sábado, novembro 27, 2004

A Cidade

Rui sentou-se ao computador sem saber que ia começar a escrever o melhor conto de toda a sua vida. Estava algo melancólico por causa de uma música que ouvira na rádio e que o transportara para o passado. Não sabia porque é que dava tantas vezes voltas sobre a sua própria vida. Irritava-se por parecer que ia sempre parar ao mesmo sitio, ao mesmo bosque sombrio que o chamava e seduzia.

Os seus dedos viajavam de forma dolorosa por cima das teclas cinzentas e as palavras quase que pareciam sair deles e não do cérebro ou do coração. Era como se todas aquelas ideias aparecessem sozinhas, criadas do nada. Não havia controlo sobre o que escrevia, apenas fechava os olhos e continuava.

Só conseguia ver tons de verde e ouvir músicas estranhamente desajustadas que ligava numa história de amor sem sentido, um conjunto de coincidências que não tinham existido mas que eram infinitamente repetidas na cabeça de uma personagem, um prisioneiro do seu criador que lhe dera uma existência estranha num universo impossível.

Mas Rui também era prisioneiro das ideias de outros e escrevia influenciado por tudo o que tinha sentido até aquele dia. Sabia que não estava a criar nada de novo, apenas a deitar para fora o que tinha consumido sempre de uma forma intensa, demasiado intensa. E brincava assim com a vida de outros que não podiam fugir da vida que lhes tinha sido destinada.

As letras formavam cada vez mais uma história bela mas triste, onde um comboio passava por entre prédios com anúncios gigantescos com cores que iluminavam a noite e que eram quase insuportáveis para quem só queria chegar a casa depois de um dia monótono. O único prazer daquela viagem aparecia na terceira paragem onde por breves segundos ele podia espreitar para a mesma casa que observava há anos, podia fechar os olhos e continuar o resto da viagem fantasiando com uma vida que não era a sua.

Rui abriu os olhos e viu o seu reflexo no vidro do metro, gostava de olhar a sua própria cara pois os seus olhos contavam-lhe histórias que depois escrevia. Quando passava pelas estações a sua cara desaparecia e era substituída por outras que esperavam ansiosas, mas era uma questão de tempo até ter de enfrentar aquela expressão que sempre o acompanhava. Podia voltar aos seus pensamentos, às suas fantasias e sentar-se a escrever sobre um amor feito de filmes e músicas e de coincidências sentidas mas não percebidas.

Levantou-se da cadeira, dirigiu-se à janela e olhou a cidade, olhou para todas aquelas luzes que iluminavam outras pessoas, outras vidas que imaginava e conhecia. Não ia acabar a sua história naquela noite, se lhe desse um fim aquele amor morreria numa frase que não sabia como escrever.

Continuou a olhar a cidade e com a cara colada ao vidro ficou a olhar para o comboio parado frente ao seu apartamento...

quinta-feira, novembro 25, 2004

Uma tarde

Recordo-me daquela tarde como se fosse hoje. Quase que consigo sentir os cheiros à minha volta e o corpo dela encostado ao meu. Dois adolescentes sentados num pequeno muro sem pensarem no mundo à sua volta.

Era tudo muito simples, mesmo os problemas próprios da idade não cabiam ali. Sentia apenas a mão dela no meu cabelo e pela primeira vez na vida sentia uma verdadeira emoção que me alterava os sentidos e me fazia doer o estômago.

Hoje consigo pensar naquele momento como um momento perfeito e tenho pena de não o ter percebido na altura. Tenho pena de não ter compreendido que aquele momento iria eternizar-se na minha memória. Um quadro que vi num corredor cheio de luz e do qual nunca me esqueci...

terça-feira, novembro 02, 2004

Duas vidas

Entrei na papelaria à procura de uma revista que tinha a certeza ainda não tinha saído naquele mês. Percorri os corredores despreocupadamente até dar de caras com um livro de viagens. De repente, senti um cheiro intenso a livros, como se todas as obras ali à venda estivessem a chamar-me à atenção, olhei para a capa do livro de viagens mais uma vez e peguei-lhe devagar. Parecia que sorria para mim, envolvia-me com as histórias de locais longínquos e deixava-me a sonhar com outra vida, com as viagens que eu poderia ter feito, com as pessoas que eu podia ter conhecido. Seria tarde demais para seguir o meu destino?

Caminhei devagar para casa sem conseguir tirar o livro da minha cabeça, quase não chegara a folheá-lo, mas sabia bem o que podia encontrar nele. Os sons mudos do deserto, a chuva forte na minha cara, o fumo do tabaco seco a encher-me os pulmões. Experiências que eu não tinha podido ou querido ter, aventuras onde outro tomara o meu lugar. O que é que ele teve de deixar para trás para poder roubar o meu caminho? Quem teria ficado à espera durante meses infinitos? Quem se teria cansado dos sorrisos no regresso?

Meses antes tinha tido um sonho, uma viagem por savanas sem fim com o céu a olhar para mim. Na altura não tinha entendido o significado do sonho e escrevera sobre ele apenas para não me esquecer das sensações que senti e que eram novas. No meio de uma noite, acordado por acaso, tinha-me sentido aconchegado por sonhos estranhos de viagens que não desejara, por locais que nunca tinha imaginado visitar. Tinha sido sempre assim, as viagens mais improváveis apareciam sempre nos meus sonhos. Tudo sem nenhum significado óbvio, sem nenhuma lógica que eu entendesse quando acordava, mas que com o tempo iam crescendo na minha cabeça trazendo novos sonhos.

Neste momento não posso viajar, não posso partir para as ilhas distantes e nadar com as crianças de cabelo estranho, mas posso continuar a ouvir a música que ouço nos sonhos e posso criar os meus próprios sonhos. Só não entendo o que está à frente dos meus olhos fechados, não sei ainda que música é que tocava no momento em que as folhas secas e coloridas voavam pelo chão da igreja, não sei porque é que a noite me chama e me faz sonhar.

Penso mais uma vez no livro de viagens e não consigo deixar de pensar que tudo tem um sentido, um sentido que posso nunca descobrir, mas que consigo sentir...