quinta-feira, julho 28, 2005

Serei sempre eu

De repente regresso ao passado e estou de volta ao bosque. Ando descontraidamente e olho para todos os lados com a curiosidade de quem é pequeno e para quem tudo é novo. Na mão levo um pau que é a minha espada e luto contra monstros gigantescos que saltam para a minha frente. Apesar da diferença de tamanho saio vencedor destas lutas impossíveis e avanço pelos terrenos mágicos que se estendem à minha frente.

Entro no reino perdido e caminho em direcção ao castelo, está sol e a tarde é infinita...

Repetições

De volta ao mundo dos sonhos sinto o estômago a contrair-se e vivo o que pensava não ser mais possível. Tento concentrar-me no mundo real mas a tua presença é forte e sinto mais uma vez que estou a viajar numa terra que já conheci. Vejo-te quando fecho os olhos, de cabelo apanhado a olhar para mim, a pedir que eu te ame, a pedir que eu não deixe de existir neste mundo estranho que a qualquer altura pode desaparecer. Pergunto porque é que tinhas de aparecer e complicar o que já não era simples, pergunto porque é que sinto o que sinto, porque é que sei o que pode acontecer sem saber quem és, sem saber onde estamos, sem saber porque é que me sinto em casa.

Caminho e olho para as imagens distorcidas à minha frente, um mundo que não faz sentido quando pensamos nele, um mundo que só existe enquanto acreditamos, um mundo que me traz a ansiedade de volta, que me faz voar e ter medo de cair. Quem és tu que aparece com diferentes caras à minha frente? Quem és tu que eu reconheço à primeira palavra? Grito, mas não ouço a minha voz, choro mas as lágrimas não correm e peço ajuda para enfrentar o futuro. Tento ter forças para resistir a este destino tantas vezes repetido, para lutar contra o doce embalo que me ofereces, para não desistir e descansar a cabeça num colo que me traz o carinho perdido e o conforto desejado.

Estou mais uma vez no meio da encruzilhada que conheço, tenho dois caminhos à minha frente e não sei por onde seguir. Sento-me encostado à única árvore que existe e adormeço. Sonho dentro de um sonho, sonho com a calma que queria que existisse na minha vida, com os pequenos prazeres que não consigo ter, com o vento na minha cara, com o perfume da erva debaixo de mim, com as sombras desenhadas no chão, com as nuvens brancas no céu...desejos repetidos tantas vezes e que escrevo para não me esquecer do caminho para casa.

segunda-feira, julho 25, 2005

Ao espelho

Olhas para o espelho e perguntas quem és, não te reconheces na imagem que vês e pensas quando é que a calma voltará. Os dias são mais compridos e só a noite traz algum conforto, a noite onde estavam todos os medos, agora única aliada na tua luta. E dormes. Dormes para não pensar no mundo que não compreendes e na vida que se divide em duas. Os sonhos levam-te a locais que não conheces mas onde te sentes bem.

Não te moves e fixas demoradamente o teu corpo reflectido no espelho, tens medo que um dia a imagem à tua frente ganhe vida e se separe de ti, tens medo de não existirem mais estes momentos infinitos em que os olhos olham os olhos e o tempo não passa. O teu corpo é também o meu corpo que espera por ti, que espera que desse lado não fujas, que espera poder ver-te todos os dias.

Toco com um dedo no vidro e olho para dois braços que se unem num único ponto. Não sei qual dos dois é real e pergunto se isso será realmente importante, pergunto se não podem existir duas vidas que são uma só e se observam com medo, com a ansiedade de não saberem quem são, com a alegria de nunca estarem sozinhas.

Olhas-me mais uma vez nos olhos e sorris, sorris para ver o meu sorriso e para poderes sentir que um dia tudo estará bem.

quinta-feira, julho 21, 2005

Quero

Sinto o peito rebentar de ansiedade e tudo à minha volta confunde-me os sentidos. Respiro fundo. Estou ligado a todas as coisas que existem e sei que pela primeira vez na vida sinto o mundo. Sinto toda a realidade de maneiras diferentes, ouço, vejo, cheiro, toco, saboreio. De braços abertos tento ser a água que corre no riacho, o pássaro que voa no alto, a árvore que tapa o sol. Quero estar vivo para sempre e nunca perder o que estou a sentir, quero sonhar acordado, quero dormir com um sorriso nos lábios...quero ser feliz.

quarta-feira, julho 20, 2005

Um dia cinzento (um sonho estranho)

Doem-me os olhos e sinto que estive longe durante muito tempo, sinto que não sei onde estou e que estou perdido no tempo. Sei que existo porque sinto, mas não sei que tipo de existência é esta em que vejo tudo a preto e branco. Toda a minha vida vivi aprisionado no meio de outros que partilhavam a minha sorte, apenas números e nunca nomes, apenas dor e nunca alegria, sempre o choro em vez do riso. Hoje consigo olhar para o passado sem temer o futuro e posso finalmente confrontar os meus fantasmas. Sento-me e tento escrever sobre a minha vida, sobre os anos em que vivi sem a luz do sol, sobre os anos em que não sabia quem era e tento pôr em palavras o que os meus olhos só conseguem ver no meio de imagens desfocadas, no meio de sonhos que me fazem acordar assustado.

A libertação deveria ter trazido a bondade ao meu mundo, mas as coisas não aconteceram assim. E ainda consigo ver-nos todos reunidos depois de anos fechados dentro de quatro paredes, as caras sérias que deviam sorrir e não questionar, a loucura que se tornara demasiado presente e que não podíamos largar. Então o caos, a negação do que sonháramos toda a vida, o negro renascido do negro. Consigo ver o primeiro movimento como se estivesse a acontecer à minha frente, a primeira mão levantada e todas as outras ligadas a ela. O fim de um sonho que demorou pouco tempo a transformar-se no maior dos pesadelos.

No meio de todo o frenesim estou escondido à procura de uma cara que não tenha os olhos fechados, procuro desesperadamente por alguém que tenha conseguido escapar a este destino infeliz, o de ver o sol apenas por um segundo e tapá-lo com as mãos negras de desespero. Mas existem outros como eu, outros que choram perdidos no meio da multidão enfurecida, outros que se libertaram de verdade e não querem ceder à loucura. Refugiamo-nos na sombra e desejamos que tudo acabe depressa. Vemos tudo a acontecer à nossa frente, do nosso esconderijo sem luz podemos olhar para o mundo a acabar sem podermos fazer nada que não seja rezar sem saber como, rezar para que tudo passe, para que tudo acabe.

Os olhos continuam a doer-me e luto para não parar de escrever, luto para me lembrar de todo o tempo em que estivemos agarrados uns aos outros sem saber o que nos ia acontecer, luto para não me esquecer de uma figura fraca que tentou juntar-se a nós, que suplicou por uns centímetros da nossa sombra protectora. Ainda consigo ouvir a resposta que veio através de um som seco e metálico ao meu lado, ainda consigo ver a forma frágil a ser projectada para trás, para o meio da luz das chamas. Naquele momento soube que se escapasse ao que parecia ser o fim deste novo mundo teria de vingar o que tinha acontecido e hoje sei que consegui, a nossa sombra não foi invadida, mas o mundo que começou naquele dia ficou livre do mal que se tinha infiltrado entre nós.

domingo, julho 10, 2005

Viagens

À beira da ruptura olho para os carros na rua e penso na vida, nunca me senti assim tão desorientado, sem saber para onde caminho. Sigo as luzes vermelhas que se afastam de mim, outras vidas que seguem para longe e apesar de não fumar puxo de um cigarro apenas para ver os efeitos do fumo que sobe em direcção às estrelas. Olho para cima mais uma vez como se daí pudesse vir algum auxilio, algo que explique o estado em que me encontro. Estou sozinho e nunca tive tanta gente à minha volta...

Sei que tenho tudo para ser feliz e que a angústia permanente não faz sentido. Procuro desesperadamente uma solução, um caminho que me faça viajar daqui para fora. Do alto da varanda, com o vento a bater-me na cara, continuo a olhar para as outras vidas que passam e saio de dentro de mim.


Viagem

Vítor estava cansado, guiava sem parar há duas horas e sentia-se a adormecer. A discussão com Clara tinha sido a pior de todas as que já tinham tido e não aguentara ficar em casa. Entrara no carro sem saber que destino levava, só sabia que tinha de sair, que precisava de pôr as ideias em ordem e pensar no seu futuro. Não conseguia continuar, tinha de parar.

Dentro do carro, numa rua desconhecida, continuava a ouvir a mesma música que o acompanhava há dias e desejou estar noutro sitio, desejou estar na praia com que sonhara há muitos anos e que ainda não tinha descoberto. Passado tanto tempo conseguia ainda lembrar-se de todos os pormenores desse sonho, o mais intenso que alguma vez tivera na vida e que lhe deixara uma vontade enorme de fugir, de abrir a porta de casa e sair, viajar pelo mundo, encontrar o sitio que sabia ser seu. Fechou os olhos e sonhou.


As ilhas

Rui sentiu o trem de aterragem tocar o chão com algum alivio, nunca apreciara especialmente viajar daquela forma, mas desta vez estava mais incomodado do que o costume. Talvez fosse pelo facto de nunca ter estado tanto tempo dentro de um avião, ou talvez fosse por ir ao encontro do seu destino, ao encontro dele próprio.

Mal saiu do avião sentiu que estava num sitio diferente, sentiu um ar quente e húmido que nunca tinha sentido antes. Todo o seu corpo parecia doer e por momentos fantasiou que estava noutro planeta onde as leis mais básicas da física não se aplicavam. Sabia que tinha finalmente chegado a casa...

Saiu do hotel e dirigiu-se à praia, caminhou descalço por entre as árvores estranhas até à areia branca e olhou para o mar azul. Não estava demasiado calor e uma brisa com um cheiro adocicado batia contra a sua cara, era capaz de ficar ali para sempre. Finalmente estava no sitio com que tinha sonhado toda a vida e que achava lhe ia trazer a solução para todas as perguntas sem resposta.

De repente ouviu um som, uma música, olhou para trás à procura de alguém mas a praia estava deserta. O único sitio de onde poderia vir era uma pequena igreja pintada de branco que tinha sido construída mesmo em cima da areia. Parecia bastante antiga e deslocada daquele sitio e quando fechou os olhos teve medo de não a voltar a ver, mas ela ainda estava à sua frente quando os voltou a abrir.

Entrou na velha igreja e sentiu que de alguma forma conhecia aquele sitio, a cor dos bancos, o chão irregular, as figuras que olhavam para ele, tinha certeza que já aqui tinha estado, por muito que isso fosse impossível. Era o seu sonho, sabia isso, mas tinha medo do que ia encontrar, tinha medo das respostas que procurava há tanto tempo.

Continuava a ouvir a música e agora tinha a certeza que era a mesma que ouvira anos atrás numa noite que nunca esquecera, era a mesma música que ouvia na sua cabeça sempre que precisava de ter a certeza de que existia, de que era uma pessoa real e não um sonho.

Apercebeu-se de repente que este era o último momento de dúvida, que era a última vez que poderia fazer certas perguntas, que a partir dali tudo seria diferente. Sentou-se num banco e tentou concentrar-se naquele momento único da sua vida, tentou memorizar todos os pormenores, tentou não esquecer-se de si próprio...


Noite

Continuo na varanda a olhar para o carro que parou à porta do meu prédio. Lembro-me de um sonho antigo e sei que todas as respostas estão dentro de mim, sei que só eu posso acabar com toda a ansiedade que sinto a cada momento. Olho para cima e choro uma última vez, choro porque sofro, choro porque ainda não consegui perceber que estranha música é esta que não me sai da cabeça.

E sonho, sonho que estou num local distante e que entendo...

quarta-feira, julho 06, 2005

Escrever

A Feira

Rui entrou numa casa muito velha atrás dos seus amigos. Era a noite perfeita para experimentarem todo o tipo de aventuras e a antiga feira era o local indicado para quem queria emoções fortes. À sua frente Vasco avançava muito devagar com medo do que podia estar atrás de cada esquina, Rui olhava para ele e pensava como era possível que o seu melhor amigo fosse casar daí a uma semana. Lembrava-se ainda de quando eram novos e passavam o dia a brincar no bosque perto da casa dos seus avós e agora estavam ali, a última vez que podiam estar juntos antes de tudo mudar. Sentia um pouco de ciúmes do seu amigo, embora também o invejasse por ter algo que nunca conseguira ter, por ter algo que também desejava.

A casa estava completamente abandonada ou assim queriam que parecesse, sabia bem o tipo de partidas que ia ter de enfrentar e não se preocupou muito. Desde cedo que era poucas vezes surpreendido e não ia ser diferente desta vez. Mas o sentimento não era partilhado pelos outros que gritavam no meio da confusão que se tinha instalado. Uma dúzia de rapazes que tinha voltado aos tempos em que eram livres, uma brincadeira de crianças num mundo de adultos que não sentiam ter crescido.

Saíram da casa entre risos e empurrões e olharam para a rua a tentarem decidir onde iriam a seguir, que divertimento esquecido iria ser experimentado uma última vez? A feira parecia mais abandonada do que nunca e parecia que tinha escolhido aquela noite para se despedir também de alguma coisa, para se despedir de tantas histórias passadas no meio daqueles muros e de casas com cores engraçadas. Seguiram para a tenda do circo.


O circo

A tenda do velho circo era enorme e ocupava uma grande parte do recinto da feira. Rui lembrava-se de assistir aos espectáculos de sábado à tarde com o seu avô enquanto comia algodão doce. Ainda conseguia ver os fatos brilhantes dos trapezistas e ouvir os leões que desafiavam o chicote do domador vestido de vermelho. Eram tempos sem preocupações e tinha saudades, tinha saudades de descer a rua de mão dada com o avô e contar as riscas coloridas da tenda. Chegava a dar uma volta inteira à tenda para contar quantas riscas de cores diferentes conseguia contar, nunca chegava ao fim com a mesma contagem.

Hoje o circo já não existia e apesar de não vir a este local há muito tempo sabia que lá dentro ainda se podia assistir a algum tipo de espectáculo, algo desfasado do tempo tinha a certeza e que ajudava a dar uma estranha mística a todo aquele local que parecia lutar para não desaparecer. Esta noite ele e os amigos tentavam que isso não acontecesse, tentavam gozar o mais possível numa só noite. O amanhã não importava.


As seis gémeas

Quando entraram deram de caras com uma visão bizarra. Dentro da tenda não existia nada, estavam apenas debaixo da lona e das luzes que estavam presas na parte de cima. As antigas bancadas de madeira tinham desaparecido, o que fazia com que o espaço parecesse muito maior, como se tudo à sua volta desafiasse a lógica e não combinasse com o que tinham observado de fora.

Mas não estavam sozinhos. No meio da tenda seis cavalos troteavam em circulo, tendo cada um deles por companhia uma rapariga vestida de preto e cabelos compridos. No meio uma senhora mais velha segurava um microfone e pedia para se aproximarem enquanto apresentava as irmãs. Seis gémeas idênticas que iam rodando à frente do grupo de amigos que não podia deixar de ficar de boca aberta perante tal visão.

Rui ia ouvindo os nomes das irmãs enquanto iam desfilando em cima dos cavalos, Marlene, Marta, Margarida, Madalena, Magda e Maria, um estranho conjunto de nomes para um estranho grupo. Eram perfeitamente iguais e por mais que tentasse não conseguia descobrir diferenças entre elas, parecia que estava a ver sempre a mesma imagem, uma rapariga de cabelos compridos, vestida de negro cavalgando em cima de um cavalo também ele negro. Era como se estivesse a ver um filme projectado à sua frente em câmara lenta.


A escolha

Todos sabiam que toda aquela encenação devia ter algum sentido, mas não tentavam sequer adivinhar que tipo de divertimento lhes iria ser proposto no meio de tão estranha visão. Então a mulher mais velha falou e pediu-lhes que se aproximassem. Disse-lhes para se posicionarem à volta do circulo pois uma escolha iria ser feita, uma escolha que iria mudar a vida de um deles. Ouviram-se risos, mas a mulher manteve uma expressão muito segura, como se soubesse alguma coisa que eles desconhecessem. Não deixava de ser uma cena assustadora e Rui sentiu um pequeno tremor a percorrer-lhe o corpo enquanto obedecia e se aproximava do meio da tenda.

A mulher continuou a falar e explicou que uma das irmãs iria escolher um deles e que essa escolha traria um novo caminho para o escolhido. Era uma situação cada vez mais estranha, ali estavam todos à volta de seis irmãs que olhavam-nos nos olhos e pareciam procurar um deles para fazer uma escolha que supostamente iria mudar uma vida. Noutra altura Rui teria rido de tudo aquilo, mas naquela noite não foi capaz. Tinha um pressentimento em relação a tudo e manteve-se calado a olhar.

Os cavalos andavam mais devagar e Rui olhava para as irmãs que iam passando, nem sequer sabia qual delas iria fazer a escolha. Mas de repente e sem saber bem como pareceu reparar num olhar de uma delas, parecia que sem o mostrar muito uma das raparigas olhava para ele de forma diferente cada vez que passava por ele. Não acreditava que ia ser o escolhido, seria possível? Não lhe apetecia muito ser alvo do gozo dos amigos e tentou desviar o olhar, mas não conseguiu deixar de olhar para a rapariga que agora conseguia distinguir perfeitamente entre as outras. Tudo parecia ser demasiado entranho e fechou os olhos à espera.


O escolhido

Os cavalos pararam e a mulher de pé disse que a escolha estava feita. Foi com um enorme nervosismo que Rui viu a rapariga que olhara para ele descer do cavalo e dirigir-se para o centro da tenda ficando ao lado da mulher que pareceu ter alguma coisa para dizer antes de anunciar o escolhido. E falou numa voz mais baixa, avisou que aquela escolha não devia ser desprezada nem levada pouco a sério, disse que o escolhido podia seguir o caminho que quisesse na sua vida, mas que ali naquela noite iria ser-lhe apresentada uma alternativa, que ele podia ou não escolher.

Era um discurso demasiado vago e todos estavam impacientes sem saberem o que ia acontecer. Então a rapariga, que a mulher anunciou como sendo Marta, saiu do centro e começou a dirigir-se para um dos rapazes. Foi com enorme espanto que Rui viu que, quando tudo indicava que iria ser o escolhido, ela caminhava lentamente em direcção a Vasco. Não entendia nada, um acontecimento como aquele tinha de fazer algum sentido e ele devia ser o escolhido, não Vasco, sentia isso. Para além do mais Vasco ia casar, tudo o que não precisava era de mais uma mudança na sua vida.

Deu por si a rir, no final aquilo era tudo uma brincadeira e estava a reagir como se o futuro de alguém pudesse ser modificado por aquela escolha. Todos riam enquanto Marta pegava na mão de um Vasco desconfiado e pedia-lhe para passear um pouco com ela fora da tenda. Mas apesar de rir com os outros Rui não estava completamente convencido da brincadeira e olhou para os dois enquanto saíam de mãos dadas da tenda. Pensou uma última vez que ele é que devia estar ali.


Medo

Nunca ninguém soube o que aconteceu a Vasco fora da tenda, mas todos assistiram à forma descontrolada como o encontraram alguns minutos depois, parecia que estivera a beber e chorava desesperadamente. Ao principio alguns pensaram que se tratasse de uma brincadeira, mais uma numa noite cheia de tantas partidas, mas rapidamente chegaram à conclusão que o estado do seu amigo era genuíno. Rui aproximou-se dele e tentou que se controlasse, era o seu maior amigo e tentou afastá-lo um pouco dos outros para perceber o que se passava.

Vasco chorava de tal forma que Rui apenas conseguia perceber algumas palavras no meio dos soluços e só ao fim de uns segundos começou a perceber e a juntar algumas das palavras que o seu amigo ia dizendo. Vasco dizia que tinha sido amaldiçoado, que estava perdido, que estava apaixonado. Não era possível, que espécie de feitiço tinha sido lançado sobre o seu amigo que lhe fizera perder a razão? Olhava para o lado procurando a rapariga, procurando alguma resposta que pudesse dar algum sentido ao que se estava a passar mas apenas conseguia ver as cinco irmãs. Como era possível que agora a achasse tão diferentes das outras?

Saiu da tenda com Vasco e percebeu que aos poucos o amigo ia ficando mais calmo, mas sem deixar de ter algo diferente no olhar, como se tivesse sido marcado de uma maneira que nunca iria esquecer. Perguntava-lhe de forma repetida o que é que ela lhe tinha feito, mas não conseguia uma resposta, só um olhar para o vazio. Pensou outra vez que devia ter sido ele o escolhido.


A encruzilhada

Ao fim de meia hora Vasco falou, mas nem tudo fez sentido. Disse que a sua vida ia mudar. Que ia casar com a mulher que sempre amara e ter muitos filhos, mas que não se ia esquecer daquela noite nunca. Que até ao dia em que morresse iria se lembrar de que a vida não é sempre o que parece e que quando certas escolhas nos são apresentadas em certas alturas podemos seguir por caminhos completamente diferentes. Levantou-se e antes de ir ter com o amigos voltou-se para Rui e disse-lhe, com os olhos cheios de lágrimas, que deveria ter sido ele o escolhido.


Acordar

Rui acordou às seis da manhã e a sua cabeça estava cheia de pensamentos confusos. Tivera o sonho mais estranho da sua vida e não conseguia perceber sequer se tudo o que lhe vinha à mente tinha ou não acontecido. Feira, tenda, cores, gémeas...tudo palavras e imagens que o assombravam e deixavam desorientado. O que é que este sonho significava? E quem era esta rapariga que amava mais do que a própria vida?

Levantou-se e um medo enorme apoderou-se dele, medo de esquecer, medo de não se lembrar dai a uns segundos de tudo o que tinha na cabeça. Sabia que era assim com os sonhos, que quando acorda uma pessoa consegue descrever tudo o que sonhou, mas que passados poucos momentos tudo se começa a desvanecer e quanto mais se pensa no sonho menos nítido ele fica.

Agarrou rapidamente numa caneta e começou a escrever. Começou por descrever todos pormenores que se lembrava do sonho sem ter muita atenção à ordem, apenas palavras soltas, nomes, sensações, tudo que o ajudasse a não esquecer o que tinha sonhado. Mas com o passar dos minutos uma história começou a ganhar forma. Sem perceber que o estava a fazer, começou a escrever palavras que podiam ser unidas e frases que faziam sentido, começou a pôr por escrito tudo o que se tinha passado, mas com se o estivesse a fazer imaginando tudo pela primeira vez.


Sonho

Neste novo sonho tudo estava presentes, ele, os amigos, a feira, o circo. Mas as cores da noite eram ligeiramente diferente, havia alguma coisa que distinguia esta noite da outra que tinha vivido. Era como se estivesse a reescrever o passado, como se pudesse mudar a vida de todos com que tinha sonhado.

Entrou na tenda mais uma vez e deparou com o mesmo espectáculo que já vira uma vez. Seis cavalos a trotear, seis raparigas de cabelos ao vento, uma ameaça no ar e o medo e a esperança de desta vez ser ele o escolhido. Estava nervoso, olhava outra vez para Marta e sem nenhum tipo de espanto percebeu que continuava a conseguir distingui-la das outras. Na verdade não era difícil, havia uma traço muito particular que a tornava diferente. Mas Rui não precisava disso, conseguia saber que era ela mesmo de olhos fechados, conseguia saber que era ela que se aproximava e abria os olhos apenas quando ela passava por ele.

Desta vez não havia escolha nem escolhido, apenas ficavam a assistir ao espectáculo e a todo aquele movimento que lhes brilhava nos olhos. Apenas ficava a olhar para alguém que sabia ir amar para o resto da sua vida, a sua princesa prometida, que o ia acompanhar para sempre naquele e no mundo real. O espectáculo terminava com o aplauso entusiasmado de todo o grupo. Olhava para Vasco e sorria por o ver tão bem disposto, um Vasco diferente do outro que entendera o significado de escolher, que percebera como a vida pode ser diferente.

No fim todos se juntaram e ele e os seus amigos cumprimentaram as irmãs pela sua actuação. Procurava por ela sem saber bem o que lhe dizer, sem saber como se apresentar. Tinha quase a certeza que desta vez ela voltara olhar para ele, mas sentia-se nervoso com tudo aquilo, até que sentiu o toque de uma mão na sua. Olhou para o lado e encontrou o sorriso que procurava. Falou.

- Tu és a Marta, não és?

domingo, julho 03, 2005

Passado

Olho para ti enquanto pões a mesa com cuidado e o meu pensamento voa para longe. Reparo nas tuas rugas e tento lembrar-me de como eras antes. Aqui neste momento parece difícil acreditar que vai fazer meio século que acordo perto de ti, que a primeira coisa que vejo todos os dias é o teu sorriso doce.

Fecho os olhos e vejo dois jovens apaixonados, vejo duas vidas ligadas para sempre, vejo as lágrimas, vejo os risos, vejo as manhãs, vejo as tardes. O teu cabelo negro voa e toca-me na cara, consigo senti-lo entre os meus dedos e sei que é tudo um sonho, mas não me importo, pois é um sonho que se tornou realidade e tu estás aqui comigo, desde sempre.

Sinto as tuas mãos nos meus ombros e perguntas-me no que estou a pensar...digo que estou a sonhar. Sorris e pareces a rapariga que conheci em tempos e que ainda está dentro de ti, dizes que eu nunca vou mudar, que vou sempre ser o mesmo rapaz pequeno com os olhos no céu, o mesmo miúdo de olhar distraído.

Amo-te...