sexta-feira, junho 29, 2007

For The Dark Finds Ways of Being

Rui esperava nas escadas, preso entre o dia e a noite, olhando a lua que aparecia por cima das árvores. Pela primeira vez em anos sentia-se bem, sabia respirar o ar fresco que chegava devagar. Não era capaz de dizer há quanto tempo ali estava, sorria ao pensar que podia ser desde sempre, que era capaz de acreditar. Viu um brilho num arbusto e disse as palavras, de quem pede em vez de mandar. A luz escondeu-se, na impaciência de se mostrar.
Margarida aproximou-se em silêncio, com um beijo demasiado perto, e um tocar delicado de dedos compridos. Falou no tempo certo, de quem aprendera a esperar.
- Estás aqui há muito tempo?
Ele sorriu antes de responder.
- Sim, estou. Queres ver uma coisa?
O coração dela bateu mais depressa.
- Sim, mostra-me.
Rui esticou uma das mãos em direcção aos arbustos, a outra ofereceu-a a Margarida, que a apertou com muita força. Ao princípio nada aconteceu, apenas o vento nas folhas, e a noite que continuava a chegar. De repente uma luz, que se acendia e apagava, depois outra, com o mesmo brilho incerto, até que apareceram mais, pequenos pontos cintilantes que se juntaram num só. Rui fechou a mão que estava esticada, e trouxe-a até ao seu peito. Margarida não conseguiu conter um riso, quando a luz se dividiu em mil, numa explosão em direcção a eles, no momento em que a tarde se despediu. Falou sem largar a mão dele.
- Rui, são pirilampos.
Ele aproximou-se dela, sentindo o mundo à sua volta, antes dos lábios se tocarem. Por fim a noite chegou.

segunda-feira, junho 25, 2007

O Aviso

Tenho uma história para contar, uma história que ainda não acabou. Mas primeiro tenho de falar nos livros, nos livros em geral, em todos os que já li, todos os que nunca acabei, ou mesmo os que ainda não abri.

Nunca marquei os livros, desde muito pequeno, quando lia aventuras passadas em ilhas de piratas, de lanches de pão com vegetais frescos, que me pareciam esquisitos, e ao mesmo tempo perfeitos. Nessa altura acabava os livros no dia em que os começava. Acho que foi por isso que ganhei o hábito de não marcar as folhas, porque a maior parte das vezes não chegava a parar. Depois comecei a ler livros maiores, que me passaram a acompanhar durante alguns dias, uns durante semanas. Continuei a não marcar o sítio onde parava, o que me obrigava a procurar, ou então a decorar o número da página, o que hoje não sei se seria capaz, por o sentir tão difícil, um número que não quer dizer nada, no meio de tantas outras hipóteses. Somos estranhos, com a nossa capacidade de perceber diferenças, que temo só existam em nós, como distinguir o lado esquerdo do direito, o azul do vermelho, ou reconhecer um riso no meio da multidão.

Uma noite comecei a escrever, depois de mil tentativas falhadas. Escrevi em dor, no meio de sangue e frio, de perda e redenção, até um final de tarde, em tons de amarelo-torrado. No momento em que acabei percebi, contive as lágrimas no saber, que tinha conseguido dizer o que sentia, mais, que tinha conseguido gritar o que estava tão fundo dentro de mim. Depois desse dia escrevi de forma compulsiva, dizendo o que era impossível de outra forma, sofrendo e sorrindo com as histórias que criava. Mais sofrendo do que sorrindo. E parei de ler. Os livros passaram a ser como portas, aberturas para outras realidades. Bastavam algumas páginas lidas, e começava a criar as minhas histórias, fechando os livros dos outros, que eram apenas pontos de partida.


A história

Três anos depois, um pouco mais talvez, juntei dois ou três livros para as férias, um hábito antigo, mesmo sabendo que não os ia ler. Já com a escolha feita olhei para a estante e hesitei, setecentas páginas pareceram-me demais, mas não consegui resistir. Comecei por esse livro, que falava de magia, de feitiços antigos, de magos e de bruxas. Fiquei preso, sempre foram as minhas histórias preferidas, mas que nunca escrevi, preferindo as pessoas, as experiências que não vivi, mas que consigo contar, por tanto as imaginar. Sorri, por voltar ao meu mundo, por sentir que tinha recuperado uma parte de mim, voando depressa através das páginas, assistindo a bailes no meio de sonhos, num mundo de fantasia, com elfos, fadas, corvos, feiticeiros, espelhos, um mundo onde o bem e o mal não se distinguem, onde é mais difícil escolher o caminho.

Não reparei no primeiro sinal, um pequeno sinal, mas que devia ter observado com mais atenção. Um dedo, como prova de um acordo, um pagamento que seria exigido, num contrato feito só de palavras, e num confiar arriscado. Era esse o segredo de uma das minhas histórias, que chegou na forma de um sonho, o mais completo que já tive, que me fez levantar e escrever, para não esquecer, para conseguir contar mais tarde. Um dedo, que faltava na mão de uma mulher, um pequeno detalhe escondido, que nunca contei a ninguém, um prazer só meu, no criar além das palavras, não dizendo tudo o que sei.

Um dia acordei de outro sonho, no tremer de um beijo, sem conseguir perceber, se o beijo pertencia ao sonho, ou ao meu desejo já acordado, uma diferença enorme, entre o que está no outro mundo, ao que acontece depois, mesmo que no mesmo segundo. Como sempre que acontece, fiquei melancólico, lutando por não ter de decidir, por não ter de saber. Acabei com o livro nas mãos, ignorando o aviso, de que o sentimento de falta é mau companheiro, nas dúvidas que chegam com a manhã.

Foi na página cento e sessenta e quatro. Foi nessa página que tudo mudou, que julguei enlouquecer, por ter a certeza de já ter lido aquelas palavras, de já as ter partilhado, de já as ter repetido vezes sem fim. No medo fechei o livro, senti o coração a bater mais depressa, senti uma vertigem que me fez segurar, um frio no estômago do qual não me consegui libertar. Não percebi o que estava a acontecer, pois apesar de o esperar, ninguém está preparado para ver o reflexo num espelho, sem saber de que lado se está. E ali fiquei, tendo sempre desejado o impossível, sempre chamado o outro mundo até mim, sem saber o que iria sentir, quando o visse à distância de um querer. Quando voltei a abrir o livro, demorei a encontrar, porque não tinha marcado, porque quase posso jurar, que as palavras já não eram as mesmas.

Hoje espero, porque sei, porque é a única verdade que conheço, que algumas vezes, em certos momentos, tudo faz sentido, até que no momento seguinte, a realidade apaga a certeza, talvez por não ser verdade, ou porque ainda não sabemos compreender, enquanto um livro aguarda, com um marcador no meio das folhas, numa página que não decorei.

segunda-feira, junho 11, 2007

À Chuva

João olhava para o mar de lágrimas nos olhos. Desde que chegara à praia que chorava sem parar, perdido no meio de pensamentos que repetia vezes demais, de músicas que já deviam fazer parte do passado. Esperava por Maria sem ter a certeza de que ela ia aparecer, sem saber se ia poder desabafar com a única pessoa que o percebia.
Ouviu atrás dele um barulho de carro a parar, seguido de uma porta que se abriu e fechou. A madeira estalou com o peso de alguém a andar em cima dela. João continuou a olhar o mar, apesar de tudo a ansiedade não era tão grande como antes, podia esperar para saber.
Uma voz chegou, sentida como um abraço, apesar do tom brusco.
— Bolas João! Não podes continuar a fazer isto! Sabes em quantos sítios já procurei por ti?
Maria conhecia-o demasiado bem, o que nem sempre ajudava, em desencontros que a irritavam.
— Desculpa ter desligado o telefone — disse, antecipando a crítica —, não era para que tu não me encontrasses.
Ela sentou-se ao lado dele no banco de madeira.
— Pois, espero que não, depois de cinco mensagens a dizer que precisavas de falar comigo. Não podias ter dito onde estavas?
— Eu não sabia Maria, quando dei por mim estava aqui, nem me lembro bem de ter guiado até cá.
Dos olhos verdes continuavam a cair lágrimas, pequenas gotas que se misturavam com a areia. Ela esperava sem perguntar, os dois eram como dois pratos de uma balança, sempre em posições opostas, sempre em equilíbrio, mas nunca à mesma altura. No último ano era sempre o prato dele que estava em baixo, suportando um peso que Maria não carregava.
— Sabes o meu antigo chefe? — disse ele, tentando controlar o soluçar na voz. — Ontem vi-o no metro.
— Aquele em que bateste?
A recordação ainda trazia de volta o sentimento de raiva, mas que, estranhamente, começava a diminuir.
— Eu não lhe bati — disse sem convicção. — Aquilo foi mais um empurrão, ele é que caiu mal.
Maria largou uma gargalhada.
— Caiu mal? Caiu mal de cabeça, queres tu dizer.
— Tens muita piada.
Ela controlou o riso, recordando os momentos difíceis que o amigo passara.
— Desculpa — disse ela, ao mesmo tempo que lhe roubava uma lágrima da face. — Eu sei que tu sofreste muito por causa dele. Mas porque é que te lembraste disso agora?
João falou devagar, como quem pensa em cada palavra antes de a dizer.
— Vi-o ontem no metro, acompanhado de uma mulher, uma rapariga.
Maria esperou.
— Ela devia ter uns trinta anos, um pouco gordinha, mas não era feia, não era... — Tossiu antes de continuar. — Eu nunca achei que houvesse uma mulher neste mundo que o quisesse, era uma garantia minha, de que a vida podia ser justa.
— Castigando-o? — perguntou ela.
— Sim, castigando-o. Eu sei que não é correcto, que não faz sentido passar o resto da vida à espera de o ver infeliz, mas ali naquele momento não fui capaz de conter a frustração, pela bondade no olhar da rapariga, por uma beleza simples, uma beleza que eu achei que ele não merecia.
— Mas não foi só isso, pois não? — disse ela, ao mesmo tempo que o empurrava com o ombro, tentando acalmá-lo.
João tossiu outra vez antes de continuar.
— Não, não foi. O que aconteceu depois deixou-me desarmado.
— Como assim? — perguntou ela de olhos semi-cerrados, por causa da luz e da curiosidade.
— Maria, eles iam um pouco à minha frente, conversando enquanto caminhavam. Eu não os conseguia ouvir, mas consegui perceber que algo se passava, sentia-se um problema qualquer entre eles, como se um dos dois fosse começar a chorar a qualquer momento.
— E depois? — Maria estava ansiosa, dominando as perguntas com medo que ele se calasse.
— Depois? Depois dei por mim a imaginar o que conversavam, a inventar palavras saídas da boca deles, a ter a certeza que estavam a acabar um namoro, que nem sequer sei se existe.
— E?
— E aí começou o meu problema — disse ele em voz baixa. — Dei por mim a desejar que ela não o deixasse, que resolvessem aquilo, que fossem felizes. Merda! Dei por mim parado nas escadas do metro, a desejar que fossem felizes. Percebes isto Maria? Consegues explicar-me isto? Eu sei que não sou assim tão boa pessoa.
Ela olhou para ele e sorriu. João estava com a barba por fazer, uma barba que começava a ser branca e lhe dava um ar engraçado, pois continuava com um ar de miúdo. Maria tinha a certeza que ele seria sempre assim, mesmo quando fosse muito velho.
— Achas que foi pena? — perguntou ela enquanto lhe dava a mão.
— Não, o pior é isso, tenho a certeza que não foi por pena que senti o que te disse. Sabes, eu odeio aquele homem, eu ainda sinto o coração a bater mais depressa quando me lembro de tudo o que ele fez, de tudo o que me aconteceu depois daquele acidente estúpido. Eu não o desculpo, nem acho que ele seja boa pessoa, mas... mas Maria, ontem, enquanto olhava para ele a conversar com a rapariga, nesse preciso momento, senti... — A voz tremia-lhe e mordeu o lábio de baixo. — Bolas! Queres saber a verdade? Senti-me próximo dele, senti uma vontade enorme de que eles ficassem bem, senti que isso era muito importante para mim.
Maria sorriu outra vez, desejando que ele entendesse.
— Olha, já ouviste falar em pessoas que viajam até sítios sobre os quais leram? — A pergunta pareceu estranha, mas deixou João curioso.
— Como assim? Lês algo que se passou num lugar e depois vais visitá-lo?
— Mais ou menos, começou por ser isso. Algumas agências de viagens começaram a aproveitar o sucesso de alguns livros e depois a organizar viagens que seguiam os sítios onde a história se passava.
— Acho que li alguma coisa sobre isso — disse ele sem perceber porque é que ela se tinha lembrado de falar naquilo. — Sinceramente sempre achei que era o tipo de coisas para turistas americanos, daqueles que andam sempre com camisas coloridas.
— Sim, eu sei — disse ela a rir. — Mas houve quem tivesse agarrado nessa ideia e tivesse se lembrado de uma coisa mais simples.
— Algo mais simples? — disse ele intrigado.
— Sim, a ideia é a de ler os livros num sítio que tenha a ver com o título ou com a história dos mesmos.
João passou as mãos no cabelo, tentado perceber o sentido do que Maria lhe estava a dizer.
— Mas não é o mesmo das viagens?
— Não, nada tão elaborado — disse ela entusiasmada. — O livro fala numa praia, tu só o podes ler numa praia, o título é O Comboio Fantasma, tu...
— Leio-o no comboio — completou ele.
— Mas que não tem de ser assombrado — disse ela. — Percebes? A ideia é ser uma coisa simples.
— Maria, acho a ideia muito boa, mas... — A frase ficou a meio de propósito.
— Queres saber porque falo nisto?
Ele fechou os olhos, por não precisar de responder.
— Lembrei-me de uma pessoa — disse ela, aproveitando para recordar. — Uma pessoa que lhe aconteceu uma coisa, não importa o quê, mas algo que lhe mudou a vida.
— E o que é que isso tem a ver com os livros? — perguntou ele.
— Ele... essa pessoa, ele adorava ler dessa maneira, raramente lia um livro sem seguir o ritual de procurar, embora eu ache que às vezes fazia ao contrário, escolhia primeiro o sítio e depois o livro — disse ela no meio de um sorriso.
João sentiu que percebia, antes de ter a certeza.
— E depois? — perguntou ele.
— Aquilo que eu disse que lhe aconteceu, foi uma coisa muito traumática, muito forte, num lugar onde ele esteve anos sem conseguir ir, até que... João, ele um dia apareceu-me em casa, numa noite de temporal, e trazia debaixo da roupa um monte de folhas escritas à mão.
— O que eram? — perguntou ele impaciente, desejando que ela contasse a história mais depressa.
— João, ele escreveu sobre o que tinha acontecido anos atrás, sobre o que carregava com ele todos os dias. — Fez uma pausa antes de continuar. — Ele foi lá, foi lá onde tudo aconteceu e leu o que escreveu, libertou-se, percebes? Se tu o tivesses visto, chorou a noite toda, parecia uma criança.
João ouvia Maria sem dizer uma palavra.
— De manhã queimou os papéis, disse que não precisava mais deles. — Não conseguiu impedir uma lágrima de cair, João fingiu que não reparou.
— Era alguém muito importante para ti? — perguntou com medo da resposta.
— Sim, mas não dessa maneira que estás pensar — respondeu ela. — Foi o meu pai.
João voltou a olhar o mar, lembrou-se dos últimos dias e do que o tinha levado ali. Lembrou-se de tudo o que não entendia, de tudo o que lhe enchia a cabeça. Pensou na história que acabara de ouvir, mais uma vez sentindo, antes de saber.
— Maria, desculpa mas... é que é disto que eu tenho tentado fugir, de tudo o que parece fazer sentido, dos números que escondem segredos, das palavras que parecem ter sido escritas para nós, das músicas que nos fazem doer o estômago. É de todas as obsessões que tento me ver livre, de achar que num segundo posso mudar tudo, dizendo a mim próprio, vezes sem conta, que não existe uma fórmula secreta para resolver todos os problemas.
— Sim, eu sei — disse ela de forma calma.
— Sabes? Então porque é que me contaste isto tudo? O que é que é suposto eu fazer, agarrar em tudo que escrevi nos últimos anos e ir de sítio em sítio ler sobre cada problema da minha vida?
— Não João, tu já resolveste os teus problemas, só não deste ainda conta disso.
O dia ficou mais cinzento, por causa de uma nuvem que tapou o Sol, uma ameaça de chuva que os fez sorrir aos dois, no recordar de tardes de Inverno, em corridas de perder o fôlego.
— Maria, às vezes tenho vontade de te beijar.
Ela sorriu envergonhada, mas sem desviar os olhos dos dele.
— Não sei porque demoras tanto.
A chuva começou a cair.