terça-feira, novembro 27, 2007

Fado

Três mulheres esperavam encostadas à parede. Sentadas num banco de madeira esfregavam os pés, escondiam as meias cheias de buracos. Estavam todas vestidas de negro, como se o sentir da música a isso obrigasse. Rui não gostava de fado, só sentia falta do cheiro das velas, do vinho vermelho no copo, do sabor a cortiça enrolado na língua. Desde que chegara pouco comera, meia morcela assada, duas fatias de pão mal cozido, e azeitonas, muitas azeitonas. Prometeu a si próprio que só tinha de esperar mais uns minutos, a Lurdes ia cantar, e ela chorava sempre no fim.
O frio da rua recebeu-o, roubou-o ao calor da lareira, das braseiras escondidas debaixo das mesas. Desceu a Rua do Alecrim, contando as moedas perdidas nos bolsos, sonhando com o fim da noite, com Licor Beirão na tasca do Silva, antes do demorado adormecer.
Um homem. Estava um homem à beira da estrada, com metade dos sapatos fora do passeio. Um carro parou perto dele, julgando que queria atravessar. O homem sorriu, de forma gentil indicou a passagem, o caminho que nunca estivera tapado. O carro arrancou, apenas para logo travar bruscamente, por causa de um rapaz louro que passou a correr, que nunca chegou a perceber, que ali, num segundo, cabia toda a sua vida.
Rui olhou para o homem, estava vestido com um sobretudo preto, cabelo curto, mãos nuas, sapatos engraxados. Dirigiu-se a ele.
— O rapaz podia ter morrido — disse, sem coragem de atravessar a rua.
O homem olhou espantado.
— Vês-me criança? — perguntou em voz alta.
Rui não respondeu, ficou paralisado com o grito.
— Responde-me! Tu consegues ver-me? — gritou outra vez.
Rui aproximou-se. O medo desapareceu, no momento em que percebeu.
— Tu és o destino — disse com uma voz calma.
O homem sorriu, cresceu numa gargalhada, num riso aos soluços.
— Anda, vem comigo — disse, começando a andar.
Caminharam em silêncio durante mais de uma hora, numa noite sem lua, sem barulho de animais. Os homens do lixo sacudiam os contentores para os camiões, as ruas eram lavadas com mangueiras compridas, água suja que escorria para as sarjetas. Rui guardou as perguntas, esperou em nervos, numa ânsia disfarçada.
Perto do rio o homem parou e tirou-lhe o cigarro da boca.
— Isso vai acabar por te matar.
Rui olhou para o chão. Pisou a beata, esmagou-a de raiva.
— Calma, era só uma expressão — disse o homem a rir.
— Mas não está já escrito? — perguntou com medo.
O homem ficou calado. Rui não aguentou.
— Não percebo. Se tu... se está escrito, porque é que tens de intervir? O rapaz louro... ele devia ter... não era isso que estava... não era isso que devia ter acontecido?
O homem continuou calado.
— E eu? São os cigarros, o vinho? Não tenhas pena de mim, por favor, tudo menos pena. O destino é isso, não é? Tudo está escrito, páginas e páginas, com tudo o que aconteceu, com tudo o que vai acontecer.
O homem puxou-o com força. Agarrou-lhe a cara com as duas mãos.
— Rui, tu tens um dom, vês o que os outros não conseguem. Não estragues tudo, são demasiadas respostas.
Afastou-se, depois de um beijo, um toque de lábios, sem calor nem frio. Rui ficou a vê-lo a ir, resistindo ao chamar, agradecendo baixinho. O vento trouxe palavras, que mal conseguiu ouvir.
— São acertos criança, são só pequenos acertos.

segunda-feira, novembro 19, 2007

Tudo o que somos

Sentei-me à espera do metro. Passei as mãos pelo cabelo, apenas para respirar fundo, para lembrar a mim mesmo que estava triste. Ao meu lado estava uma senhora, uma mulher de cabelos brancos com as mãos aquecidas debaixo de um xaile. Passou um homem vestido com um casaco creme e atirou uma moeda para a frente dela. Olhei para o chão e vi um pano cinzento cheio de moedas, demasiadas moedas. Dei por mim a falar, antes de ganhar coragem para o fazer.
- Desculpe, isso não é seu, pois não?
Ela esboçou um sorriso muito leve. Respondeu de olhos nos meus.
- Já cá estava quando cheguei, mas não tinha moedas, deve ser do cabelo comprido.
Não percebi o que ela dizia.
- Como assim?
Ela repetiu com paciência.
- Disse que deve ser do cabelo comprido, as mulheres mais velhas não o usam comprido, muito menos sem o pintarem.
Achei que o silêncio falava por mim, dizia que eu percebia. Passaram duas raparigas por nós e cada uma delas deixou uma moeda. A senhora agradeceu, desejando sorte e saúde. Eu voltei às perguntas.
- Estão aí muitas moedas. Há quanto tempo está aqui?
Ela olhou para um relógio pequeno que tirou de um bolso.
- Há umas duas horas. É de facto muito dinheiro.
Tentei contar, ela interrompeu-me.
- E tirei de lá as notas, o metro a passar fazia-as voar.
Rebentei de ansiedade e falei em voz alta.
- Eu sou invisível, sabia?
Ela não se assustou e falou devagar.
- São como os bares dos filmes, não são?
Não percebi a pergunta, ela explicou antes de eu perguntar.
- Os transportes públicos, acho que são como os bares dos filmes, aqueles onde há sempre um conselho atrás do balcão.
Sorri para ela antes de continuar.
- Sinto-me invisível, sinto-me vazio, sem nada a que me agarrar. Às vezes acho que não existo para os outros, que acabo sempre sozinho.
Ela olhou para mim sem expressão. Tive medo.
- Não me vai dizer que devia dar graças por tudo o que tenho, pois não?
Ela não respondeu. Eu continuei.
- Não me vai dizer que as pessoas é que criam os problemas, vai?
Senti uma mão quente na minha.
- Não, não vou. Queres ouvir uma história?
Disse que sim. Ela inspirou antes de começar, eu percebi que não a podia interromper.

Contou-me que tinha nascido numa aldeia muito longe, a terra dos dias compridos, como lhe costumava chamar. Todos trabalhavam a terra, endureciam as mãos na enxada, vergavam as costas até não se conseguirem endireitar. Era gente pobre, gente de pouca conversa, que as palavras secavam a boca, mesmo a quem tinha pouco que dizer. Ela tinha nascido de destino já feito, entre casas de pedra escura, de barulhos de cascos no chão, de água sempre fria, de jantares em silêncio, de velas contadas para a noite, do adormecer no escuro, de orações repetidas, sem ter nada que pedir, enquanto o terço escorregava entre os seus dedos de miúda. Um dia, devia ter uns doze anos, chegou à aldeia um rapaz. Diziam que era filho de um padre, que o mandara para ali antes de se matar, por não aguentar a vergonha. O rapaz ficou a viver em casa de um prima do padre, que se passou a vestir sempre de negro, mas que não conseguia esconder o ouro, os fios brilhantes entrelaçados ao pescoço, uma riqueza que viria a amaldiçoar. Uma noite, pouco tempo depois do rapaz ter vindo para a aldeia, o pai dela entrou em casa a falar muito alto, tão alto que ela parou de rezar. Encostou-se à porta do quarto e ouviu-o a contar à mãe o que andavam a dizer sobre o rapaz, que ele não era normal, que tinha um pacto com o diabo, que os animais gemiam de medo quando passava, que as árvores perto do riacho estavam a secar, desde que ele começara a passar os dias deitado perto da água. Mas o pai tinha mais para contar, lembrava-se que tinha baixado a voz para ela não o ouvir, mas que não tinha obedecido ao medo e ouviu, o pai falou muito baixo, mas ela ouviu. Todos comentavam que o rapaz não tinha sombra, que não deixava pegadas atrás dele, mesmo quando caminhava na lama, que a sua voz não voltava com o eco, o seu sopro não fazia tremer a chama das velas, que o caminho dele não ficava marcado no mundo, como os espíritos que o terço afastava. Nunca tinha ouvido o pai tão preocupado, o que só compreendera mais tarde, pois aquele mundo fechado, aquele mundo que era igual desde sempre, tinha sido abalado, tinha sido perturbado no seu equilíbrio. No dia seguinte saiu de casa sem avisar, desafiando o que sabia ser a vontade do pai, correu em direcção ao riacho sem saber porque o fazia, sem conseguir deixar de o fazer. Ao chegar viu que as árvores estavam despidas de folhas, mas que pequenos rebentos verdes nasciam nos ramos. O rapaz estava sentado numa pedra. Ela chegou perto dele e tocou-lhe, para saber se era verdade, para saber se ele existia. Ele esperou que ela sentisse o calor, antes de lhe agarrar o braço com força, antes de a magoar sem maldade, de a ferir com cuidado. No dia seguinte ela fugiu, com a ajuda do choro escondido da mãe. Só voltou à aldeia dez anos depois, a tempo de ver o pai sorrir pela primeira vez na vida, antes do seu último suspiro. O rapaz tinha desaparecido pouco tempo depois dela ter fugido, ninguém sabia o que lhe tinha acontecido.

O metro apitou antes de fechar as portas e eu voltei a mim. A senhora agarrava o pulso direito com a mão esquerda. Eu precisei de ter a certeza, para acreditar.
- Posso ver?
Ela não respondeu. Puxou a manga da camisa para trás e mostrou-me o braço. Não tinha nenhuma marca, só o passar dos anos, escritos na pele branca e enrugada. Fiquei preso numa vertigem, tentando perceber o sentido.
- Mas o seu braço não está marcado.
Ela sorriu.
- Pois não, mas não há um dia que passe que não o sinta.

segunda-feira, novembro 12, 2007

Julieta

Julieta era uma rapariga muito magra, de braços finos e dedos compridos. Tinha olhos negros, muito negros, que quase desapareciam na cara. Todos achavam que sofria de alguma doença, de um mal que a iria consumir, dia após dia, ano após ano, até morrer num suspiro, num sopro que não se conseguiria ouvir. Ninguém sabia a verdade, Julieta, como outras raparigas de olhar triste, era uma fada. No Inverno costumava passear sozinha, pouco depois do sol nascer, corria por entre os arbustos de braços abertos, sem tocar as gotas presas nas folhas. No verão respirava o ar quente da tarde, tossia a terra seca, o pó que se levantava com o bater dos pés. De dia andava descalça, de pedra em pedra, sorrindo para o seu reflexo no rio. À noite calçava sapatos brilhantes, por cima de pequenas meias, com delicadas rendas nos tornozelos. Julieta esperava um homem, mesmo sendo ainda uma criança, porque as fadas nunca são mulheres. Um sonho que trouxera o castigo, de viver longe do bosque, sem nunca mais poder voltar. As fadas não crescem, mesmo as amaldiçoadas, as que sangram no corte de uma folha. São crianças para sempre, presas em corpos delicados, que mostram os primeiros sinais de amor, que querem explodir de sentir, proibidas de o ser. Julieta sabia que um dia iria morrer, fecharia os olhos distante, mas acreditava, sem se arrepender, no sonho de um homem, com as mãos nas dela. Por isso cantava, repetia em voz baixa, no medo de não conseguir.

vem meu amor
sente a minha mão
ajoelha-te num pedido
em palavras sem fim

vem meu amor
que a morte corre veloz
para me roubar a vida
que eu prometi guardar

vem meu amor
encosta o teu peito ao meu
sente o calor do sol
antes do frio da noite

sábado, novembro 03, 2007

A Rapariga Sem Nome

— Sua puta! — gritou o homem do casaco preto, ao mesmo tempo que acertava na cara da rapariga do cachecol verde e lilás. — Não pediste àqueles dois armados em hippies. Filhos da puta de meninos da mamã.
A rapariga dirigiu-se ao casal vestido com roupas largas e coloridas. Eles deram-lhe mais sorrisos do que dinheiro. Acho que tiveram pena. O homem continuou a praguejar.
— Merda, assim não consigo. — Largou a guitarra e levantou-se enquanto gritava. — Vou ver se como qualquer coisa. Vê lá se tomas conta das coisas. Puta distraída, andas sempre com os cornos noutro mundo.
Não resisti e aproximei-me.
— Porque é que deixas ele tratar-te assim? — perguntei eu, depois de lhe ter dado duas moedas, de lhe ter tocado nas mãos.
— Ele não é sempre assim, falta-lhe... ele ainda... ele ainda não comeu.
A resposta era envergonhada, mas ela nem por um segundo baixou a cabeça. Não estava a mentir, sabia o que eu sabia, o que todos sabiam.
— Não vejo o que vês — disse eu.
— Não tenhas pena de mim — disse ela de forma calma. — Foi ele o primeiro, o único que me ouviu, que escreveu para mim, as canções... as músicas que eu esperava desde sempre.
Lembro-me dos olhos cinzentos, daqueles que se misturam com todas as outras cores. A cara dela mostrava o pouco que tinha, magra, seca, queimada do sol. Mas não apagava a beleza, era impossível esconder, o que ela parecia determinada em esquecer. Os dedos da mão esquerda estavam quase castanhos, marcados por demasiados cigarros.
— Não os consegues fumar, pois não? — perguntei, mesmo sabendo a resposta.
Ela riu-se.
— Foda-se! Não consigo mesmo, alguns só lhes dou uma passa para os acender, essa merda faz mal aos pulmões.
— Tu também não... — Arrependi-me. — Desculpa, não tenho nada a ver com isso.
— Deixa, não há problema. Sim, não fumo, não bebo e não me drogo. — Inspirou o ar da noite antes de continuar, a noite que eu não tinha visto chegar. — Por outro lado vivo na rua, com um músico drogado, bêbado e que ainda por cima me bate, por isso não me dês já os parabéns.
Rebentámos numa gargalhada a dois, depois de um segundo de riso contido.
— Como é que ele se chama? — perguntei, estranhando a minha curiosidade.
— Fernando — respondeu ela pensativa, como quem tem algo mais a dizer. — Fernando, Fernando, senhor Fernando, que me tem presa num feitiço.
— E como é que ele te enfeitiçou?
Ela sorriu, e eu senti o coração apertado, por saber que nunca mais a ia ver.
— É engraçado — disse ela meio a rir.
— Então? — perguntei.
— Devia ter sido ao contrário. Ele ouviu-me um dia a cantar, sentada ali em cima no miradouro. Sabes onde é?
Eu acenei que sim, mentindo só para ela não parar a história.
— Esteve uma hora a ouvir-me escondido, pelo menos foi o que ele disse. Uns dias depois encontrou-me no mesmo sítio. Trazia com ele um monte de folhas todas amarrotadas, escritas a lápis com uma letra muito bonita. Contou-me que não dormia há dois dias, que só pensava em mim, que tinha escrito e composto sem parar, que eu o inspirava. Pediu-me que fosse dele, muito antes de me beijar.
Fiquei a olhar para ela, contendo as lágrimas, invejando a sorte deles.
— Deve ter sido especial — disse, sentindo o vento que passava por ela.
A rapariga sorriu de olhos cintilantes, antes de responder.
— Ainda é... pelo menos quando me consigo lembrar. — As lágrimas correram pelo rosto dela abaixo, riscando o pó e a rua, colados à sua pele. — Obrigada! Obrigada por teres perguntado.
Senti vontade de a levar dali, de a proteger, de lhe perguntar se tinha esperança. Não me atrevi. Ela percebeu.
— Queres ouvir-me cantar?
— E ele? — perguntei com medo que ela desistisse.
— Não te preocupes, ele vai demorar. — Pegou na guitarra e puxou-me pela mão. — Vou mostrar-te o miradouro, aquele que tu fingiste que conhecias.