domingo, janeiro 21, 2007

Em Verso

O coração de João batia mais forte, como se fosse rebentar, um fim longe de casa, numa estúpida viagem, que não queria ter feito.
- Não aguento, não posso mais, é que neste momento, para mim é demais.
Ana sentou-se nas escadas a rir, da rima e da sua sorte. João tinha decidido só falar em verso, depois de um desgosto de amor. Mas para quem não nascera poeta, a decisão levara ao silêncio, a palavras estranhas, de sentidos trocados. O riso fê-la esquecer a tortura, de seis meses contados, antes de começar a falar.
- Não desistes pois não? Homem, ela foi embora, não volta mais, percebes? E tu não podes continuar com este disparate, vais afastar todos.
Ele continuava a respirar com dificuldade, sem responder. Ana levantou-se, de cara zangada.
- Chega, eu não alinho mais nisto, vou-me embora! Podes ir pensando, podes ir decorando, palavras que rimem com “sozinho”. Eu continuo o meu caminho.
Desceu as escadas, dois degraus de cada vez, numa pressa que não queria esconder. João ficou a olhar para ela, até ser apenas um pequeno ponto, que se misturou com o rio de gente, que passava numa rua abaixo. Falou, porque ninguém o podia ouvir.
- Desculpa, eu também estou farto disto.
Pela primeira vez em meses não rimou, sentindo um vazio, pelo que já não fazia sentido. Olhou para cima e viu uma varanda cheia de flores, uma cortina branca que esvoaçava, ao som de um piano, de notas tristes repetidas. Não conseguiu reprimir um grito, um chamar por alguém, que não sabia se existia.
- Olá! Olá! Quem está aí a tocar?
A música parou e a cortina caiu de forma suave, pela falta de vento. Um senhor muito velho mostrou-se à tarde, vestido com uma espécie de roupão, muito gasto nas mangas. O cabelo tinha sido louro, mas faltava demasiado, para ser possível perceber, porque é que o penteava, com cuidados de cavalheiro. João ficou à espera que ele falasse, que lhe respondesse, mas ele mantinha os lábios juntos, segurando um cigarro, que voltara a acender. João não aguentou.
- Senhor! Boa tarde, eu... era o senhor que estava a tocar piano?
O velho tossiu antes de responder.
- Sim, era eu. Era você que estava aos gritos? É difícil tocar, é difícil a ouvir gritar.
- Sim, era eu e...
Ana já devia estar no hotel.
- Era eu e uma amiga. Ela foi-se embora, eu... eu tenho estado insuportável.
O velho tossiu outra vez, enquanto sorria.
- Suba! É o primeiro esquerdo, a porta do prédio está aberta, como se alguém fosse entrar.
Não percebeu a frase do homem, mas a porta estava mesmo aberta, uma porta antiga, que já tinha sido verde. As escadas eram de madeira, de uma cor diferente do corrimão, de verniz a estalar. O cheiro era quase insuportável, por ser tão forte, de recordações, tantas vezes vividas, para sempre guardadas. A tosse veio antes da voz.
- Sentiu, não sentiu?
Não sabia do que ele falava, o cheiro roubava-lhe a razão.
- Desculpe, não percebo.
O resto do cigarro ardeu todo de uma só vez.
- Claro que percebe.
Hesitou na certeza, antes de responder.
- É... é o cheiro, o pó no ar, o toque da madeira, eles contam...
O velho sorriu de orelha a orelha.
- Vidas, eles contam vidas. Sabe porque é que é assim? Eu tenho uma teoria.
- Uma teoria?
- Sim! É da madeira, ela absorve tudo.
João fechou os olhos, para sentir mais uma vez, antes de entrar no apartamento. Ele tinha razão.
A casa estava demasiado cheia, como se cada canto tivesse esperado, por um candeeiro em forma de mulher, por um relógio de marfim, uma máscara africana, de olhos assustadores. Percebeu que podia ficar ali dias inteiros, sem precisar que lhe contassem, por preferir imaginar, viagens sem fim.
- Tem aqui muitas histórias.
Duas mãos envelhecidas acordaram o piano, notas tocadas quase em silêncio.
- Não se ofenda por não olhar para si, a música também nos aproxima, também nos faz compreender, perceber os outros.
- A música?
O velho sorriu, antes de responder, numa frase demorada, quase cantada.
- Sim, a música pode ser melhor que as palavras, quase tão perfeita como o toque. Meu rapaz, se conseguir conhecer alguém desta forma, se ela também...
João percebeu o que o homem fazia, depois de estranhar. Ele falava ao mesmo tempo que a música, ao mesmo ritmo que os dedos tocavam no piano, num entoar que só fazia sentido, depois de se acreditar. E juraria para sempre, que o fazia a chorar.
- Eu fazia versos, eu só falava em verso, rimas difíceis, que me deixavam preso, no que não conseguia dizer.
A música parou e o homem virou-se para ele. Parecia tão velho, e ao mesmo tempo tão limpo, tão doce, que lhe apeteceu abraça-lo, num choro que recusava, que esquecia, há demasiado tempo. Sentiu conforto na voz dele, mesmo no meio do silêncio.
- Rapaz, temos muito que falar.
Lembrou-se de casa, e de chá com canela, em tardes de Inverno.

domingo, janeiro 14, 2007

O Espelho

Passo frente a um espelho, daqueles que esquecemos na parede, gastos nos cantos. Vejo uma cara envelhecida, pelo passar das horas, minutos de que perdi a conta. Estou despido, pêlos brancos no peito, mostram o caminho fechado, de volta ao passado. Fecho os olhos, até ver os teus.

Combinámos que serias tu a escolher o sítio, mas agora duvido, por estar perdido. O teu carro ao longe, demasiado lento, aumenta a minha ansiedade, em saber o que queres de mim, depois de quase te conseguir esquecer. A porta abre-se devagar, o convite confunde-se com a dúvida, e fico junto ao muro, por não conseguir andar. Espero por ti. Pela voz que nunca deixei de ouvir.
- Olá.
Desisto das primeiras palavras, todas inúteis, desajustadas do momento. Fico em silêncio, para não errar, para não começar a perder, mais do que já sinto.
- Não dizes nada?
Sou obrigado a arriscar.
- Estás bonita, estás sempre bonita.
- Obrigado.
Hesitas, mas sabes que tens de continuar, foste tu que me chamaste.
- Rui, eu... deves estar a pensar porque é que pedi para vires aqui.
Respondo irritado, mas só eu é que percebo.
- Não, na verdade não estou, só não consegui dizer que não. Mas juro Leonor, juro que se me disseres, neste momento, daqui a um minuto, se me disseres que te vais embora, que desistes de falar, juro que não faço nenhuma pergunta, que não olho para trás.
A tua pele muda de cor, por espanto e dor, por saberes que falo a sério, mesmo no meio do medo, que me faz tremer a voz.
- Não, eu não vou mudar de ideias, não te chamei por impulso, mas por precisar de te dizer, por ter de confessar, o que tu sempre soubeste, o que...
Interrompo-te, no meio do que quero ouvir.
- Não, mil vezes não! Não vais dizer que me amas, mas que não podes ficar, ou que não queres ficar.
- Mas...
Não te deixo continuar, mais uma vez.
- Não, já te disse que não, não quero saber.
- Mas eu sofro...
Rebento em choro, de vontade de te abraçar.
- Sofres? Tu sofres? E eu Leonor, como se chama o que eu sinto?
Não respondes, sei que não podes responder.
- Cinco anos! Cinco anos Leonor! Sem uma palavra tua, sem ao menos fingires, sem pelo menos me enganares, numa amizade sem sentido, que me fizesse esquecer, a solidão de todas as manhãs, de todos os dias, contados um a um.
Olho para ti, o mais tarde que consigo. Na tua cara um reflexo, do mar ao longe, e uma lágrima fica segura, como se o tempo parasse, antes de cair. Desisto, de não te deixar falar.
- Rui, eu não tenho mais nada para dizer, a não ser o que não queres ouvir, dizer que te amo, antes de morrer, antes que daqui a trinta anos, acorde em sobressalto, por palavras que fechei em mim, sem as poder gritar.
A dor é insuportável, de te querer abraçar, mas continuo a ouvir.
- E sim, tens toda a razão, de me julgar, de não me perdoar, mas ouve-me por favor, porque nunca mais nos vamos ver, deixa-me, uma vez na vida, a última vez na vida, dizer o que sinto, e chorar contigo. Eu amo-te, eu amo-te!
Falo de forma fria, que sabes não sentir.
- E o que é que queres que eu diga? Que fico feliz em saber, que te desejo boa sorte, uma despedida, de sorriso fingido, de não ser quem sou...
Não consigo continuar, e espero pelas tuas palavras.
- Não, eu só queria... Rui... eu só queria...
Choro como nunca chorei na vida, como não chorei, na outra despedida, de mentiras repetidas, em que não acreditei. E então desisto, para te abraçar, num cheiro que conheço, que reconheço, para não esquecer.
- Amo-te tanto Leonor, amo-te tanto...
A tarde desaparece, numa noite fria. O abraço dura para sempre.

Sinto o frio do chão, que me traz de volta a mim, ao meu reflexo no espelho, que me olha a sorrir. Lembro-me de nós, de músicas, palavras, risos, cigarros de mão em mão, da roupa molhada, da noite, da água fria, lembro-me do vento, do teu cabelo a voar, de lábios a brilhar, depois do pôr-do-sol, de sapatos coloridos, mãos dadas, olhos fechados, de correr, beijos, sonhos, sussurros, em versos, de sentir. Fecho os olhos, e deixo o corpo estremecer, como no refrão de uma música, que estou sempre a ouvir, quando penso em ti.