terça-feira, novembro 03, 2009

A Cicatriz

A rapariga era cega. Não era bonita porque parecia amaldiçoar a sorte. João observava-a com a certeza de, uma vez, o poder fazer sem medo. Ao fundo da carruagem ouviu um lamento, um pedido que se repete na voz de todos os cegos. A rapariga parecia não reparar, a expressão dela não se alterou até o cego se afastar e deixar de se ouvir. João sentiu-se mal por ver, por saber mais do que os dois. Para o cego estava mais escuro. Passou pela rapariga e não desconfiou, tocou-lhe na saia mas não tinha como descobrir. Ela sabia que o homem não a via, mas sabia quem ele era, antes de todos os outros. João hesitou em sorrir, a cara dela continuava fechada, sem o deixar perceber o que pensava, o que sentia por outro como ela.
João saiu do metro e respirou o ar da manhã, lembrou-se do sonho que o acordou, que o deixou com uma sensação estranha que não desaparecia. Pelo canto do olho reconheceu um andar, mas continuou a olhar em frente. Esperou, caminhando devagar.
— Olá! — ouviu no momento certo.
— Olá Maria — respondeu. — Mais uma semana, não é?
— Estou a ver que o fim-de-semana não foi grande coisa — disse ela sem olhar para ele. João não disse nada.
— Vinhas a pensar no quê? — perguntou ela.
Não se atreveu a dizer a verdade, talvez esquecesse o sonho durante o dia, talvez se lembrasse dele todos os dias, sempre que passasse por ali, mas guardou a verdade para si.
— Estava a contar as raparigas que já beijei.
— A contar? — perguntou ela com um ar espantado. — Tens cá uma lata João.
— Não é isso — respondeu corado. — Não é nada disso. Foram poucas, foram poucas e isso é uma coisa boa, percebes?
— Desculpa — disse ela. — Mas onde foste buscar isso? Não me parece um típico pensamento matinal.
Não era, tinha pensado no assunto uns dias antes quando tinha descoberto umas fotografias antigas. Apeteceu-lhe dizer que era tudo mentira, que vinha a pensar nela. Mas não foi capaz, mais uma vez não foi capaz.
— E posso saber quantas foram? — perguntou ela num tom divertido.
— Mais de cinco, menos de dez — respondeu ele depois de pensar uns segundos.
Ela apenas sorriu.
— Acho que é um bom número — disse ele.
— O que queres dizer? — perguntou.
— Sete, foram sete e acho que é um bom número. — Inspirou fundo e falou de olhos no chão. — Até há pouco tempo achava que era um número pequeno, mas agora, agora percebo que não. A primeira vez tinha catorze anos. Só comecei a namorar com a Teresa com vinte e três anos, o que dá algo para contar em quase todos os anos. Na altura parecia pouco, parecia tão pouco que quase rebentava de tanto querer. Mas estava enganado.
Ela ficou a olhar para ele, parecia surpreendida. Não eram propriamente amigos. Encontravam-se muitas vezes a caminho do escritório, mas falavam muito pouco. João gostava do som da voz dela, às vezes gostava tanto que quase não prestava atenção ao que ela dizia. Não sabia o que ela pensava dele, imaginava, construía histórias, conversas que repetia antes de adormecer.
— Queres explicar? — perguntou ela interrompendo-lhe os pensamentos.
— Lembro-me de todos, percebes? — disse ele em voz alta. — Nunca fui muito de namoros, a maior parte das vezes não duraram muito, alguns só mesmo um dia, por isso lembro-me de todos, de todos os primeiros momentos, dos lábios a tocar, dos sorrisos escondidos, das mãos suadas apertadas. Tenho sorte, acho que tenho sorte.
Levantou a cabeça e olhou para ela. Maria tinha os olhos vidrados, mas a expressão era de medo. Sentiu alguém atrás dele e ouviu um som metálico.
— Não quero chatices — ouviu antes de se virar.
Era um rapaz, por muito sujo que estivesse, por muito que a lâmina estivesse perto da sua garganta, que conseguisse sentir o seu cheiro, não deixava de ser um rapaz.
— Calma — ouviu Maria a pedir. — Não queremos que alguém se magoe.
— Alguém? — disse o rapaz num riso nervoso. — Só vocês é que se magoam, eu...
João não o deixou acabar. Torceu-lhe o pulso de repente e a navalha rasgou o ombro do rapaz. Atirou-se à cara dele de punhos fechados, acertou-lhe com um joelho no estômago e deitou-o ao chão. Ele tentou levantar-se mas João deu-lhe um pontapé com força no peito. O rapaz caiu para trás e rolou no passeio. Ficou deitado de barriga para baixo sem se mexer. João procurou a faca e guardou-a no bolso das calças. De joelhos no chão olhou para Maria.
— Vai!
— Mas João...
— Maria, vai! Eu já vou ter contigo.
Ela desatou a correr rua abaixo, ele voltou ao rapaz. Algumas pessoas na rua tinham-se aproximado mas um olhar bastou, os olhos dele nos dos outros foram suficientes para ficar sozinho. O rapaz tremia ligeiramente. Virou-o para cima e percebeu que o corte no ombro não era profundo. Ajudou-o a levantar-se e sentou-o num banco.
— Como te chamas? — perguntou.
— Carlos — respondeu ele. — O meu nome é Carlos.
— Não és de cá pois não? — perguntou de forma calma.
— Não, não sou — respondeu.
João abriu a carteira e tirou de dentro dela três notas de vinte. Estendeu a mão para o rapaz.
— Chega para ires para casa?
Ele olhou espantado. Mas respondeu.
— Sobra — disse endireitando-se no banco.
— Assim comes qualquer coisa — disse-lhe enquanto esticava a mão para chamar um táxi. — Podes ir de comboio?
— Não, só dá de autocarro — respondeu desconfiado.
— Não há problema, falas com o taxista, ele sabe de certeza onde te levar.
Um táxi parou e João levantou-se. O rapaz imitou-o sem dizer nada. João deu uma nota de dez ao taxista e disse-lhe que o rapaz precisava de ir apanhar um autocarro. O homem anuiu de forma despreocupada. João abriu a porta de trás e esperou. O rapaz olhou-o nos olhos pela primeira vez.
— Como é que sabes que eu não paro na primeira esquina? — perguntou.
— Não sei — respondeu-lhe a sorrir. — Essa é a parte boa. Para mim tu vais mesmo entrar no autocarro. Vou acreditar para sempre nisso, que te ajudei, que de alguma forma posso ter mudado a tua vida. É um pensamento bom, mas é só um pensamento, não vai mudar a minha vida. Não sou eu que entro ou não no autocarro.
— E se eu amanhã estiver aqui outra vez? — perguntou ele.
João não respondeu, ajudou-o a entrar para o carro e disse ao taxista para arrancar. Afastaram-se depressa. O rapaz não olhou para trás e João ficou a ver o táxi a desaparecer ao longe. Sentiu a faca no bolso. Uma voz trouxe-o de volta.
— João, estás bem?
Voltou-se e percebeu que Maria não tinha ido longe.
— Não foste embora — disse.
Ela ficou um minuto a olhar para ele, como se quisesse escolher as palavras certas, como quando se descobre alguém pela primeira vez, como quando se descobre quem se é, através de outra pessoa.
— Oito — disse sem tirar os olhos dele.
— Desculpa? — disse ele sem perceber.
Maria não respondeu. Pôs os braços à volta do pescoço dele e beijou-o com força. João agarrou-a pela cintura e puxou-a para ele. Ela falou ainda com os lábios nos dele.
— Se por acaso estiveres a pensar se isto tem a ver com o que acabou de se passar, digo-te já que sim, que me sinto viva, que te sinto e não te quero largar nunca mais.
João esperou antes de responder.
— Eu não sei bem o que se passou Maria. Não sei bem o que pensar. Libertei-me, gritei cá dentro, mas assusta. E dói, dói muito Maria.
Não conseguiu continuar e ela beijou-o outra vez. João sentiu outra vez a faca no bolso.

Esperou durante três horas. Tinha entrado no prédio com uma senhora que caminhava com a ajuda de uma bengala. Ajudou a senhora a subir as escadas e depois escondeu-se no corredor. Não sabia se Maria ia demorar, o que lhe dava tempo, tempo para repetir as frases já ensaiadas. Depois do dia em que tudo se passara, depois do beijo, depois do rapaz, não a voltara a ver. No dia seguinte não conseguiu ir trabalhar, durante uma semana quase não saiu da cama. Não respondeu a telefonemas, não atendeu a porta, não ligou a televisão nem o computador. Fugiu do mundo, fugiu dele próprio e do que sentia, de não saber, de não perceber, de se sentir mais sozinho. A porta do prédio abriu-se e uma tosse ligeira respondeu à dúvida. Maria poisou alguns sacos no chão e procurou a chave numa mala feita de trapos coloridos. João esperou no escuro a apenas uns centímetros dela, contendo a respiração, ao mesmo tempo que tentava sentir-lhe o cheiro. Quando a porta se abriu saiu do esconderijo e empurrou Maria para dentro de casa. Ela caiu no chão e soltou um gemido. João fechou a porta e agachou-se junto a ela enquanto a via tentar levantar-se. Maria virou-se e sufocou num grito sem som, tentou falar mas João esmurrou-a com violência e atirou-a outra vez contra o chão de madeira. Depois sentou-se em cima do seu peito e segurou-a pelo pescoço com a mão esquerda. A mão direita segurava a faca do rapaz, a faca que ele passara dias a afiar e a limpar, a faca que era agora parte dele. Maria esqueceu-se do lábio em sangue, da dor nas costas contra o chão, da faca que reflectia a luz que entrava pela janela. Concentrou-se apenas em conseguir encher o peito de ar, em conseguir falar, num grito abafado.
— O que queres? Diz-me!
João não respondeu.
— Merda João, que merda é esta? — Ele aliviou a pressão no seu peito e no pescoço e ela gritou num soluço. — O que é que queres, o que é que queres?
— A verdade — disse ele com uma voz calma.
— A verdade? — Tentou soltar-se mas ele continuava a segurá-la com força suficiente para que ela mal se conseguisse mexer. Ela continuou a chorar. — Mas que merda de verdade João, tu, tu... foda-se cabrão de merda, vai-te foder! O que é isto, o que é isto?
Ele levantou-a e atirou-a para o sofá, depois chegou a ponta da faca à cara dela e começou a falar em voz baixa.
— Quero que alguém, que uma vez na vida alguém diga tudo. Quero saber o que sentes, o que sentes por mim, o que achas de mim. Quero saber o que te mete mais medo, o que desejas mais do que a própria vida, quero que deites tudo cá para fora, que não fique nada por dizer. Estou farto, percebes? Estou farto de não perceber, de não saber quem sou, de não saber o que as outras pessoas pensam. Quero perceber esta merda de mundo, esta merda de vida. Quero saber se as coisas são boas, se alguém se sente feliz, se tu és feliz, quero saber o que te faz feliz. Fala! Começa a falar!
Maria olhou para ele sem reacção, como se o mundo tivesse deixado de existir, como se tivesse deixado de fazer sentido. Ficou estranhamente calma e falou sem se importar com o que pudesse acontecer.
— E porque é que eu te vou dizer a verdade? Para não me magoares, para não me matares? Não achas que vai ser uma verdade pouco sentida? Achas mesmo que mereces a verdade?
João encostou a faca à cara de Maria, entre o olho esquerdo e a linha de cabelo.
— Tenho a certeza, porque só te ofereço a verdade, depois morres. E ninguém quer morrer a mentir.
Maria não percebeu se ele falava a sério, apesar de o sentir.
— João, ainda há tempo de consertares isto — disse tentando falar sem chorar.
— Não, não há — disse ele sem expressão.
A faca desceu devagar pela face de Maria. O sangue escorreu pelo pescoço e tocou, quente, no seu peito. Ela fechou os olhos e desistiu, já não havia tempo. João espetou a faca na mesa de madeira que estava em frente do sofá e esperou. Maria não pensou em tentar chegar à faca. Percebeu que ele tinha razão, que não morreria a mentir. Então fechou outra vez os olhos e voou dali para fora, apenas durante uns segundos. Depois olhou para João fixamente e sorriu.
— O que foi? — perguntou ele espantado.
— Posso só fazer uma pergunta?
— Sim, acho que sim — respondeu ele sem perceber, sem perceber o sorriso de Maria.
— E tu? Onde estás tu? És este, ou és o João do outro dia, que eu senti nos meus lábios? Onde está a tua verdade? Quando é que a descobriste, quando é que a contaste a ti mesmo?
João ficou calado. Maria continuou de olhos fechados, muito fechados.
— Sabes, eu também não percebo, mas tu és o mesmo, as mãos que me agarraram, que me tocaram na pele enquanto me beijavas, enquanto eu te beijava, são as mesmas mãos com que me magoaste, com que me vais magoar. E eu não percebo, porque não deviam ser as mesmas, não deviam ser iguais, não deviam saber ao mesmo, não deviam...
Percebeu que não estava a falar com algum objectivo, sabia que ia morrer. Percebeu que aquela era a sua verdade, que não podia deixar de a partilhar, mesmo que ele não a merecesse, mesmo que ele não percebesse, que já a estava a ouvir. Esperou.

Maria nunca arrancou a faca da mesa. Depois de abrir os olhos agarrou-a com as duas mãos e cravou-a ainda mais na madeira. João deixou o prédio e andou pela rua até de madrugada. Não tinha nenhuma desculpa, não queria nenhuma desculpa. Sabia que não enlouquecera, que nunca tinha deixado de ser ele, que isso não o assustava. Mas sabia que podia, sabia o que tinha sentido, sem se poder esquecer. Não se escondeu, esperou pelo castigo, ou pela redenção. Caminhou até amanhecer. Esperou.

João nunca mais deixou de sentir a faca no bolso. Maria voltou ao trabalho duas semanas depois. Cortou o cabelo curto, para não poder esconder a cicatriz. Ganhou o hábito de passar os dedos por ela, de sentir a estria na pele. Ria quando perguntavam, contava histórias impossíveis, em que ninguém acreditava. Passou a ser parte dela, invisível para os outros, sempre presente para ela.

João e Maria nunca mais trocaram uma única palavra. Não baixavam a cabeça quando se cruzavam no corredor, mas os olhos não tocavam os do outro, nunca ao mesmo tempo. Dois anos passaram, feitos de silêncio, Maria decidiu sair, sem precisar de o fazer. João não foi à festa de despedida, esperou no seu gabinete, esperou que os risos parassem, sem precisar de o fazer. No último dia cruzaram-se nas escadas, ele subia devagar, ela descia depressa, uma última vez. Pararam no mesmo degrau, as duas mãos no corrimão. O tempo passou. Maria agarrou a mão de João e apertou-a, puxou-a e levou-a à sua cara, desenhou a cicatriz com os dedos dele e sorriu. Ele ajeitou-lhe o cabelo por cima da orelha, que teimava em cair, o que os fez rir. Nenhum dos dois olhou para trás.

segunda-feira, julho 13, 2009

Nós

Dentro do carro. Não resisto e ponho a tocar a música que me fez chorar. Os teus olhos são verdes, só eu os consigo ver assim, só eu consigo ver que as cores são o que imaginamos. Os teus são verdes, como nas mil vezes que o gritaste a todos, até desistires, não pelo medo de ser louca, mas porque o desejavam. O tempo quase não dá para um pequeno adeus.
Lanço um desafio.
— Vamos fazê-lo maior.
— Mas... não se pode mexer no tempo.
Eu rio sem te magoar.
— Claro que sim, é a única coisa que podemos mudar, transformar estes minutos em horas, fechar os olhos e ficar aqui para sempre.
Os teus olhos brilham, castanhos, quase pretos. No primeiro sonho não eras tu, mas sim a menina do segredo, da feira e da noite de despedida.
Conto-te a história.
— Sou uma segunda escolha?
— Sim, neste sonho, aqui dentro do carro, és.
Choras, cedo demais. Depois perguntas.
— Quando é que percebeste?
— A tempo, acho que a tempo.
Porque fazes isto? Queres que me aproxime, que te deixe chegar, não vês que me fazes fugir?
— Só se quiseres, se continuares a lutar.
— Mas eu não luto...
Interrompo-te.
— Lutas, lutas sem fazer barulho, até que já nem percebes, mas lutas.
Tu ficas a pensar. Eu volto a pôr a música do princípio. Não é justo, mas desisti do que é justo.
— Quem é ela, no outro sonho?
Irrito-me.
— Nem penses, vive este, vive este se quiseres, os outros são meus, não são para partilhar.
Gritas comigo.
— Não se partilham sonhos? Não me faças rir. Percebes o que acabas de dizer?
Respondo com calma.
— Estes não. Vivem-se ao mesmo tempo.
— Palavras, só sabes viver em palavras, transformas todo o mundo com as palavras. Assim tudo pode ser o que quiseres, sabes isso não sabes?
Não respondo, apenas aponto para o relógio. As lágrimas voltam à tua cara, desta vez no momento certo. Perguntas o que já sabes.
— Só?
Sorrio antes de responder.
— Sim, só. Incrível, não é?
— Sim, nunca pensei que fosse possível...
Desisto de falar. Toco devagar nos teus dedos, primeiro como se fosse sem querer, depois como num pequeno engano, até ter de decidir. Faço um jogo comigo. Só se nenhum dos dois falar. Desejo, abro muito os olhos para que percebas, espero um minuto, com a minha mão na tua. Subo então pelo teu braço, pela pele arrepiada, toco-te no ombro, afasto a tua camisola e sopro, sinto o teu pescoço que se encolhe. Ponho os meus olhos nos teus, quase sem pestanejar, tento ver por trás do castanho, como quando olhamos o reflexo num vidro, antes de vermos mais longe. Cheiro o teu respirar, o calor do transpirar, do dia que passou por ti. Chego mais perto, os lábios a um segundo, transformado em dois, em mais um, que me faz tremer, depois colo-os aos teus, primeiro de forma leve, depois num apertar, que não nos deixa respirar. Puxo-te para mim, junto o teu corpo, o meu peito ao teu, com força, sem te magoar, até doer. Sinto as tuas mãos em mim, agarras-me a cabeça, mordes-me os lábios, beijos, que desisto de contar. Respiro fundo. Esqueço-me. De olhos bem fechados.

Imagino palavras em sussurro, que repito sem parar, até conseguir olhar. Estou sozinho no carro e deixo a música tocar, deixo que volte ao princípio, mais uma vez. Estico a mão e fecho a porta, que não ouvi abrir. Tenho as mãos vazias, mas o sonho começou...

terça-feira, fevereiro 24, 2009

O Velho no Cais

Era uma vez um rapaz que vivia num porto. Desde pequeno que aprendera a esperar, sentado no cais de madeira. Olhava as gaivotas, contava os barcos que partiam, aguardava-os ao fim da tarde. O pai desapareceu no mar, num dia de febre passado em casa, em que não o pôde ir esperar. Depois do choro descobriu, o seu destino era ver os outros, guardar os barcos com o olhar, até um dia morrer.

O segredo passou de voz em voz, no remendo das redes, nas rezas das mulheres. No porto, o rapaz cresceu, sem outro dia falhar, debaixo de chuva, da noite no dia, do fogo no céu, de gigantes de espuma. Fez-se velho, com barbas cinzentas, embaraçadas pelo vento. As velas apagaram-se, dos terços só o silêncio, um pescador não se benzeu, no dia em que foi pai. Enquanto ele os guardasse.

Um dia o velho morreu, no sítio onde viveu, caiu para o lado, no desespero dos outros. Deram voltas ao corpo, rasgaram sem respeito, correram para uma casa, que não tinha dono. Mulheres, cartas, uma fotografia velha, um amuleto esquecido, não havia nada. Fugiu-lhes a coragem, perdidos no enjoo, da terra nos seus pés, até à fome e à dor. Depois no medo partiram, de olhos no fim do mar, que tinha sabido esperar. Ao velho nem um buraco, caiu na lama, debaixo do cais de madeira, apodreceu com ela.

Passaram muitos anos, feitos dos mesmos dias. Numa tarde de Inverno, um rapaz sentou-se a contar os barcos, que não tinha visto partir. Esperou até à noite, agarrado ao último dedo, na esperança de o poder largar. Outro pai morreu. O rapaz repetiu uma promessa, já feita no mesmo lugar, e sentou-se no cais. Os corações encheram-se, de sorrisos escondidos, de egoísmo e esperança, de vergonha não sentida. Enquanto ele os guardasse.



Manhã

Bia e Rosa olhavam para a avó de olhos bem abertos. Ficavam sempre sem conseguir falar antes de perguntarem, de ganharem coragem para ouvir outra vez.
— E depois avó, o que aconteceu aos pescadores? — perguntou Bia, sem aguentar mais.
— Nada, durante muitos anos não aconteceu nada. — Fez uma pausa. — Até que um dia houve uma grande tempestade.
— E? — perguntou Rosa, quase se atrevendo a contar.
— Nenhum dos barcos voltou, nem um único voltou — disse a avó num tom grave.
As duas miúdas estremeceram. Era a sua parte favorita.
— E o rapaz, não cumpriu a promessa? — perguntaram ao mesmo tempo.
— O rapaz tinha-se ido embora muito tempo antes, no mesmo dia em que fez a promessa, foi-se embora nesse mesmo dia — respondeu com os olhos a brilhar.
— E o que lhe aconteceu? — Perguntaram baixinho, como se tivessem medo, como se fosse possível, que a resposta não fosse a mesma.
A avó sorriu antes de continuar.
— O rapaz foi viver para longe, esqueceu-se do porto, do cais, de todos os que ficaram para trás, para ser feliz...
— Mas morreu... — deixou escapar Bia, perante o olhar zangado da irmã.
— Sim querida — disse a avó —, ele também morreu no mar, quando ajudava um barco que se estava a afundar.
— Como o avô João? — perguntou Bia. — O rapaz também salvava pessoas no mar?
Os olhos da avó encheram-se de lágrimas. Tentou responder mas não conseguiu. A porta do quarto abriu-se e uma voz fez com que as duas raparigas dessem um salto.
— Meninas, têm cinco minutos para estarem as duas deitadas na cama.
— Mas mãe... — tentaram argumentar.
— Eu não volto a mandar — disse com um ar zangado. — Sabem muito bem que já passa da vossa hora.
As duas deram um beijo à avó e saíram do quarto a correr. A mãe só falou depois da porta se ter fechado.
— Mãe...
— Eu sei Teresa — disse baixinho, mas num tom firme –, eu sei que elas ainda são pequenas, mas é também a história delas, é a história de todos nós.
— Eu sei mãe, eu sei — disse enquanto lhe penteava o cabelo branco com os dedos. — Tenha só cuidado, eu sei que a história que lhes conta, as palavras que lhes diz, não são as que tem na cabeça.
— O mundo delas é perfeito Teresa, eu não nunca iria estragar isso — disse, antes de respirar fundo. — Mas a história é a mesma, acredita que é a mesma.
Teresa não respondeu, olhou para o quarto e para as fotografias em cima da cómoda. Antes de sair falou sem olhar para trás.
— Mãe, acha mesmo que ele se esqueceu? — perguntou. — Ele quando recebeu a notícia da tempestade, dos barcos não terem voltado, ele... ele quase não disse nada.
A avó sorriu antes de responder.
— Não filha, ele não se esqueceu, nunca se esqueceu... só quis poder escolher.