quinta-feira, dezembro 22, 2005

Albert

Estava frio e Rui descia apressadamente a rua, queria chegar a casa rapidamente e sentar-se frente à televisão a jantar. Tinha tido um dia aborrecido e caminhava de olhos no chão ignorando tudo à sua volta. De repente ao virar uma esquina ouviu uma música, alguém desafiava o frio em troca de algumas moedas. Aproximou-se e descobriu um homem alto de barbas ruivas que tocava uma flauta de madeira ao mesmo tempo que agitava umas campainhas prateadas presas a uma das pernas. Tocava uma conhecida música de Natal, daquelas que fazem voltar aos tempos de criança e às noites sem dormir à espera das prendas debaixo da chaminé. Ficou um pouco a ouvir e aos poucos uma história começou a formar-se na sua cabeça, tinha a certeza que ia conseguir escrever alguma coisa inspirada no que estava a observar.
Então alguém a seu lado falou.
- Estás a pensar se lhe dás alguma coisa?
Olhou para ver quem estava a falar. Era uma rapariga que parecia ter mais ou menos a sua idade.
- Sim, estava a pensar se havia de deixar uma moeda, normalmente nunca dou nada.
- Eu percebo, ele chama-se Albert e fugiu há muitos anos do seu país por causa de um amor impossível.
- Como é que sabes isso?
- Costumo passar aqui todos os dias e ele foi-me contando.
- Foi-te contando?
- Sim, se quiseres ouvir ele conta-te a sua história.
Ficou calado durante um pouco.
- Acho que estás enganada, eu tenho a certeza que ele nasceu aqui e nunca saiu da cidade.
Antes de continuar tirou uma moeda do bolso e pô-la em cima do que parecia ser um gorro de lã amarrotado no chão.
- E tenho a certeza que não se chama Albert.
Ela sorriu e respondeu-lhe.
- Estou a estragar a tua história, não estou?
Olhou melhor para ela e reparou que tinha a pele muito branca e o cabelo de uma cor estranha. Não sabia bem porquê mas sentia-se confortável perto dela.
- Desculpa, é que ultimamente não tenho conseguido escrever e isto pareceu-me prometedor, mas como é que sabias que eu estava a imaginar uma história?
- Foi só um palpite.
Não podia deixar de pensar em quem era esta estranha que lhe lia os pensamentos.
- Não costumo ser assim tão transparente.
- Ou se calhar não costumam olhar para ti com atenção.
- Se calhar não.
Ela ficou calada durante algum tempo, como se estivesse a decidir se devia ou não dizer-lhe algo. Por fim falou.
- Tenho uma proposta a fazer-te.
- Diz.
- Se quiseres eu conto-te a história do Albert e tu podes usá-la.
Ficou surpreendido com a proposta dela e não respondeu. Ela pareceu ficar inquieta como o seu silêncio e falou muito depressa.
- Desculpa, não queria ofender-te. Eu não queria desvalorizar o que pensaste, eu...olha, esquece. De certeza que tens algo mais interessante para contar...e eu estou para aqui a meter-me onde não sou chamada.
Interrompeu-a.
- Eu não fiquei ofendido.
- A sério?
- Sim, a sério.
- Mas fizeste um ar...
Não pôde deixar de esboçar um sorriso perante o ar preocupado dela e respondeu calmamente.
- É que nunca me tinham oferecido uma história antes.
Ela pareceu ficar envergonhada e não olhou directamente para ele.
- Não tinha pensado nisto desta forma, mas também não é assim nada de especial.
- Claro que é. Estás a dar os teus sonhos, a compartilhá-los com uma pessoa que mal conheces, claro que é especial.
- Mas eu de certa maneira conheço-te.
Rui percebeu o que ela queria dizer.
- Porque o imaginaste?
Ela apenas acenou com a cabeça.
- Mas nunca me tinhas visto, pois não?
- Eu sou rápida.
Ele sorriu.
- Estou a ver que sim. Olha e se saíssemos do mundo dos sonhos e fossemos tomar alguma coisa? Conheço um café aqui perto que serve um chocolate quente muito bom.
Os olhos dela brilharam de forma inocente.
- Parece-me boa ideia.
- Então vamos.
E desceram a rua lado a lado. Rui já tinha esquecido os planos de ir para casa, o frio já não o incomodava tanto e pela primeira vez em meses não tinha medo do futuro. Não tinha medo das páginas brancas à sua frente e sabia que mais tarde ou mais cedo alguma coisa iria surgir, principalmente porque já não parecia tão importante.
Tinha só uma dúvida e falou.
- Importas-te que te faça uma pergunta?
- Claro que não.
- É uma coisa pequena, mas fiquei curioso.
- Não te justifiques tanto, podes perguntar.
- Onde é que foste buscar o nome Albert?
Ela riu e ele percebeu que ia ficar sem saber...

domingo, dezembro 11, 2005

Um Convite

Estávamos perto do Natal e as ruas estavam cheias de pessoas a fazerem compras. Eu não tinha ninguém, por isso não tinha prendas para comprar.
Sentei-me frente ao computador. Ainda tinha algumas horas de trabalho pela frente e mais valia começar em vez de estar a olhar para as vidas dos outros.
Estava sozinho na sala onde trabalhava, uma sala antiga de paredes brancas e quase sem decoração. Conseguia ouvir algumas pessoas nas salas do lado, mas tinha a certeza que faltava pouco tempo para o barulho do meu teclado ser o único no meio do silêncio da noite.
Como todos ficava triste nesta altura do ano, pensava no que se tinha transformado a minha vida, recordava o passado e fazia planos para o futuro.
De repente alguém entrou na porta por trás de mim e ouvi uma voz conhecida.
- Por acaso não tens um lápis que me emprestes?
Era a Maria, trabalhava na sala a seguir à minha e também costumava ficar até tarde. Não nos conhecíamos muito bem, mas às vezes encontrávamo-nos no café e ela sorria para mim.
- Um lápis?
- Sim, um lápis, acho que já deves ter visto um alguma vez.
Ela estava com um ar divertido e continuou.
- Mas tem de ser um lápis verdadeiro, dos antigos.
- Porquê?
- Porque gosto mais desses. Deixei o meu estojo em casa e agora não sei se consigo continuar a trabalhar.
Sorri por causa do que ela disse e abri uma gaveta de onde tirei um lápis preto e amarelo.
- Toma, espero que gostes deste, é o único que tenho.
Ela olhou para mim com um ar de dúvida e disse.
- Mas ainda não foi usado.
- Não, mas não te preocupes, não o estava a guardar para nenhuma ocasião especial.
- Obrigada, ainda o devolvo hoje, vais ficar até tarde?
- Sim, tenho muito que fazer.
- OK, então até logo.
Fiquei a vê-la a afastar-se e voltei-me para o ecrã à minha frente. Não tinha a menor das vontades de estar ali e recordei Natais passados e os serões em família. Tinham passado poucos anos, mas parecia tudo tão longe de mim. Afastei os pensamentos da minha cabeça e voltei ao trabalho.
Passaram pelo menos duas horas e ouvi outra vez alguém atrás de mim.
- Vim devolver o lápis, mas receio que não tenha sobrado muito dele.
Na mão trazia um lápis com menos de metade do tamanho do que aquele que lhe entregara.
- Estiveste entretida.
- Desculpa, não pensei que fosse escrever tanto.
Ela estava com um ar de quem tinha cometido um grande pecado e eu não pude deixar de achar piada. Achava-a muito bonita e não tinha bem a certeza porque é nunca a tinha tentado conhecer melhor.
- Queres tomar café?
- Isso quer dizer que não estás zangado por causa do lápis?
- Não, não estou zangado.
- Está bem, então aceito.
Levantei-me e dirigi-me à porta. Deixei-a passar primeiro e ela agradeceu baixando ligeiramente os olhos. Enquanto andava pelo corredor percebi que éramos os únicos em todo o andar.
Depois de tirar dois café e de lhe entregar um deles sentei-me no chão, era um hábito meu, ficar até tarde e beber café sentado no chão. Ela não pareceu importar-se, sentou-se ao meu lado encostada ao balcão de madeira e começou a falar.
- Então porque é que estás ainda aqui a esta hora?
- Já te disse que tenho muito trabalho.
- Sim, eu sei, mas qual é a verdadeira razão?
Não pensei antes de responder.
- Na verdade não tenho muita vontade de ir para casa.
- Ainda te custa muito?
- O quê?
- Estar sozinho.
Não respondi.
- Desculpa, não devia ter perguntado.
- Não faz mal, estava só a pensar...se me custa estar sozinho? Não tenho uma resposta simples para essa pergunta. Eu gosto de mim e gosto de estar comigo, mas suponho que ainda não me habituei.
- Mas já passou algum tempo, não passou?
- Já, mas...sei lá, acho que há alturas piores do que outras.
Não falámos durante uns minutos até que ela se levantou e deitou os copos vazios fora. Voltou a sentar-se mas desta vez frente a mim.
- Olhas sempre assim para todas as pessoas?
- Desculpa?
Ela repetiu.
- Se olhas sempre assim para as pessoas?
Eu sabia bem do que é que ela estava a falar.
- Assim como?
- Vá lá...tu sabes, como se estivesses a olhar cá para dentro.
Já me tinham chamado muitas vezes a atenção por causa da maneira como fixava as pessoas, mas nunca daquela maneira.
- Como é que a conversa veio parar aqui?
Ela sorriu.
- Isso não importa, não estás a responder à minha pergunta.
- Não sei o que queres que te diga. Acho que sim, ou se calhar só para algumas, incomoda-te?
- Pelo contrário, sinto-me especial.
- Por isso é que me costumas sorrir quando nos encontramos aqui?
Ela ficou a olhar para mim antes de responder.
- Julgava que não reparavas.
- Eu reparo em tudo, só que nem sempre tenho coragem...
Não consegui continuar.
- Mas tens coragem para olhar.
- Tens razão, mas eu não penso muito nisso.
Ela ficou outra vez a olhar para mim, como se estivesse a ganhar coragem para dizer alguma coisa. Por fim falou.
- Olha, tenho um convite para te fazer.
- Um convite?
Fiquei nervoso.
- Sim, um convite. Eu no final da semana vou para fora passar o Natal com a minha família, mas antes queria te convidar para um jantar em minha casa.
- Um jantar de Natal?
Ela riu.
- Sim, pode ser um jantar de Natal.
- Mas com prendas e tudo?
De repente corei muito, não era aquilo que queria dizer. Mas ela não se desmanchou e respondeu.
- Com prendas e tudo, mas não precisa de ser nada de especial.
Pensei logo num conjunto de lápis e comecei a fazer planos para os ir comprar logo no dia seguinte. Ela interrompeu os meus pensamentos.
- Mas aceitas?
- Desculpa, não disse que sim?
- Não.
- Mas pensei.
- Eu percebi pela tua cara, mas queria ouvir.
Corei outra vez.
- Sim, aceito.
Ela levantou-se e eu segui-a. Parámos à porta da sala dela e eu fiquei a olhar o chão, mas falei.
- Então quando é que é o jantar?
- Que tal depois de amanhã, podes?
- Posso.
- Então está combinado.
Ela olhou para a mesa dela e disse.
- Olha, vou-me embora, tu ficas?
- Acho que não, já não me lembro o que é que estava a fazer, mas não me parece que fosse alguma coisa importante. Vais para o metro?
- Vou.
- Eu faço-te companhia, deixa-me só desligar o computador e arrumar as coisas.
- Porque é que não deixas tudo como está?
- Não gosto de deixar tudo desarrumado.
- Se calhar está na altura de começares.
- Se calhar está...deixa-me só ir buscar o casaco.
- Eu espero.
Antes de desligar a luz olhei pela janela para as ruas vazias, não pareciam as mesmas ruas que observara umas horas antes...

sábado, dezembro 03, 2005

Vocês

A música toca vezes sem fim enquanto escrevo. É a música perfeita pois acaba onde começa e eu sonho em ouvi-la para sempre. Tento chamar a tristeza que me inspira mas não consigo sentir nada, apenas o vazio que ficou, que me acompanha sem me aconchegar. Caio no sofá e tento dormir um pouco, mais uma vez decido fugir da vida e volto ao princípio.


Vocês...

Não gosto deste sitio, não gosto do fumo do meu cigarro e dos desenhos que se formam por cima da minha cabeça. O café espera por mim e fica frio, sei que já não o vou beber e olho para a espuma creme que tapa o castanho escuro que suja a chávena. Aqui nunca há cinzeiros e hesito antes de deixar cair a cinza, tento não mexer o braço e aposto comigo próprio quanto tempo mais a mesa vai ficar limpa.
Na porta alguém olha para mim. Meio homem, meio mulher, uma figura vestida com roupas sem cor parece tentar decidir se deve ou não entrar. Eu baixo os olhos para a mesa preta e rezo para que não venha ter comigo, mas não rezo o suficiente.
Decido que é uma mulher e vejo-a caminhar em direcção a mim, tem a cara coberta de pequenas feridas recentes, como se tivesse apagado todos os cigarros que fuma no rosto já velho. Senta-se à minha frente e o cheiro é insuportável, tapo o nariz com uma das mãos e ordeno às pernas que me levem embora, mas elas não obedecem e eu fico a ouvir um discurso sem sentido. Não sei se a mulher está a falar para mim, não sei se alguém existe para além do seu mundo e pergunto-me porque é que não consigo ir embora. Ela olha-me nos olhos.
- Importa-se que beba este café? Já não vai bebê-lo pois não?
- Não, não vou, pode beber à vontade, mas já deve estar frio.
- Não importa, só quero recordar o sabor, eu bebia café há muitos anos atrás, mas suponho que você deva saber isso.
Não sei do que é que ela está a falar e continuo a não conseguir sair daqui.
- Sim, suponho que sim, não deve ter vivido sempre assim.
Ela sorri e continua a falar.
- Você já escreveu sobre nós. Já esteve perdido, não esteve?
- Já escrevi sobre vocês? Não percebo o que está a dizer, eu escrevo sobre muitas coisas.
Ela sabe que estou a mentir.
- Não tenha vergonha, nós não ficámos chateados e percebemos o que queria dizer. Era sobre esperança, não era?
Sinto as pernas tremer. Como é que ela sabe?
Acaba de beber o café e continua.
- Sabe? Eu já fui bonita, muito bonita e você esqueceu-se disso.
- Mas eu nunca a vi, como é que podia saber?
- Meu rapaz, você foi um de nós, devia saber que todos tivemos vidas.
- Mas eu só escrevi, eu só queria desabafar, só queria que alguém me ouvisse. Nunca quis ofender ninguém. Eu não a conheço, eu não conheço nenhum de vocês.
- Tenha calma, não ofendeu ninguém. Só se esqueceu que eu era muito bonita, só isso. E eu estou aqui para lhe lembrar isso.
Fico calado durante um pouco e tento pôr as ideias em ordem. Ela tem razão eu esqueci-me que ela tinha sido a rapariga mais bonita da cidade, não foi de propósito, mas esqueci-me.
De repente tudo parece diferente, já não sinto o cheiro dela, já não sinto repugnância em olhar para as suas feridas e agarro-lhe numa das mãos. Apesar de suja a pele é suave e eu aperto-a com força.
- Tem razão, eu esqueci-me. Estava tão concentrado em escrever sobre mim que me esqueci de vocês.
- Não faz mal, eu só achei que lhe devia lembrar. Assim pode ser que passe a olhar à sua volta de uma maneira diferente.
- Acha que consigo?
- Eu estou suja, mas não vejo tudo sujo à minha volta.
- Suponho que não...
- Não deixe de escrever e não se esqueça de nós.
Os olhos dela brilham e as lágrimas quase que caiem.
- Eu era mesmo muito bonita, não era?
- Sim, era a mais bonita de todas.
- Obrigado. E obrigado pelo café, tenho de ir embora, ainda tenho de ir tratar de umas coisas.
Fico a olhar para ela e desejo que tenha sorte.