domingo, fevereiro 19, 2006

Sombras

João crescera longe da grande cidade e habituara-se a olhar as coisas de outra maneira, a prestar atenção aos pormenores que os outros deixavam escapar.
Naquele dia chuvoso de Novembro caminhava pelas ruas desertas e olhava os edifícios antigos, sorria com os pequenos detalhes esquecidos e admirava a coragem de quem os tinha imaginado. Observava os monstros desenhados na pedra, sentinelas antigas que protegiam a cidade há centenas de anos e pensava porque é que os homens tinham deixado de os fazer. Gostava de passear debaixo das estátuas e imaginar que um dia uma delas podia soltar-se e cair com violência sobre ele. Era a sua forma de desafiar o destino, de lembrar a si próprio como era frágil e como tudo podia mudar num segundo.
Desceu uma rua ao acaso e percebeu que nunca ali tinha estado, todas as casas eram antigas e pareciam desabitadas. Reparou que todas as janelas estavam fechadas e pensou há quanto tempo estariam abandonadas. A rua não tinha saída e acabava num muro que escondia um jardim com árvores gigantes que deviam ser mais velhas que a cidade.
Parou junto a um portão enferrujado e espreitou por entre as grades, podia ver o que parecia ser um palácio escondido pela vegetação que crescia livremente e tapava as pedras que um dia tinham sido brancas. Junto ao portão uma estranha torre de cor escura guardava a entrada, parecia-se com os jazigos dos cemitérios e teve vontade de saber quem repousaria ali.
De repente ouviu um barulho metálico e o portão abriu-se um pouco, empurrado pelo seu próprio peso. Largou as grades e recuou dois passos, tinha vontade de entrar e descobrir o que se escondia por entre as árvores, mas hesitou um pouco. Apesar de toda a curiosidade estava com um pouco de medo e demorou alguns segundos antes de decidir entrar empurrando a estrutura metálica que estranhamente deslizou sem dificuldade.
Mal entrou ficou parado junto à torre que observara do lado de fora e pareceu-lhe menos assustadora, já não lhe parecia tanto um jazigo e depois de passar uma das mãos pela pedra gasta continuou por um caminho desenhado no chão que desaparecia pelo meio dos arbustos altos.
Depois de caminhar alguns metros pelo caminho apertado, encontrou uma clareira onde a luz rompia por entre as sombras das árvores. No meio daquele espaço aberto estava uma fonte que não deitava água e um banco onde alguém estava sentado. Era uma senhora de cabelo branco vestida com um vestido cinzento que levantou a cabeça quando o ouviu aproximar-se e falou com ele.
- Olá.
João pensou se não deveria ter entrado no jardim.
- Boa tarde. Desculpe a invasão, mas o portão estava aberto e eu não resisti a entrar.
- Não faz mal, tudo aqui está abandonado, por isso acho que já não pertence a ninguém.
- A senhora sabe de quem é este jardim? Ele pertence à casa que vemos da rua?
- Sim, o jardim pertence à casa, mas não sei dizer a quem pertence a casa, já passou tanto tempo.
- Tanto tempo? Desde o quê?
Ela fez um ar muito sério e endireitou-se no banco antes de continuar.
- Eu já vivi naquela casa, desde que nasci até aos meus dezoito anos. Já era uma casa antiga naquela altura e acho que ninguém sabe quem a construiu.
- A sério? Viveu mesmo aqui?
- Sim, brinquei neste mesmo jardim quando era criança.
- Sempre admirei estas casas antigas e fico a imaginar que histórias terão para contar.
A senhora fez um ar triste.
- A história deste sítio não é uma história alegre.
- Não é?
- Não, é uma história de amor, mas de um amor impossível, um amor que trouxe muito sofrimento a todos os que aqui viviam.
- Mas o que é que aconteceu?
- O mesmo que aconteceu tantas outras vezes em tantos outros sítios, um olhar mais demorado, um toque ligeiro de mãos, um beijo roubado debaixo destas árvores. Foi um amor que só devia ter acontecido anos mais tarde, mas que não conseguiu esperar.
João queria perguntar o óbvio, mas os olhos da velha senhora tinham-se enchido de lágrimas e não teve coragem de falar, ficou apenas sentado a seu lado a ouvi-la contar como há muito tempo haviam muitas flores por todo o jardim que depois eram levadas para a casa e enchiam de perfume os corredores compridos. Ela contou também sobre as festas que ali tinham acontecido e de como toda a rua era iluminada por velas que levavam até à entrada da casa. Nesses dias todos ficavam à janela a ver as pessoas a chegarem nos seus vestidos elegantes.
Quando finalmente decidiu que se devia ir embora, sentiu um enorme carinho pela senhora e sabia que nunca ia esquecer as histórias que ela lhe tinha contado.
- Bem, acho que vou andando. Obrigado por esta tarde e pelas histórias que me contou.
- Não tem que agradecer meu jovem, eu é que agradeço a paciência com esta velhota.
Ele sorriu envergonhado.
- E fica bem aqui? Daqui a pouco fica tarde e vai começar a escurecer.
- Obrigada pela preocupação, mas eu estou à espera da minha neta, ela vem sempre ter comigo ao fim da tarde.
Meteu-se outra vez por entre os arbustos e caminhou de regresso à rua. Na sua cabeça tinha ainda vivo tudo o que tinha ouvido e por momentos imaginou-se a viver muitos anos atrás.
Quando fechou ao portão e se preparou para regressar a casa sentiu que não estava só, olhou para trás e deu de caras com uma rapariga que o olhava com um ar zangado.
- Quem é você? O que estava a fazer aí dentro?
- Desculpe, eu reparei que o portão estava aberto e…foi mais forte que eu.
- Não o devia ter feito, não é um sítio público.
Rapidamente percebeu as semelhanças.
- Você deve ser a neta da senhora que encontrei lá dentro, eu…eu não lhe perguntei o nome, eu sou o João…passámos uma tarde muito agradável e ela está à sua espera, mais uma vez peço desculpa pela invasão.
Ela ficou calada e acenou apenas com a cabeça e começou a abrir o portão. Ele começou a subir a rua mas antes que ela entrasse parou e falou.
- Acha que posso voltar?
- Como?
- Se posso voltar aqui…não sei bem explicar, mas senti-me em casa e a sua avó é das pessoas mais encantadoras que já conheci.
Ela ficou um momento sem responder, mas depois sorriu e respondeu.
- Sim, pode, claro que pode, eu…eu peço desculpa por ter sido tão agressiva, mas tive um dia complicado e…e não estava à espera de encontrar alguém aqui.
- Não faz mal, eu percebo, bem…vou andando, pode ser que nos voltemos a encontrar aqui, adeus.
- Sim, pode ser que sim, adeus.
Luísa fechou o portão, afastou-se um pouco e quando olhou para o jazigo não conseguiu aguentar mais as lágrimas, começou a correr enquanto chorava e só parou quando chegou à clareira. Como sempre o banco estava vazio à sua espera, mas a recordação da sua avó ali sentada era mais forte e imaginava-a sempre a ler um livro, imaginava-a a contar-lhe histórias de príncipes e princesas enquanto ela a ouvia sentada no chão.
Tinha tido uma vida triste a avó Luísa, de quem tinha recebido o nome e também o feitio, segundo dizia a sua mãe. Gostava de lembrar-se dela ali sentada e raro era o dia que não visitava aquele sítio. Era a sua forma de não se despedir dela e de sentir que ela ainda estava presente.
Sentou-se no banco e recordou uma das últimas vezes que ali tinha estado com a avó, ela tinha lhe pedido para não esquecer aquele lugar, pois apesar de toda o sofrimento, era um sítio mágico. Luísa ria sempre com estas conversas da avó, mas daquela vez ela parecia estar a falar a sério. Repetiu em voz baixa as palavras que trocaram naquele dia.
- Não deixes nunca de vir aqui, promete-me isso.
- Eu prometo avó.
- E vive um grande amor, vive o que eu não consegui.

7 comentários:

laura disse...

gostei. gostei mesmo. um beijo. :)

kolm disse...

O Jardim é lindo!! Ideal para procurarmos um banco de pedra... sentarmo-nos e ouvirmos as histórias daqueles que já não existem, ou dos outros... os que bailam na nossa imaginação... histórias que não se esquecem... histórias como esta... :)

xein disse...

Lindo.... E grande... :P Gosto dessa tua capacidade de escrever textos enormes!! Eheheh!!!

Sente-te...

Kiau Liang disse...

eu as vezes so tenho de fechar os olhos, para logo sentir a sua mão enorme apertar a minha, enquanto passeamos pelas ruas da cidade....

kolm disse...

Claro que reconheci o teu jardim, e fico feliz que tenhas conseguido viajar nele desta maneira... porque é realmente lindo.... :)

nspfa disse...

Tive de ler duas vezes a parte em que ela encontra o banco vazio pa ver se era mesmo verdade! Uma história que vai simples mas muito bem enquadrada até ao ponto onde o encontro do jovem com a idosa se percebe imaginário! excelente, excelente mesmo. Claro que agora só dá pa ficar a desejar que a Luisa e o João se encontrem todas as tardes no mesmo banco...

Parabéns por mais esta inspirada história

Agripina Roxo disse...

gosto sempre de te ler à noite

hoje o vento anda de um lado apra o outro, sempre a namoriscar a minha janela e o pauzinho de incenso que o vê a correr e o provoca com o seu fumo adocicado :)
o vento é como o tempo e é estranho... tem uma pancada diabólica, mas é boa gente, como tu que nos adormeces com palavras que mais parecem árvores :)
sabias, que as tuas palavras parecem árvores?
mas hoje são árvores de inverno, trsites e nostálgicas... Não é uma história nada alegre a da avó Luísa e da sua neta, também Luísa, mas claro, Luísa é um nome sempre bonito ;)

dorme bem senhor rspiff
um beijo enorme *