quarta-feira, agosto 31, 2005

Outro mundo

De volta ao mundo dos vivos pergunto o que se terá passado na minha ausência, pergunto onde estarão todos, agora que acordo deste sono que me dizem ter durado dois anos. Mas não foram anos de vazio, foram anos cheios de sonhos que agora não consigo encaixar no mundo real.

Passo os dias a escrever e a tentar separar o que se passou enquanto sonhava e as recordações do meu passado. Não é fácil e é sempre com tristeza que ouço alguém dizer que algo também não aconteceu, que foi tudo invenção da minha mente, um sonho demasiado longo e demasiado real.

Choro, choro porque queria continuar a sonhar, choro porque com o passar dos dias vou descobrindo que sou uma pessoa seca e desinteressante, descubro que todas as coisas boas que me aconteceram até hoje foram durante o tempo em que estive a dormir. Dois anos que pareceram cem e que me deixaram longe de mim próprio.

Abro a janela e olho para o céu azul, ainda me custa suportar a luz com os olhos que estiveram tanto tempo fechados e que viram outro mundo que me dizem não existir. E apago assim uma vida inteira? Apago uma vida que para mim foi mais real que esta que agora me é devolvida?

Recuso esquecer-me de mim e deito-me na cama, fecho os olhos e tento dormir para sempre...

sexta-feira, agosto 19, 2005

Tu

O sol desce devagar e eu penso em ti, penso se te lembras de mim nesta hora que sempre foi nossa, a hora em que olhávamos a cidade juntos e de mãos dadas caminhávamos para casa. Hoje estou sozinho e tenho saudades desse tempo em que éramos um só, quando nos misturávamos ao fim da tarde no mesmo corpo cansado mas feliz, quando sentíamos o amor que nos fazia sorrir, quando a noite teimava em não aparecer.

Agora consigo ver as estrelas que começam a brilhar e sei que em breve a escuridão vai descer sobre mim e terei de enfrentar mais uma vez a minha solidão. Tento agarrar os últimos raios de sol, tento que me aqueçam para poder conseguir passar a noite sem gritar por ti, sem sentir que nada mais importa.

E de repente estou debaixo do céu negro que brilha por cima dos meus olhos, que me chama e me diz para não ter medo, que me diz que no meio de todos aqueles pontos brilhantes também está o meu caminho, o meu futuro, o meu destino. Ouço uma música ao longe e respiro fundo, tento lembrar-me da tua cara, tento saber se exististe mesmo ou se foste apenas um sonho que me acompanhou toda a vida.

Chamo e ninguém responde mas sei que não estou sozinho, tenho o sol, tenho as estrelas, tenho-te a ti...

sexta-feira, agosto 12, 2005

Um rapaz normal

Era uma vez um rapaz que estava sempre a sorrir. Os seus pais não achavam esta situação normal e desde muito cedo que viviam preocupados com este comportamento que começara ainda o rapaz era bebé. Tinham a certeza que o sorriso que viam na cara do pequeno era ainda o primeiro que esboçara, um sorriso sem fim que o acompanhava durante todas as horas do dia e mesmo da noite, parecia que a sua pequena boca tinha sempre uma pequena expressão, algo que deixava perceber o sorriso sempre presente.

O rapaz foi crescendo e ninguém conseguia explicar a razão para tal fenómeno, desesperados os pais levaram o rapaz a todos os médicos, que ficavam espantados com o que viam, mas não encontravam nada de mal no rapaz. E ele continuava a sorrir. Era um sorriso aberto e bonito que por vezes se transformava num riso que enchia a casa e contagiava todos à sua volta com excepção dos pais, estes viviam cada vez mais em sofrimento e passavam os dias a olhar para aquela cara sorridente à espera que uma pequena queda ou outro percalço o fizesse perder a máscara alegre que já não suportavam. Mas mesmo nas alturas em que a dor estava presente o miúdo continuava a sorrir, parecia ser a única pessoa no mundo que conseguia chorar sem perder o sorriso.

Um dia ouviram falar num médico muito famoso, especialista no desenvolvimento de crianças e dirigiram-se à cidade onde este tinha o seu consultório para mais uma tentativa de cura para o seu filho. Sentiam sempre que podia ser este o médico que iria descobrir porque é que o rapaz não parava de sorrir, desejavam ver uma cara sem aquele maldito sorriso que não achavam normal.

Entraram numa sala decorada de forma alegre e observaram o médico à sua frente. Era um homem muito velho, com uma longa barba branca e umas mãos muito compridas, uma personagem algo bizarra que não inspirava muita confiança e que ainda por cima os recebeu com um enorme sorriso. Se não fosse pela educação teriam voltado para trás no momento em que olharam para o médico, tal tinha sido a má impressão que lhes tinha causado aquela figura sorridente.

Explicaram o problema ao médico que continuava a olhar para eles sem deixar de sorrir, parecia que achava piada a toda aquela situação, embora continuasse a acenar com a cabeça como que dizendo que estava a ouvir com atenção. Pediu para observar o rapaz e levou-o para uma sala ao lado onde não podiam ver o que estava a acontecer, ouviam apenas o médico a fazer algumas perguntas, que eram respondidas com a característica voz alegre do seu filho.

Voltaram para junto deles passado poucos minutos e o médico já não sorria, apresentando uma expressão grave e pensativa. Perguntaram com ansiedade o que é que ele achava, se havia uma cura para aquele problema. O médico olhou para eles e enquanto esboçava um enorme sorriso disse numa voz divertida.

- Não se preocupem, o vosso filho é um rapaz perfeitamente normal, está apenas feliz.

terça-feira, agosto 02, 2005

Tento viver

Sentado à tua frente olho para a tua cara e tento imaginar o que estás a pensar. Tu sorris descontraidamente enquanto olhas para a rua e para as pessoas que passam, observas e tentas descobrir o que pensam todos os que atravessam a praça em frente à nossa casa, um último andar no meio desta cidade antiga que nos esconde.

Penso no que deixámos para trás, na vida que tivemos de largar para estar juntos, penso nos amigos que não vamos ver mais, na família que já não é nossa, nas pequenas coisas que faziam parte do nosso dia-a-dia e que perdemos para sempre. Sofro por ti, por não saber se fiz bem em roubar-te ao teu mundo, em trazer-te para junto de mim, pois não sei o que é o amor e não consigo prometer que tudo vai estar bem para sempre.

Um pombo aterra na varanda onde estamos e olha para nós de forma estranha, como se pudesse sentir os sentimentos confusos no ar, como se pudesse sentir o amor, a saudade e a ansiedade que coexistem neste espaço. Quero ter a certeza que o nosso sonho vai ser suficiente para compensar o que deixámos, quero ter a certeza que estamos certos e que isto que sinto neste momento vai durar para sempre.

Olhas para mim e parece que consegues adivinhar o que te quero dizer, o que quero gritar para que todos ouçam. Estou apaixonado como nunca estive na vida, mas tenho as mesmas dúvidas de sempre, tenho medo do futuro, tenho medo de viver.

Chegas perto de mim e passas a tua mão no meu cabelo, conheces-me como ninguém e sabes que estou com a cabeça cheia de ideias que me fazem sofrer. Dizes que me amas e que tudo vai ficar bem, ofereces-me o teu colo e tentas sossegar-me como uma mãe faz com um filho assustado. Ouço as tuas palavras que me dizem que um dia vou ter de crescer, que um dia vou ter de enfrentar a vida de frente. Pergunto se não é isso que estou aqui a fazer contigo, se não foi o que fiz ao não ter olhado para trás. O teu olhar é terno e eu não preciso de respostas, sei tudo o que me podes dizer e levanto a cabeça para respirar o ar da manhã.

Olho também para a pequena praça e para todos os que caminham de forma apressada, toda a gente parece saber exactamente para onde quer ir, mas eu sei que não pode ser verdade, que os outros também têm de ter os mesmos medos, as mesmas angústias, que não posso ser o único.

Afasto-me de ti e dirijo-me para a porta da varanda, digo que vou dar uma volta e tu não dizes nada, ficas apenas a olhar para a rua com uma cara alegre. Desço as escadas de madeira enquanto penso em tudo e saio para a rua, saio para a praça que estava a observar e sei que tu lá de cima olhas para mim, sei que agora sou mais um que caminha como se soubesse para onde ir.

Sorrio por estar junto dos outros que minutos antes observava e percebo como estamos todos ligados, como somos todos iguais. Não tenho destino, mas ando de forma apressada e tenho de me conter para não olhar para trás e para o teu sorriso. Continuo a andar, continuo a tentar viver.