domingo, dezembro 24, 2006

O Homem dos Dados

- Já ouviste falar no homem dos dados?
Sónia acordou de um sonho.
- Como?
João repetiu de forma paciente, sabia que ela estava longe.
- Estou a perguntar se já te falaram no homem dos dados.
- Dados? Não, nunca ouvi falar.
Puxou a cadeira à frente e olhou para a esplanada. Estava completamente cheia, como se não estivessem em Dezembro, como se não estivesse um dos dias mais frios do ano. Gostava de se sentar ali ao fim da tarde, de ver as pessoas a passar com sacos de compras. João tossiu.
- Desculpa, não te estou a prestar atenção, pois não?
Ele desculpou-a com o olhar.
- É um homem que costuma estar na Rua Augusta.
- E os dados? Porque é que o chamam assim? É algum jogo?
João gostava da forma como ela mudava de repente.
- Ele tem dois dados, mas não são dados normais, cada um tem dez lados, numerados de zero a nove.
- De zero a nove? Mas porquê?
A demora na resposta irritou-a, mas ela sabia que se dissesse alguma coisa ele ia demorar ainda mais.
- Ele lança um dado de cada vez, obtendo um número...
Sónia completou a frase.
- De zero a noventa e nove.
Ele confirmou.
- Sim, de zero a noventa e nove.
- Mas porquê, o que é que ele faz com os dados?
João puxou de um cigarro, agora que tinha a atenção dela, podia falar sem pressa, podia pensar as palavras. Só continuou quando o cigarro já ia a meio.
- A idade, ele diz-nos a idade com que vamos morrer.
Sónia voltou atrás no tempo, a passeios de mão dada, cheiros antigos e uma voz que estava sempre com ela.
- Lembras-te do meu avô?
Ele lembrava-se e esperou que ela continuasse.
- Ele tinha uma colecção de dados, não pensava nisto há anos. Ele costumava deixar-me tocar neles, admirar as diferentes formas e cores, mas... sabes, ele nunca me deixava lança-los. Nunca me explicou porquê.
- Tens saudades dele, não tens?
Ela esfregou os olhos.
- Sim, todos os dias.
Nenhum dos dois falou durante vários minutos. A noite não se distinguia da tarde e estava cada vez mais frio. Passou por eles um homem vestido de verde, que falava sozinho, que trazia com ele uma vara muito comprida, com uma lanterna antiga na ponta, uma lanterna de metal e vidro, com uma vela no interior. A luz parecia iluminar a rua inteira.
- João, ele... o homem dos dados...
- Sim?
- Ele não tem como falhar, ele... não tem queixas, pois não?
João não sabia porque é que a conseguia entender tão bem, porque é que entre eles era tudo tão simples.
- Sim, acho que tens razão, os que morrerem antes não vão reclamar, os que morrerem depois...
Ela interrompeu-o.
- Vão achar que ficam a ganhar.
- Exacto.
- Mas... só há um problema, quando os dados derem um número, quando...
Ele continuou, adivinhando a pergunta, que também já fora sua.
- Se uma pessoa já tiver passado a idade, é isso que estás a pensar?
- Sim, o que é que significa?
João sorriu, de olhos brilhantes, de quem sabe um segredo.
- Isso nunca aconteceu.
- Como?
- É o que as pessoas contam, que isso nunca aconteceu.
Sónia encheu peito de ar, ganhando coragem.
- João, leva-me lá! Eu quero saber.
Ele não estava à espera do pedido dela, há meses que evitava a Rua Augusta, um medo que não aceitava, fingindo não perceber.
- Tens a certeza?
- Sim, tenho.
- Então vamos, vamos ver se ele está lá.
Ao chegarem a meio da Rua Augusta descobriram o homem sentado no chão. Sónia não estranhou os modos rudes, a barba branca por fazer, o casaco habituado à rua. Não se importou com o cabelo despenteado, com os sapatos gastos, nem com as mãos sujas que lançavam os dados de cor púrpura.
- Quanto é preciso dar para ele lançar os dados?
- Uma moeda.
- Mas de quanto?
João repetiu.
- Uma moeda, ele só quer uma moeda.
- João, tu já alguma vez...
Não precisou de ouvir a resposta para saber.
- Não, nunca tive coragem, deixas-me ir primeiro?
- Claro, vai.
João avançou e deixou cair uma moeda num copo de plástico vazio. O homem lançou os dados um a um, sem olhar para ele, apanhando-os quase sem dar tempo para ver os números, para ver o futuro, revelado no chão de pedra. Setenta e cinco, um número grande, que primeiro pareceu suficiente, antes de começar a pensar. Voltou para perto de Sónia, que se tinha afastado um pouco.
- Então?
Ele sorriu nervoso.
- Não morro amanhã.
Ela não perguntou mais nada, dirigiu-se ao homem e estendeu a mão com uma moeda. Mas antes de a deixar cair, ele fez um movimento brusco, tapando o copo com uma das mãos. Olhou-a antes de falar.
- Para si não, eu não posso lançar os dados para a menina.
Sónia abriu a boca, num protesto que não conseguiu transformar em palavras. Lembrou-se do avô. Falou com um sorriso nos lábios.
- Então, vou ter de viver o resto da vida, sem saber?
O homem não respondeu e guardou os dados num bolso do casaco. Ela virou costas sem dizer mais nada, fechou os olhos e pensou em como era bom sentir o frio da noite. João esperava-a com um ar espantado.
- O que aconteceu?
Ela esperou um segundo antes de falar.
- Obrigado, obrigado por me teres trazido aqui.
- Mas eu, eu... não percebi o que se passou.
- Anda, vamos comer um gelado.
- Mas estamos em Dezembro.
Ela respondeu com um ar brincalhão.
- Tens medo do quê? Não disseste que não morrias amanhã?

terça-feira, novembro 28, 2006

Artur

- Odeio-vos a todos!
Clara gritava, puxava pela roupa, batia com os pés no chão molhado.
- A todos vocês, são uns cabrões, uns merdas, cuspo em cima de todos, odeio-vos!
As pessoas não paravam, andavam mais devagar, mas não paravam, com medo dela, com medo que lhes tocasse, que lhes pegasse uma doença má. Um rapaz vestido de preto tirava fotografias ao longe, apanhava-a a meio de uma queda desamparada, de joelhos em sangue, de mãos esfoladas da cor da calçada, de cabelos sobre o rosto. Mas estava demasiado afastado para ouvir, para ler os seus lábios feridos, que repetiam um choro sem lágrimas.
- Mãe... mãe... preciso de ti, mãe... ajuda-me, ajuda-me que morro, que caio sozinha... eu tenho tanto sono, preciso...
Um homem avançou por entre as pessoas e olhou todos com desprezo. Pegou-lhe ao colo com uma suavidade que ela não compreendia.
- Vão-se embora! Não podem ajudar, pois não? Então vão-se embora, ela não é ninguém para vocês, sigam o vosso caminho, Deus não vos vai castigar, acreditem em mim.

Clara acordou devagar, abriu os olhos com medo, sem saber quem era. Estava deitada num sofá que tinha o mesmo cheiro das bonecas de pano, que embalava antes de dormir. Olhou em redor, procurou uma porta para fugir, tinham tomado conta dela, as feridas estavam limpas, as mãos lavadas, o cabelo apanhado, escovado. As paredes da sala eram azuis, um azul muito escuro, que não fazia sentido, que não combinava com a madeira dos móveis. Fechou os olhos, desejou que tudo fosse um sonho, que toda a sua vida não tivesse existido. Ouviu passos atrás dela.
- Pensei que nunca fosses acordar.
- Que dia é hoje?
O homem fez um ar surpreendido e sentou-se à frente dela.
- E o que te interessa isso? Não importa muito, pois não? Na rua não há dias, não há tempo.
Tentou levantar-se irritada, o tempo era tudo o que lhe restava, depois de ter esquecido os nomes, depois de esquecer as vozes, de tudo se tornar cinzento. Encostou-se sem forças.
- Calma miúda, não te zangues.
Ela não respondeu. Ele falou num gaguejo nervoso.
- Desculpa, eu... eu estou quase sempre sozinho, não me habituo às pessoas... e passo demasiadas vezes por ti, vejo-te vezes sem fim, e olho para o lado, para não sentir.
As lágrimas lutavam para sair, mas Clara percebeu que aquele homem não chorava.
Ele continuou no meio de um sorriso forçado.
- Hoje é terça-feira.
- Terça? Mas... mas, eu dormi...
- Sim, dormiste muito, cheguei a pensar que ias dormir para sempre, que me morrias para aí.
Ele levantou-se e passou as mãos pelo cabelo. Ela tocou na camisa de dormir sobre a pele.
- Foste... foste tu que me trocou a roupa?
- Sim, mas não te preocupes, eu não jogo nesse campeonato, eu... eu... esquece, não olhei, não me interessa, percebes? Não correste perigo nenhum, é com se fosse teu pai... tu tens pai? Tens de ter, não é? De certeza que não nasceste na rua.
A agressividade do homem assustava-a, ao mesmo tempo que sentia pena. Tinha a certeza que não havia maldade nele, que só estava sozinho.
- Sim, tenho um pai. Ou acho que tenho, não o vejo há muitos anos, desde pequena, abandonou-nos às duas, a mim e à minha mãe.
- E ela?
Respondeu a chorar.
- Ela? Não sei, ela ficou, eu vim-me embora, deixei tudo, à procura de sonhos... e deixei-a para trás, nem sequer olhei, não tive coragem.
O homem olhou-a uns segundos, de cara fechada, que se abriu num sorriso.
- Achas que sabes voltar?
Clara riu.
- Acho que sim, sabemos sempre, não é? Mas não sei se quero, não sei se posso.
Ele abriu muito os olhos.
- Não foi isso que perguntei, sabes ou não sabes voltar? É uma pergunta simples, não é complicada, só quero saber se sabes voltar.
As lágrimas voltaram, aos olhos dos dois.
- Sim, sim... sei voltar, o comboio pára muito perto. Eu ouvia-o à noite, quando não conseguia dormir.
- Partes amanhã.
- Mas...
- Já disse, partes amanhã!
Ela não conseguiu responder, não conseguiu libertar-se da mão fechada, que lhe magoava o pulso.
- Agora descansa, eu vou buscar um pouco de sopa, precisas de comer.

O comboio apitou, chamou uma última vez. Clara esperava à porta da carruagem, esperava por uma viagem que não desejara, que lhe enchia o peito de saudades.
- Nunca me disseste o teu nome.
Ele sorriu, mas sem mexer os lábios, um olhar perfeito, que não seria esquecido.
- Eu chamo-me Artur... o meu nome é Artur. Sabes, há tantos anos que ninguém me perguntava pelo meu nome, às vezes dizia-o cem vezes antes de me deitar, para ter a certeza.
Clara passou a mão pela cara de Artur.
- Tens a morada, podes sempre aparecer... um dia.
- Sim, um dia...
O comboio começou a andar. Ela gritou mais alto.
- Artur! Obrigado!
Ele acenou sem olhar para trás. Caminhou devagar, de punhos cerrados, de uma vontade reprimida. No chão sentada, uma rapariga estendeu a mão, de dedos magros e sujos.
- Senhor, uma ajuda.
Ele não escondeu o olhar e tirou uma moeda do bolso.
- O meu nome é Artur.
Fechou a mão dela dentro das suas.

segunda-feira, novembro 20, 2006

A senhora nas escadas

Subiu as escadas do metro e desejou que a senhora estivesse lá, umas semanas antes tinha-lhe dado umas moedas e a sua sorte mudara. Desde esse dia passava por ali todas as sextas-feiras e colocava mais moedas na caixa. Mas naquele dia as escadas estavam vazias. Sorriu confiante, talvez não precisasse mais dela, talvez nunca tivesse precisado.
Saiu para a rua e apressou o passo, sentia que ia chover e não tinha trazido chapéu. Lembrou-se de ter olhado para ele, antes de sair de casa, e de decidir não o levar, apesar de ter ouvido na rádio, que o tempo ia piorar.
O primeiro pingo deixou-o no meio da rua, como se atingido por um raio, como se tivesse de tomar uma decisão, em poucos segundos. Olhou para o lado e viu que ainda havia espaço, debaixo de um toldo verde. Decidiu continuar a caminhar, não sabia porquê, mas continuou a andar, enquanto a chuva caía, cada vez com mais força. Nos auscultadores uma música, uma sensação de liberdade, algo de bom iria acontecer, mesmo sem o gesto de dar.
Percebeu que a porta de casa estava aberta, antes mesmo de lhe tocar, hesitou antes de empurrar, e esperar, pelo acordar que não veio. A casa estava vazia, de tudo o que era supérfluo, de tudo o que não precisava para viver, de tudo o que mais amava. Mas não havia gavetas abertas, nem objectos espalhados, um roubo feito de mil cuidados, com uma educação sem sentido.
Sentou-se no sofá, a olhar para as prateleiras vazias, tentando lembrar-se do sítio das coisas, o seguro iria pagar, mas de forma cega, com mais números numa conta. Tinha pena dos filmes que não tinha visto, dos discos que ouvira à pressa, o resto comprara por vaidade, para dizer a si mesmo quem era.
Fechou os olhos e repetiu cada momento do dia, o acordar cinzento, o gabinete vazio, o almoço de pé, as escadas do metro, o livro no chão. Levantou-se depressa, tinha visto um livro no chão, um segundo antes dos móveis vazios. Ajoelhou-se na alcatifa de cor clara, difícil de limpar, segurou o livro nas mãos e procurou a razão na capa. Pensou porque é que o teriam deixado, no meio de tanta delicadeza, em só lhe levar os sonhos. Perdeu-se numa figura, uma mulher sem idade, numa noite iluminada, uma mulher, que desejou conhecer.

A caminho do aeroporto, à procura do impossível, pediu ao taxista para parar, que eram só dois segundos, que assim ganhava mais. Chovia outra vez e correu para as escadas do metro, não acreditava, mas não podia deixar de tentar, antes de partir.
Não estava ninguém nos degraus, mas desceu-os como se estivesse, um xaile sobre as pernas, lenço preto na cabeça e óculos demasiado grandes. No chão um cartão esquecido, com três palavras lavadas, no lugar de um cumprimento, de um obrigado em silêncio, para todos os que passavam.
De volta ao táxi, um murmúrio a medo, dito outra vez mais alto, numa coragem que crescia, de desistir de fugir. Um medo de viver, que finalmente percebia, sem compreender, um desejo de mudança, que abandonava em dor. E o decorar de uma frase, para sempre recordada, do cartão apagada, nos seus lábios repetida.
- Saibam ser felizes, saibam ser felizes...

domingo, outubro 29, 2006

Maria

Tornou-se um vício, sem eu dar por isso tornou-se um vício. E hoje desço a avenida à procura de um canto onde o vinho seja mais barato, onde possa esquecer que existo. Doem-me os joelhos, doem-me muito os joelhos desde que o tempo mudou, desde que as manhãs voltaram a ser frias. Sinto-me tão sozinho.
Entro num daqueles cafés que podemos encontrar em toda a cidade, os mesmos azulejos brancos e azuis, as mesmas cadeiras gastas de cores bizarras e atrás do balcão um homem de camisa azul com um pano ao ombro. Pergunto o preço de uma taça e não percebo o que ele me diz. Finjo que tenho dinheiro e sento-me perto da porta.
- Não é de cá, pois não?
Mal tenho tempo de perceber que a mesa já estava ocupada e outra pergunta rebenta-me nos ouvidos.
- É um desgraçado, não é?
Olho desesperado para o balcão, mas o homem continua a tirar cervejas sem pressa, vou ter de esperar uns minutos pelo vinho que não posso pagar. Levanto a cabeça e vejo uma mulher de lábios vermelhos, demasiado vermelhos. Está vestida de preto como uma fadista das antigas, mas desconfio que ela não canta o fado, que nunca ninguém a ouviu cantar. Olho para ela e desafio-a.
- Não estejas com esse olhar, não olhes assim para mim.
Grita como uma louca, cerra os punhos à frente da minha cara e cospe para cima de mim. Ninguém se mexe um milímetro que seja, como se não existíssemos, apenas um sorriso trocista na boca do homem da camisa azul.
- Vá lá, senta-te lá e paga a bebida ao homem, afinal ele está na tua mesa, não?
Ela acalma-se e ri, um riso forçado que não me descansa. Lembra-me a minha mãe, a mulher que chamei de mãe, a única que conheci e que me criou como soube.
- Traz lá um copo de vinho, pode ser do mais barato, ele não se importa.
O homem dá uma gargalhada que enche a sala e eu tenho vontade de fugir. Mas não me levanto e fixo as tábuas do chão para não ver os outros que me olham.
Ela continua num tom de gozo.
- Bebe, bebe à vontade, é por minha conta, mas para o resto vais ter de sorrir.
Engasgo-me com as gargalhadas à minha volta e arrependo-me no momento em que pergunto.
- O resto?
O homem limpa as mãos no pano e vejo nos seus olhos que tem pena de mim. Aproxima-se de nós e fala com desprezo.
- És sempre a mesma, não és? Não resistes a um desgraçado. Devias ter sido mãe, davas uma boa mãe.
Ela arrasta-me dali para fora.
- Não ligues, antes puta que mãe dos filhos dele. E ele acha que me arrependo, pobre triste.
Sinto o coração a acelerar, não tinha entendido o que era óbvio. Ela percebe.
- Não olhes assim para mim, eu sou puta, tu és bêbado, achas mesmo que me podes julgar?
Não consigo responder.

Subimos umas escadas velhas, daquelas que sobem sempre a direito. Tenho medo que alguém nos veja, tenho medo que saibam que preciso de um abraço, que preciso de dormir aconchegado a alguém, mesmo que seja de uma mulher de lábios demasiado vermelhos. Paramos frente a uma porta verde e ela mete a chave na fechadura, ouço apenas um ligeiro barulho metálico, estava apenas fechada no trinco e eu sorrio sem olhar para ela. Entramos para uma sala que cheira a mofo, como se não vivesse ali ninguém há muito tempo. As paredes são forradas com um papel castanho e cinzento, cornucópias que me fazem ficar tonto. Deixo-me cair num sofá verde que me recorda o passado.
- Sabes... foi num sofá igual a este que dei o meu primeiro beijo, tinha treze anos e ela chamava-se Maria.
- E não nos chamamos todas?
Fecho os olhos e deixo-me adormecer num abraço quente.

segunda-feira, outubro 16, 2006

Voltar

Rui parou o carro e ficou a olhar para a entrada do prédio à sua frente. Ainda se lembrava de não existir nada naquele sítio, de jogar às escondidas com os amigos no meio das ervas altas, até ao dia em que encontraram tudo fechado com tábuas velhas que não deixavam ver as árvores arrancadas. Nunca se conformara e chorara uma tarde inteira quando soube que ia ser ali a sua nova casa, implorara aos pais para que mudassem de ideias, mas eles apenas sorriram e disseram que ele ia habituar-se.
Desligou o motor mas não saiu do carro, deixou o rádio a tocar e tentou ganhar coragem para subir, tentou ganhar coragem para contar tudo o que se tinha passado nos últimos meses. Imaginava o seu pai a perguntar se já era director e irritava-se por ter de responder, por nunca o ter desejado, por não ser esse o seu plano de vida, por haver coisas mais importantes. Fechou a porta com força e subiu as escadas.
Quando entrou reparou no sorriso triste da sua mãe, ela sabia, ela conhecia-o em silêncio, nunca precisava de lhe contar porque ela sentia. Conteve as primeiras lágrimas quando a abraçou, a sua vontade era ficar deitado no seu colo como fazia quando era pequeno, quando se perdia nas músicas que o faziam adormecer.
- O pai?
- Está no escritório, eu vou chamá-lo.
- Não, eu vou.
Percorreu o corredor devagar e parou à porta do seu quarto, olhou a cama feita como se nunca tivesse saído daquela casa, como se voltasse depois de um dia de escola. Entrou e ficou parado no meio do quarto, como se estivesse a decidir que recordações o podiam ajudar. Dirigiu-se aos seus discos e passou os dedos pelas capas limpas, sabia que a mãe não falava verdade quando lhe perguntava quando é que ele levava as suas coisas para casa, era uma forma de nunca ir embora. Ouviu tossir e saiu do quarto.
A porta do escritório estava aberta e mal entrou viu o pai a escrever. Ele sorriu ao vê-lo, mas não se levantou, poisou apenas a caneta e esperou por um beijo.
- Fui eu que te dei essa caneta, não fui?
- Sim, foste. Deste-ma no meu último aniversário antes de ires para a universidade, tornou-se numa boa companheira. Tu já não sabes como é pois, pois não?
- Escrever com uma caneta?
- Sim.
- Acho que não. Fiquei com inveja quando te vi da porta, já há muito tempo que não faço isso, que não escrevo numa folha com uma caneta.
Rui sentou-se no sofá de dois lugares que estava encostado à parede e esfregou os olhos, estava cansado e não tinha vontade de falar sobre o que o trouxera ali. Olhou para a estante em frente ao sofá e relembrou um a um todos os livros arrumados de forma perfeita.
- Acho que não há aqui um livro que não tenha lido, devias comprar alguns novos, agora há por aí algumas coisas interessantes.
O pai sorriu.
- Eu sei que há filho, às vezes vou até à livraria do Sr. António, lembras-te dele?
- Como é que me podia esquecer?
- Às vezes vou até lá e sinto-me tentado a comprar alguma coisa nova, mas confesso que acabamos sempre os dois a falar dos velhos clássicos. Acho que sou um caso perdido.
- Pai, em princípio vão haver algumas alterações lá no emprego, muito provavelmente vão-me convidar para chefiar uma nova área.
O pai levantou-se e deu a volta à secretária. Sentou-se ao lado dele e esperou um segundo antes de falar enquanto passava o cachimbo apagado de uma mão para a outra.
- Mas não foi por isso que vieste cá, pois não?
Não respondeu, deixou-se perder no desenho do tapete e lembrou-se das tardes de domingo, lembrou-se do sol a entrar pela janela e de brincar naquele chão. Desejou poder voltar atrás trinta anos, voltar àquelas tardes perfeitas em que brincava em cima daquele tapete sem acordar o pai que dormia no sofá. Desejou sentir o cheiro de um bolo acabado de fazer que se sentia na casa toda, uma casa de que tinha saudades, mas que só agora percebia quanto. Olhou nos olhos de pai e respondeu.
- Não foi por isso, mas queria que a mãe estivesse aqui também, queria falar com os dois ao mesmo tempo.
- Eu estou aqui.
Sempre admirara a sua forma silenciosa de caminhar, mesmo quando o apanhava a fazer alguma coisa que não devia. Nos seus sonhos de criança imaginava que a mãe não tocava o chão, que deslizava de forma mágica por cima da alcatifa que cobria todo o chão da casa.
- Aconteceu uma coisa, uma coisa que não vos queria contar pelo telefone. A Teresa... a Teresa e eu acabámos.
Os pais ficaram em silêncio, esperaram tranquilamente que ele acabasse de falar.
- Nós... as coisas já não estavam bem há algum tempo e a semana passada tivemos uma conversa e decidimos que não valia a pena continuar.
O pai pousou uma das mãos no seu ombro e apertou com força antes de falar.
- E como é que estás? Como é que estão os dois?
- Como é que estou? Sei lá, acho... acho que as coisas não podiam ser de outra maneira, a conversa até foi muito calma, sem discussão, sem gritos, mas... mas eu...
A mãe sentou-se no braço do sofá e deu-lhe uma das mãos. Apetecia-lhe chorar, mas esforçou-se por não o fazer, sentia que ainda não era altura e deixou-se ficar entre os dois em silêncio. Ela falou.
- Sentes-te perdido, não é?
Sorriu por ela o conhecer tão bem, por adivinhar as suas palavras.
- Sim, sinto-me perdido. Eu sei que não é o fim do mundo, mas sempre achei que quando chegasse aos quarenta... sempre achei que as coisas iam ser diferentes, nunca imaginei que ia estar sozinho, que ia ter de começar tudo de novo outra vez.
O pai levantou-se e dirigiu-se à secretária. A mãe continuava com a mão nas suas sem dizer uma única palavra e sorria como fazia quando ele era pequeno e caía da bicicleta e esfolava um joelho. O pai voltou com uma folha de papel na mão.
- Sabes o que é isto?
- Não.
- Lembras-te de quando mudámos para cá? Lembras-te da rapariga que vivia aqui ao lado? Os pais dela mudaram-se para cá um mês depois de nós.
Rui pensou um pouco antes de responder
- A Sónia? Sim, a Sónia... que parvo, não me estava a lembrar. Claro que me lembro, eles mudaram-se um ou dois anos depois, não foi?
O pai assentiu com a cabeça.
- Sim, eles foram viver para o norte.
- Mas o que é que essa folha tem a ver com a Sónia?
- Esta folha foi onde tu escreveste uma carta para ela, na altura em que se foi embora. E ela respondeu na parte de trás. Há uns anos fizemos umas arrumações e encontrámos a carta no meio de uns cadernos teus, achei que a devia guardar. Queres lê-la?
Rui não precisou de ler a carta, só se irritou por ter esquecido, por terem passado tantos anos sem pensar nela e em tudo o que aconteceu. Como se tivesse traído as palavras que tinha escrito, por ter faltado à promessa de que nunca a ia esquecer, uma promessa que ela também fez. Não conseguiu deixar de sorrir quando falou.
- Era tudo tão complicado nessa altura, não era? Pensei que a minha vida acabava e... e agora precisei de uns segundos antes de me lembrar. Ai... acho que ainda sou o mesmo miúdo pateta.
Não aguentou e desatou a rir com o comentário que fez, os pais riram com ele.

Na manhã seguinte acordou e sentiu que tinha dormido durante anos. Tinham ficado a conversar até tarde, a relembrar histórias do passado e sentiu-se como se vivesse ali outra vez. Sentado no chão do quarto folheava os seus livros de super-heróis, tinham passado tantos anos e achava incrível como é que ainda se conseguia lembrar de todas as histórias, talvez por as ter lido tantas vezes, aventuras que o faziam sonhar, que o faziam querer ser um daqueles heróis de uniforme colorido, algo que ainda desejava secretamente. Ouviu a voz da mãe a chamar e sentiu o cheiro de um bolo acabado de fazer. Era bom estar em casa.

quinta-feira, outubro 05, 2006

As pessoas que eu gostava de conhecer

- E foi nesse momento, no segundo em que ela sorriu. Foi nesse exacto momento que eu soube que estava a olhar pela primeira vez para alguém que não se escondia.
- Não sei se percebo o que queres dizer.
Apaguei o cigarro no muro de cimento e tentei reviver o dia mais perfeito de toda a minha vida. Lembrei-me de te ver a caminhar de forma apressada, do casaco cinzento sobre uma camisola de malha às cores, da tatuagem no teu pulso, três estrelas que se escondiam.
- Quero dizer que a vi no estado mais puro que é possível ver uma pessoa, que senti que podia ler-lhe os pensamentos, que podia adivinhar cada palavra antes dela a dizer.
- E leste?
Não respondi e voei para longe, voltei a perseguir-te pelas ruas debaixo de chuva, com medo de te perder, de nunca mais olhar para a tua cara. Queria pelo menos ouvir a tua voz, queria dizer-te que te amava, ainda sem o saber.
- O que eu queria dizer é que são raras as vezes em que somos nós, em que deixamos de lado tudo o que aprendemos, em que olhamos sem pensar. Não sentes? Não sentes que falta sempre alguma coisa, que estamos a representar?
- A representar?
- Sim, a pensar ao mesmo tempo que falamos, a imaginar o que os outros pensam de nós, do que dizemos. Não percebes que isso muda tudo, que acabamos por reagir a cada expressão?
- Acho... acho que podemos sempre fechar os olhos.
Esperei antes de te tocar. Estendi a mão em direcção a ti, contornei o teu cabelo comprido sem tu saberes, sem me importar com os outros que olhavam, os outros que me ameaçavam, que invejavam estar tão perto. Chovia cada vez com mais força.
- Sim, podemos sempre fechar os olhos, mas só depois.
- Depois? Não fazes sentido, depois do quê?
Toquei-te. Agarrei-te com força, agarrei com demasiada força, de maneira que não pudesses fugir. Não ia perder-te, mesmo que te magoasse. Mas tu não tentaste afastar-te e quando vi os teus olhos percebi que era eu que estava preso.
- Não te zangues, não por causa disto. Eu só te queria contar... só te queria contar que existem momentos perfeitos, que há alturas em que parece que a música vai começar a tocar.
- Como nos filmes?
- Sim, como nos filmes. Percebes, não percebes?
Lembro-me do cheiro das velas, da cor das paredes, dos lençóis na cama acabada de fazer, do teu corpo no meu. Lembro-me de nos olharmos, de nos tocarmos, do tempo que parou, de me ter esquecido. Lembro-me do teu sorriso, o mais bonito de todos, que me ensinou, que me fez acreditar, que te ia amar para sempre.
- Sim, percebo... e invejo-te, como te invejo.

quinta-feira, setembro 28, 2006

Um

À minha frente está sentado um homem de cabelo branco que olha o vazio atrás de mim, que olha os outros passageiros do metro. Penso se estará a tentar adivinhar as vidas e tenho vontade de lhe perguntar, tenho vontade de lhe dar a mão e sentir se está quente. Observo-o sem esconder o olhar e reparo que a camisa que tem vestida é muito velha, está remendada em demasiados sítios e desisto de os contar. Por cima da camisa um casaco sem cor, um companheiro de todos os dias, um casaco mágico. Imagino que nunca o pode tirar, que só o pode despir depois da noite cair, para não perder as memórias, as recordações em forma de cheiro, o tecido gasto pelo Sol. Vejo a mão dele a mexer-se, a apertar outra a seu lado, uma mão cheia de manchas, pequenos sinais que só os idosos sabem admirar, pois dizem que idade temos. A mão é de uma doce senhora, que eu consigo sentir, porque respiro o seu perfume, misturado com os outros que passam. Está vestida com uma camisa quase branca, que já foi branca, mas que agora é só limpa, de tantas vezes lavada, de muitas tardes de chá e de pequenas migalhas de bolo de chocolate. Um alto deforma as suas costas, uma corcunda esquecida, um andar dobrado, mas de cabeça erguida. Desvio os olhos para o lado e encontro lágrimas nos olhos do homem, um choro sem expressão, sem o contrair da cara, sem som, um choro que impressiona, por ser tão calmo. Sei que sonha, sei que recorda, uma vida tão cheia, uma tarde de verão, uma tarde perdida, para sempre lembrada. Ela sorri e descansa no casaco dele. Despeço-me, sem perguntar.

terça-feira, setembro 19, 2006

Medo

Era quase meia-noite e Carlos e Pedro desciam a Avenida Almirante Reis. Era o último dia de Verão, o último dia dos passeios pela cidade, uma Lisboa que parecia olhar para eles, que tomava conta de dois miúdos que se iam tornar adultos.
- Só tenho pena de uma coisa.
Pedro parou e acendeu um cigarro antes de falar.
- O que é que foi? Hoje? Hoje vais começar com as tuas merdas? Não podes caminhar calado? Não podes ficar calado uma vez na vida... não sabes... não sabes que é o último dia, a última vez que caminhamos sem destino?
As últimas palavras de Pedro já tinham sido ditas no meio de um choro quase descontrolado, um choro assustado. Carlos ficou com os músculos da cara todos contraídos, uma máscara de dor que o paralisava numa única expressão e falou de dentes cerrados.
- Parece que está sempre de noite, parece que é sempre tarde.
- O quê?
- A cidade... os prédios, os carros, não me vou conseguir lembrar deles de outra forma, como se nunca os tivesse visto à luz do dia.
Pedro passou a manga da camisa pela cara e ficou a olhar para o chão antes de falar.
- Mas não era disso que ias falar, não era da noite, pois não?
Carlos sorriu com esforço.
- Sabes sempre, não sabes?
- Acho que sim, acho que sei. Olha, desculpa... desculpa eu ter-me irritado. Eu estou a ouvir-te.
- Ia dizer que só tinha pena de não ter amado esta cidade durante tanto tempo, de só a ter amado quando deixei de ter medo.
- Não podia ter sido de outra maneira. Tu sabes que não podia ter sido de outra maneira. Se calhar foi tudo cedo demais, se calhar daqui a uns anos...
Não foi capaz de continuar, recomeçou a soluçar violentamente e ajoelhou-se encostado a um carro. Carlos aproximou-se, tocou-lhe com uma mão no ombro e fechou os dedos com toda a força. Foi sacudido por um empurrão.
- Sai da frente.
Os olhos de Pedro ainda estavam cheios de lágrimas mas já não chorava. Levantou-se e correu pela rua fora. Correu entre os carros aos gritos, correu como se fugisse de alguém, como se fosse um animal encurralado a tentar libertar-se de correntes. Carlos olhava para toda aquela loucura e não dizia nada, ele também se sentia preso, ele também tinha vontade de correr, ele também queria se libertar. Mas não conseguia, fechava apenas os olhos e cerrava os punhos. Gritou.
- Pedro! Pedro! Foge, foge por favor. Não aceites, não temos de ir, não temos de ir...
As palavras que chegaram até ele foram as mais calmas que alguma vez ouvira, as mais serenas que iria ouvir no resto da sua vida.
- Sabes que temos ir, tu sabes que temos de ir.
À sua frente Pedro olhava para ele a sorrir, já não tinha a camisa vestida e a sua pele suada reflectia a luz fraca dos candeeiros. Subiu para cima de um carro e abriu os braços, esticou os dedos como se quisesse agarrar algo, como se desafiasse o destino. Então, sentou-se no tejadilho e começou a cantar baixinho.

- Pai?
A voz de Teresa chamou-o de volta à realidade.
- Diz querida.
- A mãe pergunta se demoras, ficámos de estar em casa dos avós antes das oito.
- Não, não demoro. Diz à mãe que não demoro.
O olhar curioso da filha viu a fotografia nas suas mãos.
- Quem é?
Não teve medo de responder.
- O Pedro, um amigo, um grande amigo.
- Não me lembro de te ouvir falar nele.
Continuou sem hesitar.
- Ele morreu na guerra em África.
- Foram colegas lá?
Sorriu com a palavra que ela escolheu.
- Não, não fomos colegas lá, ele foi para outro lado. Vai descendo que eu vou já.
Teresa fechou a porta atrás dela e Carlos olhou uma última vez para a fotografia amarelecida pelo tempo. Lembrou-se outra vez daquela noite e deixou os olhos encherem-se de lágrimas.

quarta-feira, setembro 06, 2006

A história de amor

- Avó, contas-me outra vez a história?
- Qual minha filha?
- A história de amor.
- Claro querida... claro que conto.

Não conseguia ver, tacteou à sua volta e sentiu o cheiro de cerveja derramada no chão cheio de palha. Havia também pão e carne seca, mas não era capaz de comer. Ao seu lado um monte de pêlos e sangue provocou-lhe mais um vómito violento. Contorcia-se, enrolava-se sobre si mesmo e sentia as lascas da madeira do chão a cravarem-se na carne. A dor trazia-o de volta à vida. Uma porta abriu-se e sentiu outro cheiro, fugiu para um canto escondendo a sua nudez, escondendo a pele suja, negra, áspera, as unhas partidas, as mãos demasiado fortes. Mas ela não se importava, nunca se tinha importado, lambera sempre as suas feridas com paciência, com amor, um amor que não fazia sentido, que não era natural, mas que o fazia adormecer. Repetiu a pergunta, suplicou, pediu a Deus que não tivesse acontecido outra vez, que o deixasse descansar. Era tudo o que desejava, tudo o que sonhava, tudo o que não podia ter. A visão voltava aos poucos, os olhos habituavam-se à luz e podia ver o vestido branco que o abraçava, podia ver o contorno de uma madeixa de cabelo, uma mão sobre a sua. Mas a respiração alterou-se, o coração bateu mais depressa e amaldiçoou os sentidos, o sangue que cheirava não era o seu, nem estava seco entre os seus dedos, era sangue vivo, que corria devagar, mas sem parar. O som de uma gota trouxe um grito que só podia ser seu e sentiu medo. Implorou para que os olhos dela não se fechassem, mas não teve resposta, apenas um último lamento, palavras ditas num sorriso que se fechou.

- Avó...
- Sim?
- Ficas um pouco comigo?
- Dorme, eu fico aqui.

sexta-feira, setembro 01, 2006

O rapaz que escrevia ao contrário

Apaixonada, Susana descia uma das muitas escadas de Lisboa e assobiava acompanhando uma voz feminina, a única que conseguia ouvir nos últimos dias. As paredes estavam cheias de palavras pintadas a vermelho e eram como a letra da música que ouvia.
A doze degraus de distância um rapaz escrevia numa das paredes. Tinha a seu lado uma lata de onde escorria um fio de tinta e ela sorriu com mais uma aposta estúpida que não podia ganhar, mesmo assim cruzou os dedos numa jura que cumpriria, apesar de não acreditar no castigo.
- O que escreves?
- Letras erradas.
- Como?
- Tu ouviste, letras erradas.
Um pingo de tinta tocou outro degrau e decidiu o rumo da conversa.
- Mas não existem letras erradas, só palavras, só as palavras...
Ele afastou-se da parede e fez-lhe sinal para ela se aproximar.
- Diz-me o que vês.
Susana demorou a responder, as palavras não pareciam fazer sentido. Leu-as várias vezes e continuou sem perceber. Olhou para o rapaz que aguardava com um ar ansioso com as mãos juntas, uma prece involuntária, um desejo de partilhar um segredo.
- A solução é simples, não é?
- Sim.
- Estão ao contrário... que estúpida, estão ao contrário. Mas e as letras?
Ele ficou calado. Ela gritou entusiasmada.
- O acento! É o acento que falta no “a”? Mas não é uma letra errada, o acento só lhe vai dar sentido.
- Isso depende de ti...
Percebeu o que ele queria dizer e aceitou o pincel cheio de tinta da mão dele. Esperou um pouco antes de falar.
- Sabe bem.
- Eu sei. Olha, queres vir dar um passeio?
- Quero, quero muito. E a lata, fica aqui?
- Não sejas batoteira, a tinta ainda está a escorrer.

sábado, agosto 26, 2006

As irmãs P.

O anão

Hoje vi um anão no metro. E não percebo porque teimo em não acreditar que tudo faz sentido... porque há uns dias pensei que já não via um anão há muito tempo. Mas não era um anão qualquer, era um homem pequeno que se sentava tocando apenas com a ponta dos pés no chão. Pés pequenos, pés calçados com umas sapatilhas de criança, sapatilhas que não combinavam com o resto da roupa, pretas, modernas, diferentes da camisa amarrotada e das calças com bainha.

A bruxa

Amanhã vou ver um bruxa, uma rapariga chamada Dória P. E sei que me vou apaixonar pela irmã dela, sei que me vou deixar enfeitiçar pelos cabelos despenteados que cheiram a fumo, que cheiram ao fumo de uma lareira. Vou encostar a cara no seu colo e chorar.

Angelina P.

Porque vejo através dela, porque a amo sem ela saber... porque finjo que não sei. Angelina P. é a rapariga que desejamos secretamente, a rapariga aprisionada nos nossos sonhos. É o momento antes de adormecermos...

terça-feira, agosto 22, 2006

Ansiedade

Rui esperava dentro do carro. Não fumava há mais de dois anos e o fumo ardia-lhe nos pulmões como se fosse a primeira vez. Sabia que não devia estar ali, sabia que podia estar a alguns minutos de fazer a maior asneira da sua vida, mas esperava, esperava enquanto o cigarro ia ficando mais pequeno.
Num prédio em frente uma porta de vidro abriu-se, mais uma vez a ponta do cigarro brilhou e os seus olhos fecharam-se com o reflexo do Sol. Quando voltou a conseguir ver já uma figura caminhava em direcção a ele, não era quem esperava.
Olhou para o relógio que nunca usava e contou as horas, o calor era insuportável e perguntou-se mais uma vez porque é que tinha cedido à tentação de esperar ali por ela, porque é que se deixara guiar por uma obsessão. Sentia que ia estragar tudo de vez.
A porta abriu-se mais uma vez e não precisou de ver quem saía para ter a certeza. Tinha sido sempre assim, sentia... antes de ver.
Ela começou a andar devagar na sua direcção até que de repente parou, com ela era igual, sentiam-se, isso ela não podia negar. Rui sabia que eram feitos um para o outro, só não sabia porque é que tudo tinha falhado. Olhou para baixo à espera que ela chegasse.
Sentiu um vulto ao seu lado.
- O que é que estás aqui fazer?
Deixou-se estar sentado no carro, estático, sem reacção. Não tinha nenhum plano, só tivera coragem para guiar até àquele sítio. Não sabia o que dizer.
Joana tinha os olhos cheios de lágrimas que não deixava cair e perguntou mais uma vez.
- Ouviste o que eu perguntei? O que é que estás aqui a fazer? Como é que me encontraste?
Ele não conseguiu responder e ela começou a afastar-se do carro. Abriu a porta.
- Espera...
- Não temos nada a dizer. Só não sei como descobriste onde trabalho.
- Quando se deseja muito uma coisa não é assim tão difícil.
- Chegaste a pensar se eu desejava voltar a ver-te?
A voz dela não tinha o tom melodioso de antigamente, estava sempre presente uma agressividade, um apontar de culpa. Era impossível esquecer o que tinha acontecido. Olhava para ela e num segundo recordou tudo. Mas já não conseguia pensar nas coisas boas, só nas discussões, só nos gritos pela noite dentro. Só conseguia pensar no dia em que tudo mudara, quando lhe agarrara com força num braço, quando sentiu que tinha feito algo que não podia ser desfeito. Lembrava-se da cara dela e de a ver agarrada ao braço enquanto decidia. Continuava a não saber porque é que as coisas não tinham dado certo, mas sabia exactamente o momento em que se dera a ruptura, quando ela decidiu que o seu gesto não tinha desculpa... e se afastara sem dizer uma palavra.
Respondeu de forma atrapalhada.
- Eu... eu... tu sabes o que eu sinto por ti.
Joana pensou antes de responder.
- Sim... eu sei. Mas isso não chega, pois não?
- E ficamos assim? Depois de tudo, ficamos assim?
Ela não olhava sequer para a sua cara, como se não tivesse coragem de ver os seus olhos, como se não quisesse arriscar voltar atrás.
- Rui... não percebes que acabou? Não percebes que as coisas já não fazem sentido? Olha para ti, olha para o que estás a fazer, como é que é possível imaginares que podemos recomeçar tudo?
- Mas e o que sentimos?
Um ar de desespero antecipou a resposta.
- Rui, olha onde chegaste, tu estás a seguir-me... tu não te apercebes, pois não?
Ele não respondeu, na verdade já não estava a ouvir. Fixava um grupo de pessoas do outro lado da estrada e tentava adivinhar sobre o que falavam, tentava adivinhar as suas vidas. Sabia que Joana tinha razão e isso doía, doía saber que era última vez que olhava para ela.
- Tens razão.
Joana fez um ar espantado.
- O quê?
- Tens razão, não podemos voltar atrás. E não fiques com esse ar desconfiado, estou a falar a sério.
- Tens que admitir que é estranho, uma mudança tão súbita de comportamento.
- Eu acho que sempre soube, só não queria ver... e de repente fiquei cansado das minhas obsessões, de todos os disparates que fiz neste último ano... fiquei cansado de mim.
- Assim, de repente?
- Sim, assim de repente.
Joana olhou para ele sem medo, olhou para ele e viu uma pessoa que julgava já não existir. Mas era tarde.
- E... e ficas bem?
Rui sorriu.
- Não... claro que não fico bem.
Abriu a porta do carro e entrou sem se despedir dela, sentiu o calor na cara e os olhos a arder. Arrancou sem olhar para trás e ligou o rádio, uma música começou a tocar, uma música com palavras simples, "this is the first day of my life". Não conseguiu deixar de sorrir.

segunda-feira, fevereiro 27, 2006

Onze

- No que é que estás a pensar?
Conhecia Maria há tanto tempo que não me passava pela cabeça conseguir esconder-lhe algo, mas naquele dia pensei duas vezes antes de responder.
- Lembrei-me de uma coisa de repente.
- De uma coisa?
- Sim, uma coisa que aconteceu há uns meses atrás.
Diverti-me com o seu olhar curioso.
- Sabes a final da Taça UEFA do ano passado?
- Da Taça UEFA? Estás a falar de futebol, certo? Achei que fosse alguma coisa interessante.
- Vá lá, não sejas assim, a final à qual foi o Sporting, no seu estádio, contra uma equipa russa?
- Sim, tenho uma ideia, perderam, não foi?
Suspirei com a recordação.
- Mas porque raio foste pensar nisso agora?
- Eu na verdade penso muitas vezes nisso.
Ela riu com aquele riso de criança marota que nunca tinha perdido.
- Vocês homens são demais.
- Mas queres ouvir ou não? Afinal tu é que perguntaste no que é que eu estava a pensar.
- Tens razão, desculpa, podes continuar.
- Bem, não sei se te lembras mas eu fui ver o jogo ao estádio com um bilhete que ganhei num concurso.
- Já me lembro, tinhas de telefonar e eles davam um bilhete de mil em mil telefonemas.
- Vês...
- Deves ter achado que os astros estavam alinhados e que era o dia perfeito para uma grande vitória.
- Tu brincas, mas por acaso achei, mas isso não é importante, o que interessa é que fui sozinho ao jogo e lembrei-me agora de uma pessoa que ficou ao meu lado.
- Uma pessoa?
- Sim, um homem.
Maria abriu mais os olhos, normalmente as nossas conversas não eram sobre homens.
- E o que é que esse homem tinha de especial?
- Era um sujeito com um ar bastante desagradável, com um ar acabado, de quem tinha tido uma vida cheia de problemas. Lembro-me que cheirava a tabaco de uma maneira muito intensa, como se tivesse fumado sem parar durante anos, durante o jogo nunca o vi sem ter um cigarro na mão.
- Gosto destas tuas descrições, mas não estás a compor uma personagem muito agradável.
Bebi o resto da Coca-Cola que tinha no copo e continuei.
- Pois, mas ele era mesmo assim, o género de pessoa que não apetece estar ao pé, acho que foi aí que os astros começaram a ficar desalinhados.
- E o que é que esse homem tinha de tão especial, além de cheirar a cigarros? Suponho que não foi só por isso que te lembraste dele.
- Não, não foi.
O ar dela era cada vez mais impaciente.
- Rui, estou a dez segundos de me desinteressar por esta história, não podes ir mais depressa?
Eu ri com o ar zangado dela, esta era uma critica antiga, mas eu sabia que ela me ouviria até ao fim.
- Quando o jogo estava a começar, sabes quando as duas equipas estão alinhadas?
- Sim, sim, segue por favor.
- Bem, nessa altura ele puxou de uma máquina fotográfica, uma daquelas digitais mais baratas que nem visor têm.
- Sim, e?
- E começou a tirar fotografias com a máquina ao contrário.
- De pernas para o ar?
- Não, ao contrário mesmo, a espreitar pela objectiva.
- Estás a brincar...
- A sério, fartou-se de tirar fotografias e nem uma com a máquina virada para o relvado.
Maria ficou pensativa e esperou um pouco antes de falar.
- Sinceramente não sei o que é mais estranho, se o homem a tirar as fotografias ao contrário, ou tu lembrares-te de repente disso, nunca me tinhas contado isto.
- Nunca contei a ninguém, acho que fiquei tão triste com o jogo que apaguei alguns pormenores da minha cabeça.
- E agora veio-te assim tudo de repente. Tu és estranho, sabes isso, não sabes?
Sorri para ela.
- Mas a historia não acaba aqui.
- Espero bem que não.
- Eu chamei-o à atenção.
- Tu?
O ar de espanto era dos maiores que eu já tinha visto na cara dela.
- Mas tu tens sempre vergonha de falar com as pessoas. Não acredito que foste dizer ao tipo o que ele estava a fazer, foi como chamares-lhe doido.
- Sim, eu sei.
- E o que é que ele disse?
- Falou de discos.
- De discos? Mas que discos?
- Discos, música.
O empregado da esplanada onde estávamos sentados aproximou-se e retirou da mesa as garrafas vazias. Perguntou se queríamos mais alguma coisa e eu agradeci com uma aceno, ela não respondeu.
- Mas o que é que ele disse exactamente?
- Que os melhores discos tinham sempre onze músicas.
Maria acendeu um cigarro e fumou-o pensativamente.
- Tu estás a gozar comigo, certo?
- Não, ele disse o que eu acabei de dizer.
- Deixa-me recapitular, tu estás aqui a passar a tarde com a tua melhor amiga na melhor esplanada de Lisboa, uma vista sobe o Tejo que nos faz sonhar e de repente...de repente lembraste de num jogo de futebol teres visto um homem com mau aspecto tirar fotografias com uma máquina ao contrário, homem esse que te deu conselhos estranhos sobre música. Está a faltar alguma coisa?
A vista da esplanada era a razão porque insistia com Maria para irmos ali tantas vezes, era capaz de ficar horas a olhar para os cacilheiros a cruzarem o rio. Respondi-lhe sem olhar para ela.
- Não, resumiste bem o que se passou.
- E o que é que tu lhe disseste?
- Nada.
- Nada?
- Sim, o jogo começou e eu não disse mais nada.
Ela ficou calada durante vários minutos a olhar para o rio. Nós costumávamos nos gabar dos nossos silêncios nunca serem constrangedores, mas naquele dia, pela primeira vez, senti o desconforto das palavras não ditas. Então ela fixou-me nos olhos e falou com um ar calmo.
- E acabou assim?
- Sim, o jogo acabou, nós perdemos, eu vim-me embora e não voltei a pensar no assunto, só que...
- Só que?
- A verdade é que nunca liguei as duas coisas, mas de há algum tempo para cá que quando compro um disco a primeira coisa que faço é contar as músicas.
Ela sorriu antes de falar.
- Rui, isto nunca aconteceu, pois não?
- Se tu quiseres aconteceu.

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

A chuva não parava de cair

A chuva não parava de cair, uma chuva fina daquelas que pode cair durante horas a fio, sem um segundo de intervalo, sem um momento de descanso. Rui lembrou-se outra vez do momento em que tinha decidido vir a Londres.
Era tarde e tinha de escolher um sítio para comer. Reparou numa montra iluminada do outro lado da rua, uma pizzaria com um ar acolhedor que o convenceu sem ter de pensar. Entrou e sentou-se numa mesa perto da janela, agora já não se importava que chovesse e enquanto esperava ser atendido divertia-se a observar o reflexo das luzes dos carros no vidro salpicado por pequenas gotas de água.
O restaurante não era muito grande e não estavam muitas pessoas na sala. Todas as mesas estavam cobertas por uma toalha de quadrados vermelhos e brancos e tinham sobre elas pratos, talheres e copos que brilhavam ao luz de velas. Pela primeira vez desde que chegara sentiu-se bem e quase desejou poder ficar ali apenas a observar, a olhar os outros.
Uma voz chamou-o à realidade.
- É português? Acertei, não acertei?
Ficou de tal forma espantado que não respondeu logo ao homem parado à sua frente e que começava a perder o sorriso enquanto tentava emendar o que tinha dito.
- I’m sorry, please...
Interrompeu-o.
- Não, não peça desculpa. Sim, sou português, mas como é que descobriu?
- Ah! Eu sabia, em vinte anos nunca me enganei uma única vez, acho que deve ser um dom que eu tenho.
- Um dom?
- Sim, um dom.
E rebentou num riso que o deixou muito vermelho, seguido de uma tosse que parecia ir durar para sempre. Demorou a recompor-se e continuou.
- Ai, desculpe, mas é este maldito tempo, as saudades que eu tenho de Portugal, do nosso sol.
- Pois, imagino.
- E vive onde, lá na nossa terra?
- Vivo no Porto, mas nasci e cresci em Lisboa.
- Muito bem, muito bem, que saudades...nem imagina...mas não o chateio mais, aqui tem a lista, fique à vontade.
- Obrigado.
Ficou a ver o homem a dirigir-se a outra mesa onde um casal se tinha acabado de sentar e reparou que não parecia a mesma pessoa, como se a alegria se tivesse apagado no momento em que começara a falar outra língua. Baixou os olhos para a lista e começou a ler quando ouviu uma voz atrás de si.
- Eu devo ser a única pessoa em que o dom dele não funciona.
Virou-se para ver quem estava a falar e encontrou uns enormes olhos azuis que o olhavam a sorrir.
- Desculpe?
- Estava a dizer que o dom dele não funciona comigo, já uma vez me perguntou se eu era francesa, mas quando eu lhe disse que não fez um ar estranho e não perguntou mais nada.
- Se calhar não funciona com raparigas louras de olhos azuis.
Ela riu e passou as mãos pelo cabelo.
- Se calhar não...eu sou a Susana e estou em Londres há dois anos, tu deves estar de férias, certo?
Rui olhou para a mochila que o denunciava.
- Sim, estou...eu sou o Rui, queres...eu não sei se...o que eu queria dizer era...
- Se me quero sentar contigo?
- Sim, desculpa...é que não estava à espera de encontrar...de encontrar alguém com quem conversar, ainda por cima alguém português, tenho passado muito tempo sozinho nos últimos dias.
Ela levantou-se e sentou-se ao lado dele.
- Mas quando ele vier aí outra vez não lhe digas nada, está bem? Não quero que ele se sinta infeliz, sempre são vinte anos sem falhar uma única vez.
- Eu não digo, está descansada.
Durante o jantar Susana contou que viera para Londres estudar um ano e que tinha acabado por ficar a trabalhar na Universidade. Não tinha sido nada muito planeado e desejava voltar a Portugal, só não sabia muito bem quando. Rui não contou porque é que viajava sozinho e desejou que ela não perguntasse, estava a ser uma noite muito agradável e não lhe apetecia recordar os últimos meses da sua vida.
Era quase meia-noite quando deixaram o restaurante e como não chovia decidiram caminhar um pouco.
- Acho que da próxima vez que lá fores devias dizer alguma coisa.
- Estás tonto? Ele nunca me ia perdoar e eu gosto muito de vir aqui. De qualquer forma se ele não descobriu até agora, já não vai descobrir.
- Sim, acho que tens razão.
- Mas mudando de conversa, só temos falado quase de mim.
Rui ficou pouco à vontade e as palavras saíram com dificuldade.
- O que é que queres saber mais sobre mim?
- Estou a ver pelo tom que não é um assunto que te agrade.
Ela falava de um forma directa, mas delicada e isso desarmava-o.
- Desculpa, eu realmente tenho tentado não pensar muito em algumas coisas nos últimos tempos.
- Mas não tens de falar se não quiseres.
Parou no meio da rua e olhou para ela demoradamente.
- Mas eu quero, ou melhor, eu não quero...mas preciso. E tenho a sensação que te posso contar tudo, porque achas que isso acontece? Será que é mais fácil partilhar as coisas que nos magoam com alguém que quase não conhecemos?
- Há quem prefira chamar a isso empatia, mas se calhar podes ter razão.
- Eu não queria dizer que não tenho empatia contigo...eu...tu percebes...
Ela sorriu.
- Claro que percebo. E estou a ouvir.
Olhou outra vez para os olhos dela e sentiu um frio no estômago.
- Sabes? E se de repente não fosse assim tão importante?
- Como?
- Se não fosse tão importante tudo o que aconteceu até hoje. E se eu te dissesse que estou farto de ser tão complicado, de fazer a vida tão complicada? Porque é que não pode ser tudo diferente? Porque é que eu tenho este feitio? Porque é que eu penso um milhão de vezes nas mesmas coisas? Porque é que eu sou tão ansioso? Porque é que eu não posso dizer apenas que sou eu? Que existo e que estou aqui, que há duas horas atrás não te conhecia e que agora estou à tua frente e me sinto completamente apaixonado por ti...me sinto apaixonado por ti e sei que isso não faz sentido nenhum e que estou só outra vez a ser o mesmo impulsivo de sempre, estou a ser...
Parou para respirar e continuou.
- Susana, eu quero ser diferente, eu quero mudar, mas não quero deixar de ser o que sempre fui, não quero perder as coisas boas que tenho, não quero...já não sei, isto faz algum sentido para ti?
Mais uma vez os olhos dela sorriram para ele.
- Afinal sempre tinhas alguma coisa importante para dizer.
- É...acho que sim, desculpa...uma pessoa passa anos a esconder as coisas dela própria e depois explode.
- E isso é mau?
- Não sei se é mau...é novo para mim.
Ela aproximou-se dele e agarrou-lhe com força uma das mãos.
- Anda! Acho que temos de conversar, acho que tens muito para falar, muito que está aí dentro guardado.
Ele não respondeu e apenas seguiu a seu lado. As ruas estavam quase desertas e enquanto observava a cidade pensava no que tinha acabado de dizer.
Ela reparou no ar sério dele e brincou.
- Então estás apaixonado por mim?

domingo, fevereiro 19, 2006

Sombras

João crescera longe da grande cidade e habituara-se a olhar as coisas de outra maneira, a prestar atenção aos pormenores que os outros deixavam escapar.
Naquele dia chuvoso de Novembro caminhava pelas ruas desertas e olhava os edifícios antigos, sorria com os pequenos detalhes esquecidos e admirava a coragem de quem os tinha imaginado. Observava os monstros desenhados na pedra, sentinelas antigas que protegiam a cidade há centenas de anos e pensava porque é que os homens tinham deixado de os fazer. Gostava de passear debaixo das estátuas e imaginar que um dia uma delas podia soltar-se e cair com violência sobre ele. Era a sua forma de desafiar o destino, de lembrar a si próprio como era frágil e como tudo podia mudar num segundo.
Desceu uma rua ao acaso e percebeu que nunca ali tinha estado, todas as casas eram antigas e pareciam desabitadas. Reparou que todas as janelas estavam fechadas e pensou há quanto tempo estariam abandonadas. A rua não tinha saída e acabava num muro que escondia um jardim com árvores gigantes que deviam ser mais velhas que a cidade.
Parou junto a um portão enferrujado e espreitou por entre as grades, podia ver o que parecia ser um palácio escondido pela vegetação que crescia livremente e tapava as pedras que um dia tinham sido brancas. Junto ao portão uma estranha torre de cor escura guardava a entrada, parecia-se com os jazigos dos cemitérios e teve vontade de saber quem repousaria ali.
De repente ouviu um barulho metálico e o portão abriu-se um pouco, empurrado pelo seu próprio peso. Largou as grades e recuou dois passos, tinha vontade de entrar e descobrir o que se escondia por entre as árvores, mas hesitou um pouco. Apesar de toda a curiosidade estava com um pouco de medo e demorou alguns segundos antes de decidir entrar empurrando a estrutura metálica que estranhamente deslizou sem dificuldade.
Mal entrou ficou parado junto à torre que observara do lado de fora e pareceu-lhe menos assustadora, já não lhe parecia tanto um jazigo e depois de passar uma das mãos pela pedra gasta continuou por um caminho desenhado no chão que desaparecia pelo meio dos arbustos altos.
Depois de caminhar alguns metros pelo caminho apertado, encontrou uma clareira onde a luz rompia por entre as sombras das árvores. No meio daquele espaço aberto estava uma fonte que não deitava água e um banco onde alguém estava sentado. Era uma senhora de cabelo branco vestida com um vestido cinzento que levantou a cabeça quando o ouviu aproximar-se e falou com ele.
- Olá.
João pensou se não deveria ter entrado no jardim.
- Boa tarde. Desculpe a invasão, mas o portão estava aberto e eu não resisti a entrar.
- Não faz mal, tudo aqui está abandonado, por isso acho que já não pertence a ninguém.
- A senhora sabe de quem é este jardim? Ele pertence à casa que vemos da rua?
- Sim, o jardim pertence à casa, mas não sei dizer a quem pertence a casa, já passou tanto tempo.
- Tanto tempo? Desde o quê?
Ela fez um ar muito sério e endireitou-se no banco antes de continuar.
- Eu já vivi naquela casa, desde que nasci até aos meus dezoito anos. Já era uma casa antiga naquela altura e acho que ninguém sabe quem a construiu.
- A sério? Viveu mesmo aqui?
- Sim, brinquei neste mesmo jardim quando era criança.
- Sempre admirei estas casas antigas e fico a imaginar que histórias terão para contar.
A senhora fez um ar triste.
- A história deste sítio não é uma história alegre.
- Não é?
- Não, é uma história de amor, mas de um amor impossível, um amor que trouxe muito sofrimento a todos os que aqui viviam.
- Mas o que é que aconteceu?
- O mesmo que aconteceu tantas outras vezes em tantos outros sítios, um olhar mais demorado, um toque ligeiro de mãos, um beijo roubado debaixo destas árvores. Foi um amor que só devia ter acontecido anos mais tarde, mas que não conseguiu esperar.
João queria perguntar o óbvio, mas os olhos da velha senhora tinham-se enchido de lágrimas e não teve coragem de falar, ficou apenas sentado a seu lado a ouvi-la contar como há muito tempo haviam muitas flores por todo o jardim que depois eram levadas para a casa e enchiam de perfume os corredores compridos. Ela contou também sobre as festas que ali tinham acontecido e de como toda a rua era iluminada por velas que levavam até à entrada da casa. Nesses dias todos ficavam à janela a ver as pessoas a chegarem nos seus vestidos elegantes.
Quando finalmente decidiu que se devia ir embora, sentiu um enorme carinho pela senhora e sabia que nunca ia esquecer as histórias que ela lhe tinha contado.
- Bem, acho que vou andando. Obrigado por esta tarde e pelas histórias que me contou.
- Não tem que agradecer meu jovem, eu é que agradeço a paciência com esta velhota.
Ele sorriu envergonhado.
- E fica bem aqui? Daqui a pouco fica tarde e vai começar a escurecer.
- Obrigada pela preocupação, mas eu estou à espera da minha neta, ela vem sempre ter comigo ao fim da tarde.
Meteu-se outra vez por entre os arbustos e caminhou de regresso à rua. Na sua cabeça tinha ainda vivo tudo o que tinha ouvido e por momentos imaginou-se a viver muitos anos atrás.
Quando fechou ao portão e se preparou para regressar a casa sentiu que não estava só, olhou para trás e deu de caras com uma rapariga que o olhava com um ar zangado.
- Quem é você? O que estava a fazer aí dentro?
- Desculpe, eu reparei que o portão estava aberto e…foi mais forte que eu.
- Não o devia ter feito, não é um sítio público.
Rapidamente percebeu as semelhanças.
- Você deve ser a neta da senhora que encontrei lá dentro, eu…eu não lhe perguntei o nome, eu sou o João…passámos uma tarde muito agradável e ela está à sua espera, mais uma vez peço desculpa pela invasão.
Ela ficou calada e acenou apenas com a cabeça e começou a abrir o portão. Ele começou a subir a rua mas antes que ela entrasse parou e falou.
- Acha que posso voltar?
- Como?
- Se posso voltar aqui…não sei bem explicar, mas senti-me em casa e a sua avó é das pessoas mais encantadoras que já conheci.
Ela ficou um momento sem responder, mas depois sorriu e respondeu.
- Sim, pode, claro que pode, eu…eu peço desculpa por ter sido tão agressiva, mas tive um dia complicado e…e não estava à espera de encontrar alguém aqui.
- Não faz mal, eu percebo, bem…vou andando, pode ser que nos voltemos a encontrar aqui, adeus.
- Sim, pode ser que sim, adeus.
Luísa fechou o portão, afastou-se um pouco e quando olhou para o jazigo não conseguiu aguentar mais as lágrimas, começou a correr enquanto chorava e só parou quando chegou à clareira. Como sempre o banco estava vazio à sua espera, mas a recordação da sua avó ali sentada era mais forte e imaginava-a sempre a ler um livro, imaginava-a a contar-lhe histórias de príncipes e princesas enquanto ela a ouvia sentada no chão.
Tinha tido uma vida triste a avó Luísa, de quem tinha recebido o nome e também o feitio, segundo dizia a sua mãe. Gostava de lembrar-se dela ali sentada e raro era o dia que não visitava aquele sítio. Era a sua forma de não se despedir dela e de sentir que ela ainda estava presente.
Sentou-se no banco e recordou uma das últimas vezes que ali tinha estado com a avó, ela tinha lhe pedido para não esquecer aquele lugar, pois apesar de toda o sofrimento, era um sítio mágico. Luísa ria sempre com estas conversas da avó, mas daquela vez ela parecia estar a falar a sério. Repetiu em voz baixa as palavras que trocaram naquele dia.
- Não deixes nunca de vir aqui, promete-me isso.
- Eu prometo avó.
- E vive um grande amor, vive o que eu não consegui.

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

Cartas

Bissau, 17 de Fevereiro de 1969

Finalmente tenho algum tempo para escrever. São tantas as coisas que tenho para te contar que nem sei por onde começar, acho que por repetir infinitas vezes que te amo e que esta separação a que nos obrigam vai parecer pequena daqui a uns anos.
Apesar de estar contrariado num país que não conheço, a milhares de quilómetros dos que amo, não posso deixar de sentir que esta terra tem algo que cativa e não nos deixa indiferentes. Não consigo esquecer o momento em que saí do avião e senti o ar quente na cara, tive de reprimir a sensação de que aqui também estou em casa, de que aqui também posso ser feliz, pois sei que vim para uma guerra, para uma luta que não desejo e o meu único pensamento deve ser o de voltar para ti...


João parou de ler a carta que tinha nas mãos e olhou para a sua avó. Estava sentada muito direita ao lado do caixão castanho com um ar tranquilo, demasiado tranquilo para quem acabara de perder o companheiro de tantos anos. Caminhou até ela e beijou-a na testa.
- Estive a ler um pouco de uma das cartas que me deu, o avô falava de quando chegou à Guiné.
Ela esticou as mãos para as dele e falou devagar.
- Foi em Fevereiro, não foi?
- Sim, há quase sessenta anos.
- Ele queria muito que tu ficasses com estas cartas.
- Eu sei avó, mas elas...elas deviam ficar com a avó.
- Meu querido...eu não vou durar para sempre e o avô queria que aquele tempo não fosse esquecido.
- Mas porque é que não as deixou ao pai? Malditos teimosos...porque é que não se entenderam?
Ela passou a mão pelo cabelo negro dele e sorriu.
- Sabes que para nós sempre foste um filho, não sabes?
- Eu sei, mas ele é que é o vosso filho.
- E um filho que muito amo, mas a vida nem sempre é como queremos, o teu avô queria tanto ter sido um pai diferente, mas acho que só o conseguiu contigo.
- Eu tive dois pais maravilhosos...e duas mães também, mas porque é que as coisas não foram diferentes?
Não esperou pela resposta e afastou-se de volta ao sítio onde tinha começado a ler as cartas. Abriu a caixa de madeira que a avó lhe entregara no dia anterior e tirou uma carta ao acaso.


Bissau, 18 de Agosto de 1969

Só passaram seis meses desde que cheguei e tenho a sensação que sempre aqui vivi. Todos os dias sonho com o dia em que vou voltar a ver-te, mas não posso mentir, cada vez amo mais esta terra e sofro por tudo que aqui acontece. Às vezes à noite sonho com o fim da guerra e com nós dois a vivermos neste paraíso esquecido, sonho com os nossos filhos a correrem por entre as árvores e nós a bebermos chá frio ao fim da tarde. O pôr-do-sol aqui é tão bonito que nem o vou tentar descrever...


Guardou a carta na caixa e saiu da capela, era estranho estar a ler os relatos do avô. Ele nunca falava do tempo que passara em África e lembrava-se de uma vez lhe ter perguntado como é que tinha sido a guerra e de ter visto as lágrimas aparecerem nos seus olhos. Nunca mais lhe perguntara nada sobre a Guiné e agora sentia que de alguma maneira estava a magoá-lo. Mas tinha sido ele a querer que ficasse com as cartas e não ia pôr em causa a sua vontade.
O avô Fernando tinha sido mais do que um simples avô, tinha sido o seu companheiro de aventuras e recordava agora as tardes infinitas passadas a dois. Lembrou-se dos papagaios de papel de jornal, das fisgas feitas de borracha de pneus velhos, dos barcos esculpidos na madeira dos pinheiros, lembrou-se de tudo o que aprendera com ele e sentiu saudades.
Só tinha pena de não ter podido partilhar esses momentos com a única pessoa no mundo que amava tanto quanto o avô, o seu pai. Nunca percebera bem o que se tinha passado entre eles e com os anos deixara de tentar entender o que não parecia ser possível mudar. Sabia que tinham sido bastante próximos quando o seu pai era ainda criança, mas algo os afastara e o tempo escondera as razões.
Apagou o cigarro no chão de terra e dirigiu-se para o interior da capela, abriu outra vez a caixa e retirou outra carta.


Bissau, 23 de Setembro de 1970

Desculpa não ter escrito nas últimas semanas, mas as coisas aqui não têm sido fáceis. Os tempos de prazer acabaram e esta terra, que apesar de tudo teimo em amar, tornou-se um inferno para a maior parte de nós. Os combates são cada vez mais brutais, cada vez mais violentos, cada vez mais sem sentido e não sei quanto tempo mais aguentarei. Desculpa-me por ter de te contar estas coisas, mas não sei mais a quem recorrer, os meus companheiros passam o tempo a decorar as rezas que depois repetem enquanto se escondem de cara enfiada na lama e eu não tenho ninguém com quem falar. Eu não me escondo, não me escondo pois já perdi o medo e luto de peito aberto por algo em que não acredito...e acontecem coisas que eu não sei se alguma vez vou esquecer. Promete-me, promete-me que um dia me deixas deitar no teu colo e tentar não pensar mais nisto, promete-me que os nossos filhos não vão saber, promete-me que vou ser um bom pai...


A carta tinha mais linhas escritas mas João não foi capaz de continuar. Levantou-se e dirigiu-se à sua avó que continuava sentada no mesmo sítio, abraçou-a com força e chorou.
- Avó, tu não merecias ter tido de ler aquelas cartas...aqui longe sem poder fazer nada. Eu não fazia ideia...
- Não chores neto, elas fazem parte do passado, mas eu não podia não as ter lido. Foi saber que eu as lia que lhe deu forças para sobreviver. Sem isso ele não tinha conseguido, porque nós sempre partilhámos tudo e eu tinha de estar com ele, percebes?
- Acho que sim...mas é tão injusto, a vida é tão injusta...e o pai, o que aconteceu com o meu pai? Isto tudo...isto afectou muito o avô, não afectou?
- O teu avô teve uma boa vida...e teve anos maravilhosos com o teu pai, onde é que achas que ele aprendeu a brincar com crianças? Meu querido, ele adorava-te, tal como adorava o teu pai.
- Mas então porquê?
- Porque há marcas que ficam na alma de um homem, feridas que voltam a abrir quando menos esperamos, foi só isso. Mas não te quero ver assim, não foi para isto que ele te deixou as cartas, foi porque te adora e porque acha que apesar de tudo elas têm muitas coisas boas que merecem ser lembradas. É uma parte importante da vida dele...da nossa vida que está ali e deve ficar com alguém que possa compreender, que possa guardar tudo com amor.
- Amo-te avó, amo-vos muito aos dois.
Abraçou-a mais uma vez com força e pelo canto do olho reconheceu uma figura à porta da capela. Pela primeira vez reparou que estavam a ficar parecidos, que o tempo os aproximara de uma maneira que não podiam recusar. O seu pai tinha agora o mesmo cabelo grisalho que o seu avô sempre tivera e as mesmas rugas que se habituara a observar. Foi ter com ele e reparou nos seus olhos cheios de lágrimas que teimavam em não cair.
- Sabes pai, ele amava-te muito...
- Eu sei filho...eu sei, eu também o amo muito.

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Durante a Noite

Abro o frigorífico e olho lá para dentro. Tiro um pacote de leite e desejo que não tenha passado o prazo de validade. Tem a data do dia anterior e decido arriscar tentando ignorar o sabor esquisito que me convenço ser apenas da minha cabeça. Dirijo-me à sala às escuras e tento fazer pouco barulho, não quero acordar Teresa, principalmente depois da discussão que tivemos e que provocou a sua ida para a cama mais cedo.
Sento-me à mesa onde horas antes estivemos a comer e ligo o portátil, é algo que faço quase de forma automática, sem nenhum plano. Sei que devia ir deitar-me e abraçar Teresa, mas tenho a cabeça demasiado cheia, tenho de desabafar e só o vou conseguir se escrever algumas palavras. Juro a mim próprio que é só uma hora, mas sei que estou a mentir, nunca é só uma hora.
São duas da manhã e relembro a conversa do princípio da noite, relembro as palavras amargas que Teresa me disse e penso se ela terá razão, se eu mudei assim tanto nestes últimos anos. Sei que as coisas não são como antigamente, mas só nos últimos meses dei conta do quanto nos afastámos um do outro.
Sinto-me saturado e tenho vontade de sair de casa, de guiar sem destino durante horas, só eu e o barulho do carro. Olho para as chaves no móvel da entrada e domino o impulso de me levantar, se Teresa acordar sem eu estar em casa vai ficar preocupada e vai ser mais difícil pôr as coisas bem.
Tenho saudades do tempo em que nos conhecemos, do dia onde tudo começou, do cinema onde éramos as duas únicas pessoas na sala, da queda que dei na escuridão que castigava quem chegava atrasado. Nunca me vou esquecer do seu riso e do meu esforço para conter as lágrimas de dor. Lembro-me de me sentar a seu lado e de não conversámos durante todo o filme, mas de ter a certeza que estávamos juntos e que iríamos estar para sempre.
Os meus pensamentos são interrompidos por um choro, levanto-me e dirijo-me depressa ao quarto que fica ao lado do meu. Consigo lá chegar antes que Teresa acorde e com cuidado afasto os sonhos maus para longe. Sento-me na cama e deixo a mão por cima dos cobertores enquanto o embalo traz o sono até mim.
Acordo com uma mão na minha e pergunto se ele chorou outra vez, Teresa diz-me que não, que julgava que eu tinha adormecido na sala e que me tinha ido chamar. Observo-a enquanto puxa os cobertores para cima e lembro-me outra vez de nós. Ficamos um pouco a ouvir o seu respirar calmo e saímos do quarto de mãos dadas.

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

O Conto

Eram três da manhã e Ricardo continuava acordado, a seu lado Carla dormia profundamente sem saber que ele a observava. Passou os dedos pelos seus cabelos e dominou a vontade de chorar, o medo de a perder era quase insuportável. Ela acordou.
- Não estás a dormir...que horas são? Não reparei quando te vieste deitar.
- São três.
- O que se passa?
- Nada de especial, só não consigo dormir, volta para os teus sonhos.
- Agora já acordei...bem que podes me contar o que vai nessa cabeça.
Ela conhecia-o bem demais e não ia desistir, sabia que não ia conseguir desviar o assunto.
- Há uma hora atrás acabei de escrever o melhor conto de toda a minha vida.
- O melhor?
- Sim, o melhor.
Carla percebeu que ele falava a sério e esfregou os olhos para espantar o sono.
- E?
- E acho que não vou poder escrever mais nada depois disto.
- Não sejas doido.
- Estou a falar a sério.
- Mas porque é que dizes isso?
- Porque no momento em que acabei senti-me vazio.
Levantou-se e dirigiu-se à janela, não conseguia encará-la.
- Ricardo...olha, eu não quero parecer insensível, mas não achas que és capaz de estar a exagerar? Tu ficas sempre assim quando acabas de escrever algo. Eu percebo a tua angústia, mas vais ver que daqui a uns dias já estás frente ao computador sem me ligares nenhuma.
Ele virou-se de repente e deixou-a ver as lágrimas que lhe corriam pela cara.
- Eu não tenho mais nada para te oferecer.
- Ricardo...eu..eu sei que te pedi para falares, mas não vou ter uma discussão sobre as tuas inseguranças a esta hora, acho que devias tentar dormir.
Deixou-se cair na cama e tocou-lhe outra vez no cabelo, pensou se seria a última vez que o fazia.
- Desculpa, eu não queria chatear-te.
- Acho que devíamos falar amanhã, vais ver que já não pensas assim, não achas?
- Sim, não te preocupes, tu já sabes como é que eu sou, amanhã falamos.
- Eu amo-te, sabes isso, não sabes?
- Sim, eu sei, vai dormir, eu vou só à sala um minuto, tenho de gravar o que escrevi.
Ela olhou para ele com um ar espantado.
- Desculpa?
- O que foi?
- O que foi? Tu achas que escreves o melhor conto da tua vida e...e não o gravas?
Respondeu sem olhar para ela enquanto saía pela porta do quarto.
- Seduziu-me a possibilidade de o poder perder, uma estupidez, eu sei. Já volto.
Sentou-se frente ao monitor preto e tocou numa tecla qualquer, o texto apareceu de novo e leu mais uma vez o que tinha escrito nessa noite. Quando acabou escolheu um título banal e gravou o ficheiro. Foi-se deitar sem pensar no dia seguinte.

quarta-feira, janeiro 25, 2006

Telma

Telma: vontade, desejo...

Luís entrou no hipermercado e estranhou o ambiente. Embora estivesse mais perto da sua casa preferia ir a outro, preferia pagar um pouco mais para se sentir mais à vontade, para sentir que pertencia a um mundo mais perfeito, mais bonito. Mas naquela tarde tinha pressa e não tinha tempo para passear pelos corredores, era mesmo só entrar, comprar o que queria e sair rapidamente, por isso era preferível um sítio com menos gente.
Apesar de tudo demorou mais tempo do que tinha pensado, não conhecia bem o sítio onde estavam as coisas e não conseguiu encontrar logo o que procurava. Só depois de fazer duas vezes o corredor principal descobriu o que queria, uma nova marca de comida pré-cozinhada que vira anunciada na televisão e que tinha decidido ir ser o seu jantar.
Enquanto caminhava em direcção à zona das caixas olhou para as poucas pessoas que circulavam à sua volta. Eram diferentes das que estava habituado a observar nos sítios que costumava frequentar e recordou-se de quando era um miúdo e vivia fora da cidade. Tudo tinha mudado desde essa altura e recordava agora esses tempos.
Ao chegar perto das caixas reparou que estavam praticamente vazias, podia escolher a que lhe apetecesse e avançou para a que estava mais perto de si onde uma rapariga vestida com um casaco azul e vermelho aguardava pelo próximo cliente. Pôs a embalagem que trazia na mão no tapete rolante e cumprimentou-a.
- Boa tarde.
Ela respondeu.
- Boa tarde, tem cartão de desconto?
- Não, não tenho. Eu não costumo vir aqui.
- Então tem que começar a vir mais vezes, se for ao balcão principal pode pedir lá um cartão.
- Obrigado pela sugestão, mas hoje estou com pressa, talvez noutro dia.
Enquanto falavam Luís observou-a a passar devagar a embalagem pelo leitor de código de barras e a pô-la num saco de plástico. Normalmente irritava-se quando demoravam tanto tempo, mas naquele dia não pensou nisso, deixou-se ficar apenas a vê-la a mover as mãos com delicadeza. Ela devia ser mais nova do que ele, talvez tivesse menos uns sete ou oito anos e era muito bonita, mas era diferente das raparigas para as quais costumava olhar, era mais simples e estava menos arranjada. Pensou que talvez só estivesse a achar isso por causa da profissão dela e desejou não o estar a fazer, mas a verdade é que deu por si a reparar que as outras raparigas das caixas não estavam vestidas da mesma maneira e a pensar se ela não seria uma espécie de chefe ou supervisora. Definitivamente estava a ser preconceituoso e abandonou os pensamentos que tinha na cabeça. Ela falou.
- Quer mais um saco?
- Não, obrigado. Deixe-me só ver se encontro o multibanco...ah, está aqui! Sabia que o tinha guardado num destes bolsos quando fui pôr gasolina.
Ela passou o cartão na máquina com os mesmos movimentos lentos e cuidadosos e Luís deu por si a marcar os números do seu código pessoal também devagar. Depois de alguns segundos ouviu o barulho característico de impressão e esperou que ela lhe entregasse o recibo e o papel do multibanco. Quando ela esticou o braço para lhos entregar não resistiu e tocou com os seus dedos nos dela. Ficou com medo que ela tivesse reparado, mas ao mesmo desejou que tivesse percebido. Despediu-se de forma nervosa.
- Então boa tarde.
- Boa tarde e esperamos poder vê-lo por cá mais vezes.
O tratamento formal pareceu-lhe desadequado, mas sabia que só o era na sua cabeça. Caminhou para a garagem e leu o recibo que ela lhe tinha dado, procurou um nome impresso no papel e achou um que devia ser o dela, Telma Santos.

Luís passou a ser um cliente assíduo do hipermercado. Todos os dias ao fim da tarde passava por lá para comprar o jantar e tentava pagar na caixa onde ela estava. Ao fim de alguns dias exibiu com orgulho o seu cartão de desconto e a partir daí passaram a trocar algumas palavras. Eram conversas rápidas, mas todos os dias falavam sempre mais um pouco do que no anterior, àquela hora havia pouca gente e podiam sempre perder algum tempo a falar.
Três semanas depois de a ter conhecido convidou-a a para jantar. Foi uma situação muito estranha e a meio pensou se não estaria a avançar cedo demais, mas ela aceitou sem ter de pensar muito. Impôs apenas uma condição, o jantar seria em casa dela no fim-de-semana seguinte. Ele aceitou.
Foi com algum nervosismo que Luís saiu do carro e tocou à campainha do prédio com o número vinte e três. Não era costume fazer convites daqueles a pessoas que mal conhecia e estava um pouco ansioso com o desenrolar da noite. No intercomunicador ouviu uma voz conhecida.
- Sim?
- Telma? Sou eu, o Luís.
- Sobe.
Entrou no prédio e sentiu o cheiro de comida. Subiu as escadas até ao segundo andar e quando se preparava para bater à porta ouviu o barulho de uma chave a rodar na fechadura. Telma abriu a porta sorridente.
- Olá, entra. Tiveste dificuldade em dar com a rua?
- Não, não conhecia a zona, mas as tuas indicações estavam perfeitas.
- Pois, suponho que não seja uma zona muito frequentada pelos ricos.
Quando ia argumentar percebeu pela cara dela que estava a brincar. De qualquer forma sentiu-se desconfortável com o comentário, sabia que haviam diferenças entre eles e não tinha conseguido resolver bem esse problema na sua cabeça. Um problema que o incomodava mais por achar que não era boa pessoa por pensar naquelas coisas, do que por sentir que isso tinha realmente alguma importância.
Ela interrompeu os seus pensamentos.
- Então, vais ficar aí à entrada?
- Desculpa, eu às vezes tenho destas coisas, não ligues. Toma, isto é para ti, não sei se gostas.
Telma agarrou no ramo de flores e cheirou-as demoradamente.
- Há muito tempo que não me ofereciam flores.
- Não é nada de especial, também trouxe vinho.
- Mas tu és maluco? É só um jantar simples, não era para trazeres nada, obrigada.
Entraram e observou a casa, era muito pequena mas muito acolhedora e sentiu-se muito bem lá dentro. As paredes estavam cheios de desenhos e todos os cantos estavam preenchidos por algum objecto, como se cada centímetro de espaço tivesse sido cuidadosamente planeado. Ela percebeu.
- Está um pouco cheia eu sei, mas tenho alguns problemas em me livrar das coisa de que gosto.
- Dá para perceber. E os desenhos?
- São meus.
- A sério?
- Sim, mas são só brincadeiras, não são verdadeiras obras de arte. É como te disse, não me consigo livrar das coisas.
Sentaram-se no sofá da pequena sala.
- Queres beber alguma coisa?
- Bebo um copo de água, não quero começar já com o vinho.
Ela sorriu com a piada dele e saiu da sala enquanto Luís continuava a observar aquele novo mundo onde tinha entrado. Por cima de uma televisão cinzenta estavam várias prateleiras cheias de CD’s e não resistiu a levantar-se e dar uma olhada. Quando Telma entrou com a água não conseguiu esconder o seu espanto.
- Desculpa, estava aqui a olhar para a tua colecção de CD’s, confesso que estou admirado.
- Porquê?
- Eu julgava que era um apreciador de música, mas quando olho para tudo o que tens aqui, sinto que não sei assim tanto sobre o assunto.
- É uma das minhas paixões, juntamente com o cinema e com os desenhos, mas não tenho dinheiro para tudo. Só que não respondeste à minha pergunta.
- Que pergunta?
- Porque é que ficaste admirado com a minha colecção de CD’s?
Falou sem pensar.
- Não achei que uma pessoa como tu...
Percebeu tarde demais o que estava a dizer.
- Desculpa, não era isto que eu queria...eu não queria dizer o que disse.
- Não? Eu acho que tu disseste exactamente o que querias. É difícil esqueceres, não é?
- Esquecer o quê?
Sabia bem no que é que ela estava a falar e não insistiu na pergunta quando percebeu que ela não ia responder. De repente sentiu-se muito desconfortável e apeteceu-lhe sair daquela sala pequena. Apeteceu-lhe fugir e esquecer tudo, esquecer o que dissera, esquecer quem era, apenas meter-se no seu carro e fingir que nada tinha acontecido. Mas no meio de todos este pensamentos confusos olhou para ela e reparou que não estava com um ar zangado. Acalmou-se.
- Desculpa, não era esta a noite que eu tinha planeado quando te convidei para jantar.
- Eu sei.
- Olha, eu não sou má pessoa e não acho que sou superior a ninguém, só que...eu não sei bem explicar, há coisas que são automáticas...eu...
Não foi capaz de continuar e sentou-se outra vez no sofá. Ela sentou-se a seu lado e falou calmamente.
- O teu mundo é muito diferente deste, não é?
- É...mas...
- Diz.
- É, mas não quero que seja, percebes?
Ela sorriu de uma maneira que o fez tremer.
- Eu sei.
- Sabes? Mas...então não estás zangada?
- Nunca disse que estava.
- Mas tu confrontaste-me. E com algo que eu próprio não consigo admitir para mim mesmo a maior parte das vezes.
Ela pousou as suas mãos nas dele e ficou um segundo a olhar para ele.
- Achei só que devíamos resolver este problema o mais cedo possível.
- Mas então tu...tu já sabias?
- Desde o momento em que me tocaste na mão, na primeira vez em que nos vimos.
Repetiu dentro da sua cabeça o que ela tinha acabado de dizer. Parecia que estava a acordar de um sonho, como se nas últimas semanas tivesse estado nalguma espécie de transe do qual começava a sair. Percebeu que não tinha pensado muito no que tinha andado a fazer, mas que de repente tudo fazia sentido.
Perguntou-lhe timidamente.
- E achas que já resolvemos o problema?
Ela não respondeu e beijou-o nos lábios.
- Luís, acho que gosto de ti.

quinta-feira, janeiro 19, 2006

Diferenças

Tarde

Quanto mais olhava para a parede mais tinha a certeza do impossível, aquela não era a sua sombra. Passou as mãos pelos contornos que deviam ser seus e reparou nas pequenas diferenças, o cabelo ligeiramente mais comprido, os ombros mais largos, a camisola de gola alta. Deitou-se sobre a cama por fazer e recordou o dia anterior.


A estação

Ao entrar no átrio principal do edifício olhou para os monitores com as horas dos comboios e percebeu que dificilmente conseguiria apanhar o das oito. Tinha escolhido o pior dia do ano para chegar atrasado, o dia do aniversário de Teresa, que lhe suplicara para não a desiludir mais uma vez. Agora corria por entre as pessoas derrubando tudo à sua frente e rezava para que o comboio se atrasasse pelo menos alguns minutos, era tudo o que precisava.

Saltou por cima de uma mochila esquecida no chão e viu-o pela primeira vez, reparou nele e o tempo pareceu correr mais devagar, como se numa fracção de segundo tivesse conseguido observar aquela pessoa durante horas, como se estivesse a olhar para um quadro numa parede de um museu e se esquecesse de tudo. Não pôde evitar a colisão e percebeu logo que tinha perdido o comboio.

Voltou a si com o barulho da sirene da ambulância. A seu lado um jovem bombeiro sorria para ele e explicava-lhe que tinha estado desmaiado durante algum tempo, mas que estivesse descansado pois não devia ser nada de especial, a ida ao hospital era só por precaução. Lembrou-se de Teresa e fechou os olhos, tinha falhado mais uma vez.


Em casa

Entrou em casa e desejou estar sozinho, queria poder pedir desculpas sem os olhares de toda a família. Ficou no corredor a ouvir as conversas e os risos das crianças que corriam umas atrás das outras e de repente deu por si a pensar que não gostava do quadro que estava pendurado por cima do móvel onde costumava pôr as chaves. Alguém o chamou de volta à realidade.

Em menos de dez segundos estava rodeado de perguntas e olhares. O penso na testa era o principal motivo de curiosidade e respondia devagar a todas a perguntas. Conseguia ver a cara triste de Teresa ao fundo da sala, sabia o que ela estava a pensar e sabia que não se ia deixar impressionar por nódoas negras e roupas rasgadas, as feridas entre eles eram bem maiores.


No quarto

Antes da festa acabar sentiu-se muito cansado e subiu para o seu quarto, tomou um banho e sentou-se na cama. Não ligou a televisão e ficou a ouvir Teresa no andar de baixo a arrumar a casa. Queria ir ajudá-la mas sabia que não ia ser bem recebido e ficou à espera de uma conversa que não queria ter.

Quando ela entrou no quarto estava quase a adormecer. Sentou-se mais direito e tentou escolher as palavras para falar, mas estava cansado e não sabia mais o que dizer ao fim de tantos anos, ficou calado. Ela fez um ar estranho, como se esperasse uma reacção diferente dele e perguntou-lhe se tinha dores. Respondeu que sim e ela disse que talvez fosse melhor deixarem a conversa para o dia seguinte.

Apagaram a luz e ficou a pensar no dia que tinha tido, pensou nos minutos que perdera no trabalho, no metro que não tinha apanhado por um segundo, no homem com quem tinha chocado na estação. A seu lado Teresa dormia, aproximou-se dela e sentiu o cheiro do hidratante que costumava pôr antes de se deitar, sempre gostara daquele perfume e tinha a sensação que não o sentia há muito tempo. Sem pensar aproximou-se mais e abraçou-a, sentiu o seu corpo e adormeceu.


Manhã

Acordou com o sol na cara e por um momento não se recordou do dia anterior, deixou-se ficar na cama de forma preguiçosa até que uma voz o chamou e lembrou-se de tudo o que tinha acontecido. Teresa entrou no quarto com um enorme sorriso na cara e disse-lhe que o pequeno-almoço estava pronto. Perguntou timidamente se não deviam conversar, mas ela sorriu outra vez e saiu do quarto sem responder.

Enquanto tomava banho sentiu-se estranho, como se o mundo à sua volta estivesse diferente. Não conseguia deixar de sentir uma sensação de que tudo era novo, como se estivesse num hotel numa das suas viagens de trabalho. Olhava para os lados e conseguia reconhecer os seus objectos, mas ao mesmo tempo parecia que estavam todos fora do seu sitio. Era algo que não conseguia compreender e deixou-se estar debaixo da água quente que corria do chuveiro.

Voltou para o quarto e abriu uma porta do armário para escolher algo para vestir. Olhou para as camisas penduradas e não teve vontade de vestir nenhuma, eram quase todas iguais e apetecia-lhe vestir algo diferente. Abriu algumas gavetas e foi passando por entre os dedos as camisolas dobradas no seu interior. Não sabia porquê, mas pareciam-lhe todas estranhas, como se não fossem dele, como se tivesse acordado numa casa que não era a sua e vasculhasse nas roupas de outra pessoa.

No fundo de uma gaveta encontrou uma camisola da qual não se lembrava. Nunca tinha gostado daquele tipo de golas que lhe apertavam o pescoço e perguntou a si mesmo como é que ela tinha ido ali parar. Era verde e à frente tinha uma figura estampada em tons de amarelo de um gosto muito duvidoso que o fez sorrir. Não resistiu e vestiu-a.

Desceu as escadas e sentou-se ao lado de Teresa que lhe perguntou que camisola era aquela. Tentou desviar o assunto, mas ela mal conseguia conter o riso, um riso que o fez lembrar-se do dia em que a conheceu. Não aguentou e riu-se com ela.

domingo, janeiro 08, 2006

O Táxi

Na cidade

Eram onze da noite e João conduzia o táxi devagar pelas ruas de Lisboa. Estava calor e trazia a janela aberta para sentir o vento na cara, àquela hora não se sentia o ar poluído da cidade e às vezes o cheiro era quase agradável. Gostava destas noites com pouco trabalho em que podia conduzir sem destino pelas ruas vazias e não se preocupava com o dinheiro que não estava a ganhar. Era uma pessoa simples e não precisava de muito para ser feliz, apenas alguns pequenos prazeres eram suficientes para que tivesse uma vida com poucas preocupações.
No dia anterior tinham-lhe ligado de manhã para ir buscar um carro à oficina com o qual deveria andar durante a semana e recordava agora o momento em que o tinha ido buscar. Era normal trocar de carro e normalmente não dava muita importância a estas mudanças, mas tinha ficado espantado com o que o esperava desta vez, um Mercedes com mais de vinte anos ainda pintado com as antigas cores dos táxis da cidade.
O carro estava em excelentes condições e quase que era difícil acreditar que tinha tanto tempo de serviço. O rapaz que lho entregara tinha lhe contado que pertencera a um taxista que se tinha reformado uns meses antes e que tinha sido o único a conduzi-lo durante duas décadas. O amor do senhor pelo carro era conhecido entre os seus amigos e ao que parecia tinha feito algumas exigências antes de o entregar. João só não sabia por que é que o tinham escolhido a ele para conduzir aquela antiguidade, não era conhecido por ser especialmente cuidadoso com os carros e sentia-se algo nervoso com a responsabilidade.


Na avenida

Quando descia a Avenida da Liberdade reparou numa pessoa parada no passeio, não era um sitio comum para se mandar parar um táxi, ainda mais àquela hora, mas abrandou a velocidade. Viu uma mão no ar e pensou que não devia parar ali, mas como o semáforo à sua frente ficou vermelho decidiu parar, uma mulher entrou pela porta traseira e sentou-se sem dizer nada. Ele falou.
- Boa noite, para onde deseja ir?
A mulher ficou calada sem olhar para ele.
- Peço desculpa, mas este é um sitio mau para estar parado, pode-me dizer para onde deseja ir?
Ela olhou para ele e falou.
- Desculpe, queria ir para Belém.
Arrancaram e João pensou se devia ou não dizer alguma coisa, nem sempre fazia conversa com os passageiros e tinha a sensação que a mulher não devia ser muito comunicativa.
- Sabe, quando quiser apanhar um táxi aqui devia ir para as ruas laterais, ali atrás é muito difícil alguém parar.
Ela voltou a demorar a responder.
- Eu não estava à espera de um táxi, na verdade não sei bem porque é que o mandei parar, acho que estava cansada e quando o vi achei que talvez fosse boa ideia dar uma volta de carro.
- Dar uma volta de carro? Mas não disse que queria ir para Belém?
- Tinha que dizer algum sitio não era? Mas na verdade não me importo muito para onde vá.
Ficou um minuto sem dizer nada. Não era a primeira vez que lhe aparecia uma pessoa estranha, mas não sabia bem o que dizer.
- Mas está tudo bem consigo? Eu...desculpe, não queria estar a ser intrometido.
- Não faz mal, compreendo que esta deva ser uma situação estranha para si, mas não se assuste, eu tenho dinheiro para pagar.
Não tinha pensado em dinheiro, raramente pensava. Ficou calado enquanto continuava a conduzir pela baixa da cidade, as ruas estavam iluminadas pelas luzes de Natal que ainda não tinham sido retiradas, uma das razões porque se tinha dirigido para aquela zona da cidade.
Esticou o braço e desligou o taxímetro.
- O que está a fazer?
A voz da mulher tinha se alterado e parecia algo assustada.
- A senhora não quer ir para lado nenhum e eu também andava um pouco à deriva, por isso não acho muito justo cobrar-lhe dinheiro.
- Como? Não está a falar a sério pois não?
- Estou, assim pelo menos tenho companhia.
Ela não respondeu e ele continuou a guiar sem destino.
Passou algum tempo sem que algum dos dois falasse. Ele olhou pelo retrovisor quando passaram por um candeeiro e viu dois enormes olhos que o observavam, perguntou a si mesmo no que estaria a pensar, mas não teve coragem de perguntar. Em vez disso fez-lhe uma proposta.
- Importa-se que vá até Belém? Afinal era o nosso primeiro destino.
- Não, mas porquê?
- Lembrei-me que podíamos ir comer uns Pastéis de Belém.
Ficou um pouco atrapalhado com o convite que tinha acabado de fazer e tentou corrigir.
- Não leve a mal, mas é algo que costumo fazer quando acabo o serviço, vou comprar Pastéis de Belém e vou até ao pé do rio.
Sentia-se cada vez pior, mas continuou.
- Mas pode ficar no carro se quiser, ou podemos não ir...é como desejar.
Pelo espelho percebeu que ela estava a sorrir.
- Não, não mude os seus planos, podemos ir até Belém. Mas a estas horas não vai estar tudo fechado?
- Eu conheço umas pessoas lá, acho que ainda consigo arranjar alguma coisa.
Ela acenou com a cabeça e recostou-se no banco.


No rio

Voltou para o carro a correr, orgulhoso de ter conseguido os bolos. Entrou no táxi e exibiu-os com ar de rapaz pequeno.
- Estou espantada, isto é que é ter conhecimentos.
A voz dela era diferente, menos triste, menos pesada e ele sentiu-se mais à vontade.
- Então podemos ir? Há um sitio aqui perto onde costumo ir e onde nos podemos sentar a comer enquanto olhamos as luzes da ponte.
- Estou a ver que faz isto muitas vezes.
- Faço, mas sempre sozinho.
Quando parou o carro saiu para lhe abrir a porta, mas ela antecipou-se. Olhou pela primeira vez bem para a sua cara e reparou que era mais nova do que julgava, era também muito bonita.
- É ali que eu me costumo sentar, mas se quiser podemos ir para outro lado.
- Não, por mim está bem.
Sentaram-se e durante uns minuto instalou-se um silêncio incomodativo. João queria dizer alguma coisa, mas não conseguia pensar em nada. Ela falou.
- Posso lhe fazer uma pergunta?
- Claro.
- Que carro é este que você guia?
- Porquê?
- Porque é o tipo de carro que esperava ver conduzido por alguém mais velho. Além disso está tão bem cuidado, parece ter sido pouco usado, mas desconfio que deve ter muitos quilómetros.
- Sim, tem muitos.
- E tem as cores antigas, tenho muita pena que as tenham mudado, acho que a cidade perdeu um pouco dela nessa altura.
- Eu também gostava mais das outras cores, acho que todos gostavam. Eu nunca tinha guiado nenhum destes.
- Mas não respondeu à minha pergunta, como é que ele veio parar às suas mãos?
João lembrou-se outra vez da história que lhe tinham contado.
- Não tenho assim uma justificação especial para isso, eu só faço o que me mandam, mas confesso que também estranhei quando o fui buscar.
Ficou pensativo.
- E sabe que mais? Agora que fala no assunto, acho que sem me dar conta tenho andado o dia todo a pensar nisto.
- Como assim?
- Isto vai parecer estranho, mas este carro...como é que hei-de explicar? É um carro que se sente, percebe? Não sei se estou a fazer algum sentido.
- Está, não sei bem como, mas acho que sei exactamente o que está a tentar dizer-me. Sabe de quem ele era? Devia ser de alguém que gostava muito dele.
- Sim, disseram-me que sim.
Ficaram uns minutos mais sem falar, ouvia-se o barulho da água perto deles e a noite começava a ficar mais fria.
- Sabe? Hoje foi um dia estranho, tenho andado quase sempre sozinho e começo a pensar se não terá sido por distracção minha que tive menos clientes.
- Pelo menos reparou em mim.
- Sim, em si reparei.
- Ainda bem que o fez.
Ela fez uma pausa.
- O meu dia também não foi muito normal, como já deve ter notado.
- Imagino que não...apetece-lhe falar sobre isso?
- Não, não me apetece. Para falar verdade já não me parece tão importante como há umas horas atrás.
Ela sorriu antes de continuar.
- Sabe? Gosto deste sitio, obrigado por me ter convidado para vir aqui.
- Não tem de agradecer, não é propriamente um lugar secreto.
- Eu sei, mas obrigado na mesma.
Os carros passavam ao longe na ponte e João pensava nas pessoas que seguiam dentro deles, pensava em todas aquelas vidas diferentes, vidas cheias de problemas, cheias de alegrias, pensava que se cruzava todos os dias com milhares de pessoas e que não sabia nada sobre elas. Então virou-se para ela e falou.
- Queria dizer-lhe uma coisa.
- Estou a ouvir.
- Eu também acho que foi bom ter parado, foi muito bom mesmo.
Ela olhou para ele de forma doce, aproximou-se e deu-lhe um beijo na face.
- E se fossemos dar uma volta pela cidade? Não tens mais sítios que me gostasses de mostrar?
Ele gostou que ela o tratasse por tu e respondeu.
- Tenho mais um ou dois de que gosto muito.
- E não me queres levar até lá?
- Sim, quero.
Dirigiram-se para o carro e João apressou-se para lhe abrir a porta da frente, desta vez conseguiu. Antes de entrar inspirou fundo para sentir o ar da noite e olhou para o rio e para o sitio onde tinham estado, tudo estava diferente.

segunda-feira, janeiro 02, 2006

Alberto, o Homem-Estátua

Alberto estava há duas horas parado e doíam-lhe os pés. Sabia que não devia ter comprado sapatos novos, mas não resistira. Andava a namorar a mesma montra há três semanas e achara que também tinha direito a comprar algo para ele. Agora amaldiçoava a hora em que tinha tomado a decisão de gastar tanto dinheiro nuns sapatos que o magoavam, especialmente quando tinha de estar tantas horas de pé. Era um homem-estátua, uma figura branca que fixava o infinito durante horas sem mexer um músculo, sem deixar perceber que debaixo da tinta que lhe cobria a cara e a roupa existia uma pessoa normal.

Naquela manhã de Janeiro tinha saído atrasado de casa e tinha pintado a cara no metro. À sua volta todos olhavam a transformação e riam enquanto as suas expressões iam ficando escondidas. Um senhor de fato cinzento tinha mesmo chegado a oferecer-lhe uma moeda que recusara. Só depois de estar todo vestido e imóvel podia aceitar alguma coisa, até lá era só alguém a caminho do trabalho, um trabalho invulgar.

O tempo passava devagar e pensava em algo que acontecera duas semanas antes. Como em todos os anos deixara de lado o fato pintado de branco por um dia e tinha se transformado noutra personagem, um músico que tocava músicas de Natal. As pessoas tinham sido generosas nas suas ofertas e mais uma vez tinha sido o dia do ano em que mais dinheiro tinha ganho, o que o levava sempre a pensar se não devia desistir do homem-estátua. Era um pensamento recorrente que abandonava sempre com o argumento de que esta personagem só funcionava durante um dia e que não teria o mesmo sucesso se aparecesse mais vezes.

Mas desta vez tinha acontecido algo diferente, algo que o tinha deixado pensativo e que desde então não lhe saía da cabeça. Tudo se passou ao fim do dia quando já pensava em ir para casa e reparou num rapaz que o observava durante mais tempo do que o normal. Alguém que parecia querer adivinhar o que lhe ia dentro da cabeça, que parecia querer saber quem era. Tentara não olhar muito para ele, mas não pôde deixar de se sentir observado e não conseguiu desligar-se da sensação de estarem a tentar entrar dentro da sua vida. Era tudo muito estranho pois todos os dias era observado por muitas pessoas e não percebia o que é que este rapaz tinha de diferente.

Passado algum tempo reparou que alguém falava com o rapaz, era uma rapariga de feições alegres que tinha a impressão de conhecer. Olhou melhor e confirmou que era a mesma rapariga que costumava passar por ele todos os dias ao fim da tarde. Conhecia bem a sua cara pois ela fazia questão de se pôr bem à frente dos seus olhos, para que ele não tivesse outra hipótese senão olhar também para os seus. Ela costumava sorrir, não sabia se para ver se ele se mexia ou se apenas por simpatia, ele retribuía o sorriso sem mexer os lábios.

Não se tinha passado mais nada, a rapariga e o rapaz tinham conversado um pouco enquanto olhavam para ele e tinham ido embora juntos. Mas não conseguia deixar de pensar que tinham estado a falar sobre ele, a certa altura tinha mesmo chegado a pensar ter ouvido o seu nome, mas não podia ser, pois não havia forma de o saberem. E desde esse dia que passava uma parte do dia a pensar no que tinha acontecido, a pensar se de alguma maneira não fazia parte da vida das pessoas que todos os dias paravam e o observavam. Pensava nas histórias que teriam sido imaginadas sobre ele e sobre a sua vida, em quantos teriam imaginado como é que ele era debaixo da máscara branca, tentando descobrir de quem se esconderia, de quem fugiria.

Alberto não podia deixar de sorrir por dentro enquanto pensava. Era uma pessoa perfeitamente normal que raramente sonhava e era engraçado pensar que os outros podiam sonhar com ele, ele que não era interessante, ele que era a mais banal das pessoas e que passava os dias parado a olhar sempre para o mesmo ponto.

De repente o seu coração começou a bater mais depressa e sentiu-se inundado por tantos sentimentos diferentes que lhe era difícil estar quieto. Era como se tivesse começado a viver depois de anos adormecido. Não percebia o que é que estava a acontecer e lutava para não se mexer, lutava para não ceder ao impulso de saltar de cima do banco onde estava e dançar ao som de uma música que só ele conseguia ouvir. Não resistiu.

Foi uma sensação estranha, como se estivesse a quebrar uma regra imposta por alguém que controlava a sua vida sem o saber. Uma maldição lançada por inveja ou ciúme que o tinha aprisionado durante anos, que não o tinha deixado viver da melhor forma, que não o tinha deixado ser feliz. E mexeu-se, mexeu-se devagar, despertando aos poucos de um sono longo. As pessoas pararam na rua e olharam para os seus movimentos cada vez mais rápidos, parecendo conseguir adivinhar que algo importante se estava a passar, como se soubessem que o homem-estátua não voltaria àquele local, como se tivessem a certeza que estavam a assistir à sua última actuação.

A caminho de casa esfregava as mãos na cara e tentava limpar a tinta branca que usara durante tanto tempo, demasiado tempo. Não sabia como é que pensamentos tão simples tinham provocado tudo o que estava a sentir e pensava que estava a começar algo que não sabia onde o ia levar, mas não ia resistir. Parou a observar a cidade e na sua cabeça tinha apenas uma imagem, a de um rapaz e de uma rapariga a passearem de mãos dadas...