domingo, junho 08, 2008

Esquecer

Contei quatro degraus, quatro degraus cinzentos, gastos, rachados. Senti o vento nas costas e olhei à procura do carro. Tinha a certeza que o tinha deixado perto, de ter jogado com a sorte. Se arranjasse lugar à porta do trabalho o dia correria bem. Uma velha brincadeira, que nunca funcionava. Procurei mais de vinte minutos, fiz a rua para cima e para baixo várias vezes. Cansado, sentei-me num banco castanho. Lembrei-me de uma história antiga, um livro de ficção científica que tinha lido há muitos anos. Era um livro de contos, o primeiro era sobre um homem que um dia saía do emprego e se esquecia onde morava, como se chamava, quem era. No fim, perdido, sozinho, descobria que não era deste mundo, que as memórias esquecidas não eram dele, apenas decoradas. Ri-me, apesar do frio no estômago ri-me, sabia o meu nome, sabia onde morava, só não sabia do carro, mas tinha recordado a história do livro. Tirei o telefone do bolso do casaco para telefonar, por um breve segundo soube, mas esqueci-me para quem ia ligar. Não me lembrava se tinha alguma pessoa, se era casado, se estava alguém à minha espera. Senti-me sozinho. Lembrei-me de uns enormes olhos verdes, disse o nome dela num sussurro, senti o sabor dos lábios, o cheiro da pele. Podia contar todos os beijos que tínhamos trocado, um a um, podia desenhar as cores das camisolas que ela usava, mas não sabia quem me abraçava, quem me embalava antes de dormir. Tive medo de ir para casa, de encontrar alguém que não conhecia, de estar a enlouquecer. Tinha uma aliança na mão esquerda, tirei-a do dedo, segurei-a durante um segundo, depois procurei um nome. Uma data, a aliança só tinha gravada uma data, que não me dizia nada, que me deixava assustado. Esqueci-me de quantos anos tinha, procurei algum sinal nas mãos, marcas de tempo, feridas, a cor dos pêlos. Lembrei-me de um tronco velho, do musgo na madeira, lembrei-me dos insectos na lama, de os guardar dentro de um frasquinho, da minha mãe a ralhar. Lembrei-me da minha mãe, do nome, da cara, da voz, de soprar cinco velas num bolo. Depois esqueci-me, como se num momento corresse no riacho, e no seguinte estivesse perdido. Levantei-me, vi o meu reflexo no vidro de um carro, não era novo, não era velho, continuava a saber quem era, sabia o meu nome, sabia onde trabalhava, o nome de todos no escritório, tive vontade de voltar atrás, de perguntar, de pedir ajuda. Não tive coragem. Esqueci-me do meu pai, pensei outra vez na minha mãe e descobri que não tinha pai, não tinha mãos fortes a segurarem-me, de correr atrás dele, de jogar à bola. Não me lembrava da barba por fazer, do fumo dos cigarros. Lembrei-me da montanha, sorri, tive vontade de chorar, lembrei-me de estar por cima das nuvens, do verde, do barulho da água, do vazio, do medo das alturas, de uma mão que apertava a minha. Abrimos os braços, lembrei-me de abrirmos os braços, de gritar contra o vento, de rir, de sentir que podia voar, de amar. Lembrei-me de mil músicas, da chuva, de todos os dias de chuva, da praia à noite, dos barulhos da floresta, da lua, senti todos os cortes, todas as feridas, a dor em todos os momentos, lembrei-me de todas as vezes que ri, do cheiro da comida ao lume, dos meus avós, da casa fechada, do medo dos fantasmas, de correr, dos pés descalços na areia, dos castelos, senti o sol na cara, as sombras no chão, o céu cor-de-laranja, as histórias, os sítios secretos, o desejo de viajar, de fugir, o medo da tempestade, os arrepios, o coração a bater mais depressa, o Inverno que por fim chegava. Esqueci-me, esqueci-me de tudo, de mim, dos outros, senti o corpo a cair, a visão a ficar turva, que ia perder os sentidos. Sorri, antes de adormecer, desejei estar a morrer, sem saber, mas por tudo sentir, sorri, antes de os olhos fechar, voltei à montanha, ao riacho, aos olhos verdes, aos livros, ao silêncio...