quinta-feira, agosto 30, 2007

O Livro Perdido

Desde sempre que existem, não os vemos porque não sabemos como, mas eles caminham na nossa sombra, escolhendo o chão que não pisamos, ocupando o espaço vazio entre nós. Os mais pequenos têm a altura de um arbusto de Fevereiro, nem um cabelo a mais, uma obrigação que não questionam, que os faz curvar, e os afasta do céu. Os maiores tocam as árvores, as folhas mais baixas de um pinheiro com seis anos, esticando-se em dor, longe da terra e do cheiro da erva. A uns chamaram-lhes elfos, duendes, gnomos, seres antigos que conheciam feitiços secretos. Mas eles só guardam o que esquecemos, todas as ideias que temos, mas que não sabemos recordar. Os outros foram trolls, ogres, monstros terríveis, em histórias de assustar. Mas eles só guardam o que perdemos, todas as coisas que pensamos serem nossas, mas que desistimos de procurar. Existem duas salas, a primeira está cheia de livros, folhas antigas escritas à mão, letras desenhadas muito devagar, palavras que se juntam uma última vez, depois da certeza, de que nunca mais serão lembradas. A segunda sala está cheia de caixas, arrumadas por gigantes que não sabem ler nem escrever, que as separam por sons, barulhos que só eles conseguem ouvir. Esta é a história de um livro perdido.


As oficinas

A espera era a melhor parte, antes de tudo começar a ser esquecido, de ser escondido para sempre. O pequeno ser aguardava as palavras, preparava-se para decorar o que não seria repetido, estalava os dedos antes de começar a escrever. Atrás dele outros não fingiam entusiasmo, as ideias eram quase sempre pobres, pequenos recados sem importância, que escreviam sem prazer, mas de forma cuidada. O pequeno ser era o único que sonhava, que acreditava que nem tudo estava escrito no mundo dos homens, que ainda era possível, um último pensamento inspirado, por alguma razão esquecido, que ele tivesse a missão de guardar.

O gigante olhava o monte à sua frente, um trabalho que sabia não ter fim. Agarrou num objecto brilhante e abanou-o junto ao ouvido, fingindo que decidia, antes de o atirar para dentro de uma caixa. Os outros desprezavam-no, invejando a sua sorte, de olhos feitos de esperança, de que um dia iria achar um tesouro, mesmo que há mais de dois séculos isso não acontecesse. Mas o gigante não procurava o que todos pensavam, num desejo que escondia, dia após dia, esperando que ninguém descobrisse.

De repente as palavras pararam, os objectos deixaram de cair, o silêncio instalou-se de uma forma desconhecida. Era um livro, só podia ser um livro. Os dois sabiam, os dois conheciam a lenda, de uma disputa que durara cem anos, para saber quem guardaria um livro, uma história perfeita encadernada a ouro, uma oferta a um Rei louco, que a levara consigo na morte. Os dois esperaram pela decisão, jurando que outros cem anos passavam. Mas desta vez a capa era de cabedal velho. O gigante controlou a dor.


Um encontro raro

O pequeno ser abriu o livro devagar, quase esquecera o toque, habituado às palavras que não eram escritas. Os livros eram quase sempre para os gigantes, sem nada que os distinguisse, contando histórias banais, tantas vezes repetidas, que nunca eram esquecidas. Mas sentia que aquele era especial, pois tinha parado as oficinas, numa dúvida pouco comum, em quem sabia escolher. A primeira surpresa não o desanimou, pois a capa era velha, mas as folhas ainda eram brancas, uma mescla improvável, que tentou não perceber. O segundo olhar trouxe o desconforto, ao mesmo tempo que a porta abanou, no mesmo momento que o livro se fechou. O bater era demasiado forte, obrigando-o a olhar para cima, antes mesmo de abrir. A voz era doce.
— O livro está perdido — disse o gigante sem olhar para ele.
Não havia palavras a mais, os dois só argumentariam por cortesia.
— A escolha foi feita — respondeu calmamente.
O gigante olhou para baixo.
— Não é antigo, pois não?
O pequeno ser respondeu em pose orgulhosa, que não sabia imitar.
— Vocês não deviam vir até aqui.
O gigante sorriu.
— Não é proibido, é errado, mas não é proibido. — Fez uma pausa antes de continuar. — Não é antigo, pois não?
Nenhum dos dois sabia mentir.
— Não, para nós não é antigo — respondeu o ser que tinha a altura de um arbusto. — Como podes saber?
— Porque estive à espera — disse aquele que trazia agulhas de pinheiro presas no cabelo.
— Eu também — disse o pequeno ser.


Uma confiança rara

O convite foi feito, cumprindo as regras que nunca tinham percebido, por não ser possível. O gigante sentou-se no chão, desafiando os seus. O livro foi aberto entre os dois, as páginas viradas à vez, passando pelo que sabiam não ser importante, sentindo a ansiedade do descobrir. Mais de vinte páginas antes do fim, uma, duas, três páginas atrás, seis linhas escritas à mão, no meio do que não tinha sentido, seis linhas que não podiam ter adivinhado, que trouxeram lágrimas contidas, num choro que não sabiam. O desafio chegou sem estranheza.
— Também tens de o copiar? — perguntou aquele que estava sentado.
— Sim, os livros também são copiados — respondeu aquele que teimava em respeitar a altura, o tamanho do segundo mês dos homens. — As cópias são guardadas na primeira sala, os originais são queimados no terceiro forno.
— Este não será.
O pequeno ser não disse nada.


Uma viagem rara

A estrada era quase um mito, poucas vezes falada, feita de perigos escondidos, mas bem desenhada. Pequenas ervas marcavam o caminho, de cada um dos lados da terra batida, sem se atreverem, conservando as curvas do trilho mágico, da única passagem para o outro mundo. Não existiam árvores perto da estrada, como se os bosques tivessem medo, como se tudo pudesse desaparecer. O pequeno ser tentava não ouvir o vento, que trazia promessas difíceis, de clareiras ao Sol. Falou para conseguir.
— Pensas nele?
— Penso no que escreveu — disse o gigante. — Com tão poucas palavras...
— Vocês não sabem ler — disse o mais pequeno dos dois.
— Vocês também estão proibidos de sonhar — disse aquele que tinha de esperar no andar, respeitando as diferenças.
O pequeno ser levantou um pouco a cabeça, quebrando pela primeira vez o juramento. Antes de responder sentiu que podia sorrir, sabia que o outro fingiria não ver.
— Sempre acreditei no sonho, de que algo podia surgir do escuro — disse, voltando aos poucos ao seu andar, feliz pela breve sensação de ser livre. — Só não percebo como se pode esquecer.
— O livro está perdido — disse o gigante quase em sussurro.
O pequeno ser não disse nada. Não tinha a certeza.

A noite caiu, sem estrelas, sem barulhos de animais. Estavam perto da encruzilhada, onde havia uma pedra que tinha sido partida em dez partes iguais, onde um coração tinha sido enterrado. As pedras marcavam diferentes caminhos, que não eram difíceis de escolher, para quem esperara durante tanto tempo. Seguiram pelo terceiro, contando a partir da segunda árvore, no sentido do vento. Faltava pouco, os dois sabiam que faltava pouco.


O menino assustado

O homem estava sentado numa cadeira que baloiçava. Parecia um miúdo, mesmo depois de muitos anos. A pele tinha rugas largas, o cabelo era cinzento, sobre um castanho que desaparecia todos os dias, mas as mãos eram pequenas, como se tivessem desejado não crescer. O pequeno ser reconheceu uma pequena corcunda, vencida mas não esquecida, de quem suportara o peso do mundo, antes de aprender a sentir. Os dois avançaram em silêncio, sabendo que ele não os podia ver, mas esperando pacientemente por um fechar de olhos, um ligeiro dormitar, que recebesse o livro que seguravam. Uma voz afastou os pássaros das árvores, uma mão fechou-se sobre a capa de cabedal. Já não era possível voltar.
— Rui! Rui! Estás aí? Acho que vai chover, senti o vento forte nas janelas.
O homem não respondeu. Uma mulher aproximou-se, pisando a madeira descalça, como fazia quando era ainda uma rapariga.
— Rui, o que se passa? Porque não respondes?
Sentou-se no chão à frente dele, depois de perceber as lágrimas.
Ele abriu o livro, começando a contar as páginas pelo fim. Depois leu devagar, antes de começar a falar.
— Fui eu que escrevi estas linhas — disse, lutando contra o soluçar.
Ela sorriu antes de responder.
— Eu sei Rui.
— Como? — perguntou ele.
— Porque as repetes muitas vezes, quando adormeço no teu colo.
O homem transformou-se num rapaz, num menino pequeno que não se importava de chorar. A mulher era também uma menina, que lhe segurava a mão com força.
— Porque não guardaste o livro? — perguntou ela, ao mesmo tempo que percebeu.
Ele levantou-se e puxou-a para cima.
— Anda, vamos para dentro.
— E o livro?
— Tenho de o perder outra vez — disse a sorrir.


O princípio

O pequeno ser ficou a vê-los entrar dentro da casa de madeira. Falou em poucas palavras, não por cortesia, apenas porque não precisava.
— Não estava esquecido.
Sentiu o respirar por cima dele.
— Não, não estava esquecido.

quarta-feira, agosto 01, 2007

Lua

A rapariga tinha um lenço feito de vermelho e branco. Atado atrás da cabeça, cobrindo-lhe quase todo o cabelo, escondia desenhos de luas nas dobras do tecido. A pele era escura, os olhos à noite eram pretos, de manhã acordavam azuis, um segredo revelado no meio do riso, um desafio que reflectia a luz de uma fogueira. Uma pedra brilhava no colo, uma jóia de lados iguais, que era impossível contar. Uma pergunta fez-me tremer, quando a mão já não era minha.
- Queres saber o que diz?
A voz traiu-me, no que não sabia.
- Quem é que te disse que eu quero saber o futuro?
Não suportei o olhar, que chegou antes das palavras.
- Eu não falei no futuro, eu não sei nada do futuro. Mas posso dizer quem és... achas que tens coragem?
A pedra rodou e mostrou o quarto crescente. Esqueci-me de mim. Gritei.
- Não te mexas! Por favor não te mexas, tens a lua presa dentro da tua pedra. Não é um reflexo, ela está mesmo lá dentro. Eu... eu não acredito...
Ela ficou quieta. Estava assustada, por saber, por não estar preparada. Mas não precisou de olhar para ver, o que ouvira em histórias antigas, o que era proibido ler. Fechou a minha mão antes de falar.
- Desculpa mas não posso, não tenho nada para te dizer.
Afastou-se meio passo, mas a lua continuava a brilhar. Eu queria ouvir.
- E fico sem saber quem sou?
Ela sorriu, ela apenas sorriu, segurando as lágrimas, apertando os lábios. Eu fechei os olhos no perceber. Aproximei-me. Descobri o seu cheiro.
- Porquê o medo?
- Não é medo, eu não tenho medo, mas...
Uma madeixa de cabelo soltou-se sobre a cara dela. Era áspero. Eu adivinhava os seus pensamentos.
- Mas não nos ensinam a acreditar.
- Não... não ensinam.
A lua escondeu-se entre nós.