quinta-feira, fevereiro 21, 2008

Olhos Tristes

amo-te
porque não sei o que sinto
sem saber se te quero
porque sei que te tenho
sem te poder tocar
em todos os dias de chuva
no frio que me abraça
de todas as noites sem fim


— Quando é que escreveste isto? — perguntou ela, disfarçando os olhos tristes.
— Não sei... Ontem... Há uns anos... Parece-me que o escrevo desde sempre.
Maria sentou-se no sofá e puxou João para ela.
— Este amor... Ela existiu?
— Não te sei responder Maria, não tenho a certeza, já não tenho a certeza de nada.
Maria suspirou, sentido o calor de um ombro, embalado no seu.
— Alguma vez te escreveram uma carta de amor? — perguntou ele, com um ar envergonhado.
— Hum... Acho que não. Não, não me lembro de nenhuma. Triste, não é? Tu recebeste?
— Quando era miúdo — respondeu orgulhoso.
— Conta-me!
João deitou a cabeça no colo de Maria, esperou antes de começar a falar, como se primeiro tivesse de sentir.
— Eu tinha nove anos, acho que ela era um ano mais nova. Andávamos os dois na ginástica, ela costumava rir-se para mim. Como sempre não tive coragem de lhe falar, pedi ao irmão dela que o fizesse, que lhe contasse que gostava dela.
— Um emissário — brincou Maria.
— Sim. Uns dias mais tarde fiquei doente, uma semana em casa com anginas. Já não me lembro como é que ela soube, nós nem éramos da mesma turma. Mas um dia o meu irmão trouxe-me uma carta.
— E o que dizia? — perguntou Maria impaciente.
— Que sabia que eu gostava dela, que também gostava de mim, que queria ser minha namorada, coisas de miúdos.
— Que lindo! — disse ela num tom brincalhão.
— Não gozes — disse ele zangado, sem o estar.
— Foi a tua primeira namorada?
— Sim, foi.
— E?
— O que queres saber?
— Vá lá, não sejas assim. Conta-me! O que aconteceu depois?
João esperou outra vez, antes de recomeçar.
— Nada, eu passava por ela e apenas sorria, nem sequer parava. Um dia descobri que ela já tinha outro namorado, devo ter sido o último a saber. Mas também eu nem me aproximava, não tinha coragem. Há coisas que sempre foram assim, que hão-de ser sempre iguais.
Maria passou a mão pelo cabelo curto de João, aconchegou-o nos seus braços.
— Ela não te merecia — disse a rir, um riso que o contagiou.
— Sabes — disse, de olhos no tecto —, durante algum tempo fiquei triste, mas acho que foi o amor mais perfeito que já tive, tão puro que não precisava de quase nada. Não havia o tocar, o cheiro, a roupa entre os dedos, para mim bastavam as palavras que ela escreveu, de saber que gostava de mim. O resto era demasiado real, e eu ainda não sabia como lidar com isso, percebes?
— Sim — respondeu Maria. — E a carta, sabes onde está?
— Não, não sei, apesar de a ter guardado durante muito tempo.
— Estás a brincar — disse ela de olhos muito abertos.
— Não. Durante anos guardei-a a numa gaveta de uma escrivaninha que havia no meu quarto. Lia-a imensas vezes, tantas que o papel começou a rasgar-se nos sítios onde estava dobrado. Gosto de pensar que se desfez em pó, que um dia lhe toquei e as palavras desapareceram à frente dos meus olhos.
— Só tu, só mesmo tu — disse ela a sorrir. — E a rapariga? Continuaste a fugir dela?
— Sim, continuei — disse ele, enquanto tapava a cara com as mãos. — Mas a história não acaba aqui.
— Não? — perguntou ela intrigada.
— Não. Se o mundo, se a vida fizesse sentido, nunca mais a tinha visto, ou se calhar tínhamos vivido um romance trágico, um amor como os dos livros.
Maria conteve a curiosidade, deixou-o continuar.
— Um dia encontrei-a numa festa, acho que devia ter uns dezasseis anos. Nunca mais tínhamos falado, se é que alguma vez o fizemos. Eu pouco sabia dela.
— E o que aconteceu?
— Ela veio chamar-me para dançar, mais do que uma vez. Quando dei por mim estava mais perto do que alguma vez tinha estado. Senti o calor dela na minha cara, senti-a a respirar, senti o corpo junto ao meu. E por um momento, tudo à nossa volta desapareceu, só havia a música, e nós dois a rodar. Então aproximei os meus lábios dos dela devagar, tão perto que ela me beijou. Um beijo que soube a medo.
— A medo? — perguntou Maria.
— Sim, a medo. Não sei explicar melhor. Foi um momento mágico, mas havia algo, alguma coisa que eu não cheguei a perceber. Se calhar foi só de já não termos nove anos, ou então outra coisa qualquer. Não sei, não sei o que foi.
— Viste-a mais alguma vez?
— Sim, nesse mesmo dia, à noite. Não tive coragem de lhe dizer nada, nem sei se queria. Depois disso nunca mais a vi.
Maria ficou pensativa.
— Esse beijo, esse encontro quando já eras mais velho, não faz sentido. Isso que contaste não faz sentido.
— Eu sei Maria. Não penso muitas vezes nisto, não sei porquê esqueço-me desta história, mas sim, foi estranho.
Maria levantou-se, obrigando João a sair do seu colo.
— Bolas, tenho que ir comer um chocolate, queres? — perguntou ela, tentando segurar o riso.
João sentiu um arrepio, um sabor na boca, que desaparecia devagar. Depois riu-se também, e esqueceu-se outra vez.
— Sim, também quero chocolate.