segunda-feira, outubro 29, 2007

Tokyo Moon

Num segundo andei para trás no tempo. O medo de sair à rua. A noite só se tornou perigosa por causa de tanto a repetir, mas o tempo disfarçou a verdade, de que nunca iria esquecer. Uma lâmina dançou à minha frente, incomodando-me menos que o cheiro de dentes podres, de riso inventado. Abri a camisa, arranquei botões que caíram ao chão, um de cada vez. Enchi o peito, mostrei o coração em provocação, beijei o ar entre nós. Enlouqueci, por um breve momento enlouqueci. No dia seguinte estava dentro de um avião. Levei mais de um dia a chegar, sem a bênção do sono, contando estrelas através da janela. Desembarquei quase do outro lado do mundo, onde o sol devia nascer, mas só me lembro da chuva. Demorei uma hora para sair do aeroporto, ébrio de sensações novas, de aromas irreconhecíveis, da falta das palavras, substituídas por brilhos sempre presentes. Por várias vezes ajoelhei-me em tonturas, vertigens que me obrigaram a tocar o chão, a sentir o calor das pedras alisadas. A porta giratória apareceu à minha frente, oferecendo uma oportunidade de fuga. Primeiro hesitei, temendo ficar preso, depois saí para a rua, respirei fundo e encontrei a noite. Nada me podia ter preparado. O barulho era ensurdecedor, as luzes lutavam para me cegar, milhões de luzes, de todas as cores. Olhei para o céu, um pequeno pedaço de céu que conseguia ver entre os arranha-céus. Então vi-a, despida das nuvens, escondida atrás de um guindaste. Uma lua perfeita, que me tinha seguido. Corri, atirei-me para a frente de carros que se desviavam sem um protesto, larguei as malas e comecei a rir como um miúdo pequeno. Gritei e imitei barulhos de animais. Era invisível para os estranhos à minha volta. Levantei os braços para a chuva, não havia sentido, só repetia o que vira num filme. O medo estava lá, nunca tinha deixado de estar. Mas a lua era a mesma, o que me trazia conforto. Demoraram dois dias a encontrar-me, no meio do lixo, de comida que não experimentei. A água era demasiado quente, o cheiro a incenso fez-me vomitar. Não compreendi os rituais, como se houvesse algo que não podia levar de volta, como se me obrigassem a ver, a ordem que não podia ser desfeita. Eu não lhes podia contar, que nos libertamos sem saber como. Viajei em silêncio, sem estar sozinho.

quarta-feira, outubro 17, 2007

A Casa Abandonada

Estás sentada num sofá feito de um verde esquecido, tapado por uma manta de cores esbatidas, que os meus olhos ainda vêem garridas. Deixo o tempo passar antes de falar.
— Tenho tão pouco para te dar.
Olhas para mim a chorar. As palavras chegam antes de um beijo.
— E ainda assim é tanto.

No Jardim

— Anda Rui! Despacha-te! Deve estar quase alguém a passar.
Eu olhava para o muro e hesitava, estava coberto de trepadeiras, armadilhas que me podiam fazer escorregar. Foste sempre tu que indicaste o caminho, que desafiaste o medo. Pisei o muro apenas durante meio segundo, num equilíbrio que não podia manter, sem perceber a escolha, antes de decidir saltar. Tu recebeste-me a sorrir.
— Achei que ias desistir — disseste, escondendo o riso. — Pensei que caías para o outro lado.
— Achas que ninguém vai aparecer? — perguntei.
— Não sejas tonto, a casa está abandonada há anos. Só tinha medo que nos vissem a entrar.
— Desculpa — disse envergonhado. — Precisei de ganhar coragem.
Já não te ouvi a dizer que não fazia mal, enquanto corrias por entre as árvores.
— Espera por mim! — gritei.
Estava muito calor e a roupa colava-se ao corpo, num prazer de sentir, de cheirar o mundo à nossa volta. Caminhei atrás de ti de olhos fechados, com as mãos à minha frente, para afastar os ramos da cara. O Sol passava entre as folhas e as sombras tremiam por cima de mim. Imaginei que estava num comboio, que viajava de cabelo ao vento, que esticava os braços num voo fingido. Quase que conseguia sentir o cheiro a queimado, era um comboio antigo, que se alimentava de fogo, e respirava um fumo espesso. Mais uma vez chamaste-me, trouxeste-me até ao teu mundo, que se confundia com o meu.
— Anda ver, descobri um sítio incrível.
Ainda tentei perguntar, o que os teus gritos responderam, enquanto rebolavas por um monte abaixo. Deitei-me e rebolei também sobre a erva alta, perdendo a conta às voltas, rindo sem pensar em mais nada, até a barriga doer, até ficar enjoado, tonto de tanto repetir. Sentámo-nos sem forças, o Sol brilhava atrás de um telhado, brincava às escondidas comigo, mostrando-se sempre só um pouco, mesmo antes de desaparecer. Senti o teu cheiro, que não sabia existir, senti a tua mão na minha, e os teus olhos nos meus, a minha boca na tua, os lábios juntos, as cócegas no pescoço, a roupa amarrotada, um sino de uma igreja ao longe, um último raio de Sol, no meio dos teus cabelos.
— Diz-me! — disse, sem me afastar. — Como é que vai ser quando formos crescidos?
Os teus olhos brilharam.
— Rui, nós nunca vamos crescer.