não podia sentir o que estava a sentir com mais ninguém.

Ligou o carro e guiou em direcção à cidade sem dizer uma palavra. Ana não disse nada, a cara de Luís tinha tanto de feliz como de zangado e sabia que não era boa altura para falar. Apesar de tudo, percebia o que se passava, sabia o que Luís devia estar a pensar ou a sentir e lembrou-se das palavras dele no dia da despedida. Não sabia se podia ainda ser feliz, não sabia como é que podia corrigir o que não tinha a certeza que tivesse de ser corrigido. Ficou só calada, contendo as lágrimas e observando Luís enquanto conduzia. A expressão dele de repente tinha ficado estranha e pela primeira vez olhou para ele e não conseguiu perceber o que ele estava a pensar. Sentiu outra vez uma vontade enorme de chorar, mas não o fez, olhou apenas o mar que acompanhava a estrada e adormeceu até chegarem a sua casa. Luís não disse um palavra quando ela saiu do carro, mas olhou para ela de uma maneira doce antes de partir devagar. Era tarde...


Estranho mundo

Passaram duas semanas e Luís tentava afastar certos pensamentos da sua mente, não queria ter que decidir, sabia que ia ter que se enfrentar a si mesmo e tinha medo do que fosse acontecer. Ana tinha-lhe telefonado várias vezes, mas ele não atendera, não sabia mesmo o que fazer, por um lado ela era tudo o que sempre tinha querido, por outro, quem era ela para aparecer e desaparecer assim da sua vida? Claro que eram almas gémeas, mas isso já ele sabia há muitos anos, já sabia que estavam destinados a ficar juntos. Mas ela não tinha querido aceitar este destino, ela achou que existia uma outra vida que poderia viver. Não era vingança, não era por ser uma segunda escolha, ele sabia que tinha sido sempre a primeira escolha e que era a principal razão para ela ter voltado, mas assim as coisas não faziam sentido. Ele tinha demorado muito tempo a libertar-se daquele amor, a conseguir viver sabendo que podia não a ver mais, mas também sabia que não era completamente feliz, que faltava alguma coisa na sua vida, se ao menos tivesse a certeza que podiam ter uma vida alegre, sem a tristeza sempre presente, sedutora, mas que magoava.

Decidiu ir passear e resolver de uma vez por todas aquele assunto e mesmo sabendo que as probabilidades de numa tarde resolver o que não tinha conseguido resolver em anos serem poucas, caminhou sem rumo pela cidade. Tentou olhar para as ruas, que tão bem conhecia, com outros olhos, olhava para os cantos para onde ninguém olhava, levantava a cabeça e olhava para a parte de cima dos prédios e observava o que ninguém vê quando se caminha com os olhos na calçada. Então seguiu por um percurso pouco habitual e entrou numa rua por onde não costumava caminhar. Era uma rua escura e muito antiga, mas que não era assustadora. Os prédios pareciam observar quem passava e não se via ninguém, mas sentia-se acompanhado, era uma sensação estranha mas agradável. Não sabia onde ia dar a rua e continuou a olhar para as varandas enfeitadas de vasos com flores que não condiziam com as cores escuras das paredes que os rodeavam.

De repente a rua acabou e deu por si num local conhecido, estava perto da estação de metro onde se tinha despedido de Ana uns anos antes. Não pôde deixar de achar curioso ter ido dar ali e avançou enquanto se recordava mais uma vez da figura dela em pé enquanto ele descia a rua sem olhar para trás. Mesmo sem a ter visto sabia que nesse momento ela estava mais bonita do que nunca e era essa imagem que ele tinha guardado na sua memória, uma memória de algo imaginado e por isso perfeita. Entrou no metro...


Música

Enquanto descia as escadas devagar começou a ouvir uma música ao fundo, alguém devia estar a pedir algumas moedas em troca da sua arte. Caminhou ao encontro do som e depois de virar uma esquina do corredor subterrâneo deu de caras com um homem muito alto com uma barba cinzenta muito grande e que tinha uma guitarra nas mãos. Tinha parado de tocar e ficou a olhar para Luís que andou mais devagar na esperança de ouvir a próxima música, sempre gostara de ouvir os músicos de rua embora raramente os recompensasse pelo prazer que sentia. O homem dirigiu-se para ele e perguntou se ele queria ouvir alguma música, algum pedido especial. Luís lembrou-se do seu disco favorito e da música de que gostava mais, mas não teve coragem de falar nela e disse que qualquer uma servia.

O homem voltou lentamente para o seu canto e sorriu levemente enquanto se preparava para começar a tocar. Parecia que ele o estava a desafiar e por momentos achou que ia tocar a sua música, como se pudesse adivinhar os seus pensamentos, como se soubesse que tinha nas suas mãos a resposta que ele procurava. Tremeu quando ouviu os primeiros sons da guitarra tocada por aqueles dedos elegantes e tentou perceber se os seus medos tinham sentido. Mas não, a música era muito bonita, mas desconhecida. Não sabia se tinha ficado feliz, ou se por outro lado era uma desilusão. Olhou triste para o chão e perguntou a si mesmo porque é que as coisas mais difíceis nunca aconteciam, porque é que não podia haver um pequeno sinal que o ajudasse, porque é que era tudo tão real...

Ficou a ouvir a música até ao fim e quando o homem acabou tirou uma moeda da carteira e procurou um sitio onde a pôr, que não existia. Então, estendeu a mão para o cantor e tentou dar-lhe a moeda. Mas ele acenou com a cabeça em sinal de recusa, não parecia querer aceitar aquela recompensa e Luís ficou sem saber o que pensar, não era esta a razão para ele estar ali? Tentou mais uma vez dar-lhe a moeda mas só conseguiu provocar uma gargalhada no homem, foi algo inesperado pois o riso modificou-lhe as feições e de repente parecia estar frente a outra pessoa. Ele parou de rir e, baixando a cabeça para ficar à mesma altura de Luís, disse-lhe que guardasse a moeda para uma altura realmente importante. Depois agarrou nas suas coisas e saiu apressadamente.

Luís guardou a moeda no bolso...


Encontro

Acordou no dia seguinte com uma sensação de bem estar que já não sentia há uns dias. Nada tinha mudado, mas sentia que não podia ficar para sempre triste, que tinha que avançar para algum lado, embora não fizesse a menor ideia para onde ir. Telefonou para Ana e pediu para a ver. Ela estranhou a voz dele, mas aceitou logo o convite, estava há demasiados dias em sofrimento e mesmo não sabendo se não ia enfrentar outra despedida, foi ter com ele, não podia desperdiçar uma oportunidade que podia ser única, mas saiu de casa muito nervosa. Relembrou todo o passado no caminho, todas as suas opções, todo o amor que sentia por Luís e que tinha recusado. Sabia que não podia voltar atrás, mas tinha medo que fosse tarde para emendar o que tinha feito, embora não conseguisse ter a certeza que tivesse errado, era muito complicado e tentou não pensar mais no assunto, a cabeça estava a ficar demasiado cheia.

Encontraram-se num bar onde iam muitas vezes no passado, era um sitio muito original em tons de cor-de-laranja. Sentaram-se numa mesa a um canto e Ana ficou à espera do que Luís tinha para lhe dizer. Ele olhou-a de forma demorada, na verdade não tinha chegado a nenhuma conclusão, achou que podia confiar num momento de inspiração e que quando estivesse com ela, alguma coisa surgisse, mas claramente tinha escolhido uma dia mau e não sabia o que dizer. Apesar de tudo continuava bem disposto, mais bem disposto do que na realidade desejava estar, mas era algo que não conseguia evitar, desde que acordara que estava com aquele estado de espírito e por muito que o irritasse não conseguia concentrar-se no problema que tinha para resolver.

Levantou-se para ir buscar uma bebida ao balcão, uma desculpa para ficar sozinho e ganhar uns segundos. Esperou um pouco enquanto observava a decoração do bar, nada tinha mudado nos últimos anos e pensava que de certa forma o mesmo se passava com a sua vida. Ali estava ele a pensar nos mesmos problemas de sempre, parecia que não tinha avançado nada desde que Ana tinha ido embora, pior, parecia que tinha voltado ainda mais atrás. Mas pensava nisto de forma despreocupada, estava cansado de tanta tristeza de tanto sofrimento, não queria chorar mais, não queria ser uma pessoa de braços caídos. Então reparou em algo que não pertencia àquele sitio, algo que normalmente só se via em filmes, uma máquina com pequenos discos que podiam ser escolhidos em troca de uma pequena moeda. Olhou em redor e reparou que o bar estava quase vazio, não iria incomodar ninguém, debruçou-se sobre a máquina e leu os nomes das músicas disponíveis. Enfiou a mão num dos bolsos e sentiu a moeda que tinha guardado no dia anterior. Introduziu-a na máquina e caminhou em direcção à sua mesa.


Rir

A música começou a tocar e Ana levantou a cabeça surpreendida, era a música de Luís, a sua fonte de inspiração. Não a ouvia há anos e lembrou-se de quando ele tinha comprado o disco, tinha sido pouco tempo antes de se ir embora. Uma lágrima escorreu-lhe pela face e ficou a olhar para o seu companheiro de sempre. Perguntou-lhe se sabia quais eram as probabilidades daquela música começar a tocar naquele momento, quando as suas vidas estavam numa encruzilhada onde era necessário fazer uma escolha e decidir que caminho seguir. Luís sorriu e disse que não era assim uma coincidência tão grande pois tinha sido ele a escolher a música. Ela não tinha reparado na máquina e sorriu também, mas a sensação de estar a passar pelo momento mais importante da sua vida continuava presente. O mesmo se passava com Luís, sabia que era ele que decidia, era ele que tinha que escolher o destino dos dois.

Meteu a mão no bolso e tentou sentir a moeda que já não estava lá, não tinha como evitar os minutos que se iam seguir, este era o momento que sonhara, era o momento que temera. Sabia que estava próximo da decisão mais importante da sua vida e não fazia a mínima ideia do que fazer. Porque é que viver era tão complicado, porque é que não podia ser pequeno outra vez? Talvez nunca o tivesse deixado de ser, uma criança que crescera, mas que não sabia lidar com os problemas dos adultos, uma criança que continuara a sonhar. Lembrou-se de quando tinha cinco anos e corria pela praia sem nenhuma preocupação, sentia apenas o vento na cara e ria para quem passava, olhava para o mar e imaginava o que estava do outro lado sem nunca ter tido uma resposta, mas também sem que isso o incomodasse muito. Porque é que as coisas não podiam ser assim tão simples? Se calhar podiam...

Pegou na mão de Ana e levou-a para fora do bar, ela não sabia o que é que ele tinha decidido e sentia-se perdida, mas ele não queria prolongar nenhum tipo de sofrimento e apertou a mão dela com força enquanto a conduzia até ao carro. Entraram e ele ligou o rádio, sabia que música ia começar a tocar pois tinha posto o cd estrategicamente naquela posição. Quando viu os olhos dela a brilhar por ouvir aquele som perguntou-lhe se não achava muito estranho que estivessem sempre a ouvir a mesma música. Ela não conteve o riso e ele acompanhou-a...

Porquê?

Deixou Ana a dormir e saiu para caminhar um pouco, sentia-se bem, mesmo não sabendo nada da vida, mesmo não tendo retirado nenhuma conclusão de tudo o que acontecera nos últimos anos. Sabia apenas que não fazia sentido não ser feliz, não sabia o que o ia acontecer, não sabia como ia lidar com os problemas do passado e muito menos com os do futuro, mas tinha a certeza que naquele momento estava bem e que a vida era o que era e era simples, o resto não importava. Voltou para casa...