sábado, abril 24, 2004

Tempo

Queria que o tempo parasse aqui para poder olhar tudo à minha volta, ler os livros que comprei e ver todos os filmes que já foram feitos. Então tudo à minha volta fica em câmara lenta e eu sou o herói super-sónico que passa por todos sem ser notado. Não uso relógio pois o tempo não existe, é uma invenção dos homens.

Voo por cima do mar sem saber onde estou, sem saber que dia é e que horas são. Não sei o meu nome, não sei de onde venho, estou sozinho, mas o tempo não passa. Eu subo para o céu, toco as estrelas que brilham sem saberem porquê e que não se preocupam com o seu fim.

Eu tenho medo do dia em que o tempo vai fazer sentido e quando não puder voar mais. Tenho medo de me aparecer de repente um relógio no meu pulso esquerdo e de voltar a ouvir aquele tic-tac que me provoca uma angústia sedutora. Nessa altura os pesadelos vão voltar e os miúdos à volta da árvore velha vão cantar uma música desconhecida que nunca acaba.

Toco flauta em cima de um telhado, olho o céu e vejo que está cor-de-laranja e verde. Sei que nasci e que sou filho de uma mãe que não existe mas que consigo ouvir ao fim da tarde. O sol traz esse som com uma cor de ouro e eu respiro fundo antes de partir. As crianças já ouviram a flauta e voam para a ponte de vento.

Na noite de tempestade eu ouço os tambores e vejo a guerra à minha frente. A lua faz brilhar as espadas que estavam guardadas para esta batalha entre os dois mundos. Consigo ver o brilho nos olhos dos nossos oponentes e cheiro o medo no ar. O sonho pode acabar aqui hoje pois o sangue derramado vai abafar a música. Embora a nossa causa seja nobre sei que isto é errado mas agarro na minha espada e com os olhos num só dos meus inimigos, corro sem pensar.

A morte ceifa as vidas dos dois lados e não me vê passar e eu continuo sem tocar em ninguém, a minha lâmina tem um encontro e tem de estar imaculada. Paro então e quase consigo tocar nos seus cabelos negros que neste mundo parecem não ter fim. Sinto vontade de a beijar mas tento atingir o seu coração. Quase que nos erguemos no ar e lutamos brutalmente com amor e ódio por uma causa desconhecida.

Um silêncio repentino, a guerra parece que assiste e as espadas param a olhar para nós, mas é tarde demais, um leve tocar de lábios, um olhar triste e dois corpos são feridos, caímos no chão de mãos dadas, sem sentir nada, sem ouvir nada, a chuva junta o sangue e nós morremos.

O tempo não passou, pois não existe e eu voo...

A Noite (uma parte do tempo)

Noite

Ouço os tambores ao longe e estremeço um pouco. A chuva cai de forma brutal mas não consegue apagar os archotes que nos deixam ver os nosso inimigos.

Tento que o meu cavalo se mantenha quieto perante aquele barulho ensurdecedor mas não é muito fácil, de alguma forma ele sabe o que nos espera e os seus olhos estão inquietos.

Penso o que estará ela a pensar do outro lado do charco em que se tornou o futuro campo de batalha. Já passaram alguns anos desde aquele encontro e não conseguimos manter as promessas feitas. Por isso hoje vai haver guerra, hoje pode ser que nos encontremos e que tenhamos de lutar um contra o outro.


Dia

Nasci filho de reis e com um destino traçado numa terra envelhecida pelo sangue derramado. Desde sempre que os reinos do norte e do sul lutam, sem que nenhum dos lados consiga vencer e com gerações e gerações perdidas nesta luta esquecida, nesta terra esquecida.

Sabia pois que não era sensato passar a árvore esquecida, marca do caminho sem volta e entrada na terra de ninguém, onde os dois reinos não tinham poder, mas onde os soldados do sul costumavam esperar que algum de nós se aventurasse. Mas há séculos que os príncipes do norte faziam esta viagem e eu não seria o primeiro a quebrar a tradição.

Foi sem surpresa que ouvi o barulho de espadas e o bom senso deveria ter-me feito afastar, mas não o fiz. Subi a uma árvore gigantesca e consegui perceber a origem dos sons de luta, eram os ogres.


Noite

O meu pai olha com pena para todos os homens. Sabe que muitos não voltarão para as suas famílias e que de certa forma ele é o responsável por isso, ninguém lhe irá apontar isso, mas ele sabe o fardo que tem que carregar. E eu sei que um dia, quando o anel passar para a minha mão, também serei o responsável por todos aquelas famílias desfeitas.

Os gritos aumentam e eu sei que já não podemos voltar para trás. Penso se será hoje que será travada a batalha final, aquela sobre a qual os poemas do norte e do sul falam há milhares de anos.

Tento reconhecer caras do outro lado do campo, mas só vejo armaduras negras por entre os pingos da chuva que teimam em cair. No centro dos nosso inimigos um brilho azul chama-me a atenção, será o colar que em tempos tive entre os meus dedos? Será que a minha espada vai ficar parada perante aquele brilho familiar? Como é que viemos aqui parar?


Dia

Os ogres eram os verdadeiros donos daquela terra, mas alguém para além de mim tinha invadido os seus domínios e eles iam no seu alcanço.

Desci da árvore e deslizei suavemente no chão de forma a poder ver melhor o que se passava. Um grupo de ogres tinha encurralado um soldado do sul, que se debatia por entre as espadas enferrujadas daqueles monstros sem dono.

Podia observar o rasto de corpos imundos espalhados no chão desde a estrada a leste até aquele vale sem saída e perceber que não era um simples soldado, mas os ogres eram muitos e ele não ia resistir muito mais tempo. O que eu pensava fazer poderia condenar-me à morte, mas não conseguia ver alguém morrer assim perante bestas sem nenhum tipo de crença.

Elevei-me no ar e a minha espada reflectiu o sol sobre todos. Quando toquei o solo já dois ogres jaziam sem vida e os outros iriam seguir o destino dos anteriores. Um grupo daqueles não podia vencer dois soldados treinados e em segundos os que tinham tido a sorte de não terem conhecido as nossas laminas fugiam desesperadamente enquanto eu olhava para o cristal azul que pendia do pescoço do meu parceiro de batalha e aguardava pela surpresa que iria ter.


Noite

A ordem foi dada e as flechas voam de um lado para o outro contra os muros de escudos. Eu mantenho-me de pé confiante na sorte e devido ao súbito aparecimento da lua consigo ver o inacreditável, dos dois lados todos estão junto ao chão debaixo dos escudos enquanto os archeiros lançam de longe as suas flechas cegas, os dois exércitos orgulhosos parecem grupos de crianças aterrorizadas agarradas às saias das mães.

Duas figuras mantêm-se em cima das suas montadas como se as flechas não lhes pudessem tocar, uma delas sou eu, príncipe do norte, o que carrega a espada dos reis de outrora, o outro soldado sem medo veste de negro e usa a estrela azul ao pescoço.

Um relâmpago faz o meu cavalo estremecer e elevar-se, como se sentisse a fúria contida de todos os milhares de homens que o rodeiam. Eu sinto o mesmo e olhando para o meu pai, dou ordem de corrida ao meu companheiro de sempre. Não vejo o desespero nos olhos do Rei, mas sei que por baixo do metal que lhe cobre a cara as lágrimas correm, ele sabe que vou de encontro ao meu destino e que posso não voltar.


Dia

Tal como esperava não tive nenhum agradecimento e só tive uns segundos de descanso antes de ter de lutar outra vez. Os homens do sul acreditam nas leis antigas de duelo e antes de matarem sabem que se devem dar a conhecer. A máscara de combate caiu no chão e pude vê-la pela primeira vez com os seus cabelos e olhos negros. Uma guerreira que esperava apenas pelo passar dos segundos a que eu tinha direito, depois a luta recomeçaria.

Nas suas mãos vi um arma da qual já ouvira falar, era a espada de dois gumes, manejada por duas mãos e feita do mesmo material que a minha. Não haviam duas espadas daquelas, o meu oponente tinha-se identificado. Eu não sabia que o actual herdeiro do sul era uma mulher.

Ao seu ataque respondi com um desviar, mas não desembainhei a minha espada, esta luta não fazia sentido e eu não iria travá-la. Ela tocou na minha armadura mas não me feriu, estava a conter-se, mas não parava de me tentar atingir e saltámos de rocha em rocha com ela a tentar ferir-me e eu a tentar esquivar-me.

Agarrei de forma firme na sua espada e disse que não lutaria. Ela parou sem saber o que fazer enquanto eu destapava a face e olhou para o símbolo no meu peito. Eu não estava vestido como um príncipe, mas aquela também não era a armadura de um simples soldado. Ela percebeu finalmente e parou, os dois reinos olhavam-se nos olhos.


Noite

Do outro lado também uma figura se começou a mover, duas figuras negras que cavalgam sozinhas ao encontro uma da outra. Não penso no que vai acontecer, só grito para irmos cada vez mais depressa, com as mãos na rédeas e olho para o vulto que se aproxima.

Saltamos no ar mas não nos tocamos, caímos no chão e o metal das nossas espadas reflecte a lua antes de nos aproximarmos. Estamos de cara destapada e podemos ver os olhos um do outro, onde as lágrimas contidas se podem ver quase a cair na lama. Não falamos e parece que o tempo pára naquela noite de tempestade.

De repente gritamos furiosamente e desferimos golpes furiosos contra o outro, somos ambos guerreiros de excepção, quase iguais na arte da guerra e facilmente anulamos os golpes contrários. O que estamos nós a fazer?


Dia

Mais ogres aproximavam-se e saímos daquele lugar, cavalgando lado a lado até ao monte verde que parecia ser o destino dos dois naquela terra hostil. Ela tinha uma voz doce e agradeceu a minha intervenção, apesar de dizer que não era necessária, hoje sei que falava verdade, mas na altura admirei apenas o orgulho nos seus olhos.

Queria que o tempo tivesses parado naquele dia, pois foi o mais perfeito de todos os da minha vida. Subimos ao altar antigo e cada um cumpriu o objectivo da sua viagem, como é que os príncipes dos dois reinos inimigos tinham os mesmo costumes? Não entendíamos o sentido de tal coincidência mas sabíamos que deveria significar alguma coisa.

Conversámos durante horas e antes da noite se aproximar e de termos de voltar para os nossos, fizemos uma última paragem, chegara a hora dos nossos caminhos tomarem sentidos opostos. Não falei muito pois não havia muito a dizer, toquei levemente no seu rosto e fixei longamente o cristal azul. Ela não disse nada, tocou apenas na minha mão e nos rasgões que tinha feito na minha armadura, mas os seus olhos disseram tudo o que eu precisava e eu prometi-lhe que o futuro seria diferente.


Noite

Como é que deixámos isto acontecer? Como é que os anos passaram e não conseguimos que aquele dia tivesse mudado alguma coisa?

Sentimos os olhos dos outros em nós, sentimos o peso de todo este ódio nos nossos ombros. Estou cansado e quase que desejo não conseguir deter um dos seus golpes, olho os seus olhos e vejo que ela também deseja o mesmo. Então avançamos um para o outro e as nossas espadas chocam violentamente deslizando uma na outra, ficamos perto e consigo sentir a sua respiração e o seu cheiro. Trocamos palavras de amor e de despedida e erguemos as nossas armas num gesto que todos compreendem, chegou o fim, a guerra termina aqui, com o nosso amor, com o nosso sangue.

Caminhando

Vinte e três

Estava casado há cinco anos e nunca tinha traído a minha mulher. Era este o meu pensamento enquanto olhava para o gelo no fundo do copo naquele bar no meio do Porto. Estava já ali há duas semanas em trabalho e tinha ganho algum afecto por aquele canto mesmo no meio da cidade, que ficava muito perto do meu hotel.

Era uma espécie de mistura entre os bares que frequentara na província, antes de ir estudar para Lisboa, e os bares cheios de universitários que conhecia na grande cidade e que, felizmente, não frequentava há muito.

O tipo de clientela era muito heterogéneo, mas a média de idade não era muito alta, ia desde os vinte e poucos até aos trinta e muitos, eu estava no meio. Esta posição era-me favorável pois podia sonhar com todos, ou melhor com todas.

Era nisso que eu pensava naquela noite de calor, nada própria daquela altura do ano. Nas pessoas que estavam ao meu lado e na minha vida, principalmente no meu casamento. Não é que não fosse feliz mas ao fim de uns anos as dúvidas, que sempre existiram, tornaram-se mais fortes e eu comecei a questionar tudo e a olhar para o lado de outra maneira.

Tinha crescido observando as relações dos outros e quando chegara à idade adulta tinha mais que informação suficiente para saber que a fidelidade era um mito. Mesmo assim tinha-me recusado a acreditar que tal fosse uma fatalidade e tinha casado acreditando que podia fugir ao que era o mais óbvio. Com o passar dos anos fui vendo as coisas que iam acontecendo nos casamentos dos meus amigos e a descrença começava a apoderar-se de mim.

Levantei os olhos do copo e reparei que ao meu lado estava uma rapariga sozinha a escrever numa folha descontraidamente. Era mais ou menos da minha idade, ou pelo menos assim parecia e era muito bonita, com uma cabelo preto curto e uma pele muito branca. Estava vestida com umas calças de ganga escuras e com uma camisola preta de mangas compridas, tudo muito simples, como eu gostava.

Sempre olhei para as pessoas, sempre observei todas as pessoas que por um motivo ou outro apareciam à minha frente e sabia que às vezes chegava a exagerar na forma como olhava. Este caso era especialmente difícil, pois ela estava muito perto de mim e eu para olhar ia dar muito nas vistas. Já estava quase com o pescoço todo torto numa posição completamente ridícula, quando o empregado do bar se dirigiu a mim e perguntou se me estava a sentir bem. Senti-me a ficar de todas as cores, sabia que ela tinha ouvido, sabia que ela podia ver a aliança na minha mão esquerda, esquecia-me sempre dela até ao momento em que me lembrava que nestas situações ela só fazia com que eu ficasse mais exposto.

Estive cinco minutos a olhar outra vez para o gelo e a pensar em ir dormir, quando de repente senti um frio no estômago e por impulso olhei directamente para ela e disse como me chamava, assim, sem nenhuma explicação ou introdução. Ela olhou para mim, esboçou um leve sorriso, disse o seu nome também e continuou a escrever. Fiquei completamente desarmado, tinha sido uma resposta que não dava para eu perceber nada e assim tinha que insistir e talvez fazer mais figuras tristes. Mas também muito pior não podia ficar e aproximei-me. Perguntei o que é que ela estava escrever e ela disse que antes de eu olhar para ela estava a escrever o nome dela repetidamente, mas que nos últimos minutos tinha estado a apontar o número de vezes que eu olhava directamente para ela, vinte e três. Eu achei impossível mas não argumentei.


Vinte e quatro

Conversámos. Mas não foi uma conversa de bar, não foi daquelas conversas em que se tenta meter toda a vida no menor número possível de palavras. Foi uma conversa calma, ao sabor da noite, em que as pausas em vez de constrangedoras foram reconfortantes. Quem era esta rapariga que eu parecia conhecer há tanto tempo? Que sensação era esta que me fazia estremecer um pouco de cada vez que a sua voz chegava a mim? O que estava eu a fazer?

Chegou a meia-noite e eu achei que me devia ir deitar, estava tudo tão perfeito que pensei que era melhor não exagerar, sabia que mais uns minutos e ainda acabava a desculpar-me por ter olhado tanto para ela ou a explicar que não estava a atirar-me a ela, enfim, coisas minhas. Despedimo-nos com dois beijos na face e nem falámos em trocar telefone, mails ou outro meio qualquer de contacto. Fiquei a vê-la a descer a rua sem nunca ter olhado para trás, esta segurança é que me desarmava, pois eu não sentia que ela fosse assim, achei que devia ser só comigo, um pensamento agradável, ou não.

Fui para o quarto e sentei-me na varanda a olhar o céu. Sempre sentira que não tinha crescido o suficiente, mas agora cada vez sentia mais que não sabia nada de nada. Fiquei ali umas duas horas a pensar na vida e a pensar nela, que estranho encontro, que estranha empatia. Sabia que devia ter ficado com o telefone dela, mas a vida é estranha e arranja maneiras.


Dez

Passou um ano em que não fui ao Porto uma única vez, até que numa tarde de Outubro recebi uma chamada do meu chefe a perguntar se era possível eu ir na semana seguinte passar uns dias ao Norte para acompanhar um projecto importante, eu aceitei.

Apesar de ter ficado no mesmo hotel que no ano anterior não me atrevi a ir ao bar onde tinha conhecido aquela rapariga que de vez em quando ainda invadia os meus sonhos. Tinha medo de não a encontrar e isso ser uma desilusão, um comportamento pouco aceitável para uma pessoa da minha idade, mas que eu não conseguia deixar de ter.

Foi no outro lado da cidade e sem muita vontade que, no terceiro dia fora de casa, eu fui com uns colegas a uma discoteca. Nunca gostara daqueles ambientes cheios de fumo e acabava sempre a um canto a perguntar como é que tinha ido ali parar, enquanto observava a multidão histérica a correr para a pista de dança ao toque do êxito do momento.

Esta vez não foi excepção, mas tinha escolhido um canto muito bom, onde mesmo sentado conseguia observar tudo o que se passava e fiquei por ali olhando para toda aquela gente divertida até que alguém me tocou ligeiramente nas costas. Não posso dizer que tenha ficado surpreendido, era algo que eu não sei porquê já esperava, mas fiquei um pouco nervoso, estas coincidências sempre me tinham incomodado.

Ela estava na mesma, a mesma calma no olhar, o mesmo sorriso doce. Como eu ficava desarmado perto desta mulher, parecia mesmo um adolescente. No entanto, a conversa foi outra vez fácil e a noite foi avançando enquanto falávamos como se o nosso encontro anterior tivesse sido no dia anterior. Até que veio o silencio no meio de todo aquele barulho ensurdecedor e ficámos só a olhar um para o outro sem dizer nada. E eu mudei.


Um

Agarrei-lhe num braço e fiz sinal para irmos embora. Ela pareceu surpreendida com a minha atitude, pareceu não estar à espera do meu olhar decidido, mas eu também tenho os meus momentos e ela não disse nada e seguiu-me apenas com a sua mão na minha.

Caminhámos muito pelo centro da cidade quase deserta, sem que ninguém dissesse uma única palavra. Mas continuávamos de mãos dadas, continuava a sentir a sua pele na minha com um aperto ligeiro mas firme, como se fosse uma criança que seguisse o pai distraidamente, mas com a atenção suficiente para não se perder.

A minha cabeça não pensava em nada e foram momentos muito estranhos, pois eu tinha entrado numa espécie de transe em que sentia que claramente não dominava a minhas acções, embora tudo fizesse sentido. Então parei e pedi desculpa. Ela perguntou, porquê, mas a segurança na sua voz não era a mesma e eu percebi que ela estava nervosa. Ficámos longos minutos a olhar um para o outro no meio da rua e eu sentia-me como se estivesse a ver um filme, como se eu observasse toda esta cena de fora.

Eu não queria ir embora, não queria deixar à sorte a possibilidade de voltar a encontrá-la, mas não sabia o que fazer. Estava frente a uma pessoa que mal conhecia e com a qual só tinha tido duas conversas e com um ano de distância, mas que eu sabia estar ligada de alguma maneira ao meu destino, destino no qual eu não acreditava. Não sei quanto tempo estivemos ali parados, o tempo parou, então eu sorri e larguei a sua mão sem deixar de olhar para os seus olhos. Disse-lhe que nunca a esqueceria e desta vez fui eu que desci a rua sem olhar para trás, algumas lágrimas caíram-me dos olhos, mas continuei.


Dois

No dia seguinte acordei com uma sensação estranha, uma calma estranha tendo em conta tudo o que se tinha passado. E o que é que se tinha passado? Esta era uma pergunta para qual eu não tinha um resposta fácil, decidi então não pensar mais no assunto, seria um sonho para recordar, uma memória meio desfocada que ficaria na minha cabeça sem provocar muito mal, esperava eu.

A semana no Porto transformou-se em duas, em que tive de trabalhar imenso, sem nunca sair à noite, até ao dia anterior a regressar a Lisboa, em que resolvi sair um pouco. Deixei o hotel sozinho e vagueei sem ver por onde andava, até que alguém me perguntou as horas, ainda era cedo, tirei os olhos do chão molhado da chuva e reparei que estava frente ao bar onde ia muito no ano anterior e onde tudo tinha começado, entrei.

Estava praticamente vazio e dirigi-me ao balcão sentando-me precisamente no mesmo lugar onde tudo tinha acontecido. Pedi uma bebida e olhei para ver se ela estava lá, mas não, o lugar estava vazio e senti um aperto no estômago, claro que eu queria que ela estivesse ali, mesmo que não soubesse o que fazer se tal acontecesse, mas eu desejava que ela estivesse ali.

Fiquei muito tempo a olhar para o lugar vazio, como se isso pudesse fazer com que ela aparecesse de repente. Senti-me triste, sentia que tudo o que tinha feito sentido já não fazia. Senti que não devia ter descido a rua sem olhar para trás, senti que tinha perdido uma oportunidade de algo, só não sabia do quê. Voltaria para Lisboa, voltaria para a mulher que amava, para a minha vida que nem sempre era cinzenta e o tempo mudaria tudo.

Levantei-me olhando uma última vez para o lugar cada vez mais vazio e despedi-me, olhei para o outro lado e comecei a andar quando reparei que do outro lado a dois lugares de mim estava ela a olhar para mim. Fiquei sem palavras. Mas ela não e perguntou-me se eu achava que as pessoas fazem sempre as coisas da mesma maneira. Eu disse que sim, pelo menos quando querem que algo de bom volte a acontecer. Ela sorriu e disse que não concordava, era no imprevisto que estava o segredo, não podíamos deixar o destino ditar as suas leis, era preciso que de repente virássemos à direita quando tínhamos de virar à esquerda, era necessário confundir o destino. Eu disse que não acreditava no destino, mas ela sabia que eu estava a mentir.

Acompanhou-me até ao hotel e ficámos parados à porta. Estávamos tão perto que eu sentia o seu perfume e as nossas mãos iam-se tocando como que empurradas pelo vento. Beijei-a, beijei-a como nunca tinha beijado ninguém na vida. O mundo rodou descontroladamente, as luzes dos candeeiros falharam, a chuva caía de uma forma estranha. Era eu ou o mundo tinha mudado? Era eu que enlouquecia, ou a cidade estava parada a olhar para nós? Não a larguei durante o que para mim foi uma eternidade e ao mesmo tempo o momento mais rápido da minha vida.

Olhei para ela e disse que a amava, ela sorriu enquanto uma lágrima lhe escorria pela cara juntando-se aos pingos da chuva. E então voltou a falar com aquela confiança que parecia só ter ao pé de mim. Disse que também me amava e que nunca tinha sentido nada assim por ninguém, disse-me que eu era o destino dela e que nem todas as pessoas encontram quem as pode fazer felizes. Mas também disse que, mais uma vez, tinha de seguir pelo caminho menos óbvio. Vi a mão esquerda dela fechada e pensei que nunca lhe olhara com atenção para os dedos, embora soubesse que eram os mais bonitos que já vira. Sorri e entrei no hotel.

Amanhã

Passou um ano e dois meses desde aquela noite chuvosa e passeio pela minha cidade. Voltei a estar sozinho e mudei tudo na minha vida. Deixei o emprego, voltei a escrever e comprei uma casa com uma vista sobre o Tejo que deixa qualquer um sem palavras. Pode parecer um pouco irresponsável uma pessoa que diz não acreditar no destino fazer depender a sua felicidade de um outro acaso que ninguém pode jurar que vá acontecer, mas a verdade é que já sou feliz, já encontrei a calma que há muito procurava e já encontrei o meu caminho, só que de vez em quando sigo por outra rua, pois é lá que eu a vou encontrar.

Vocês Sabem Lá

Ócio

Nunca me tinha sentido satisfeito com a vida e pensava quando é que conseguiria alcançar aquele “não sei o quê” para me sentir realizado. Nem sabia o que me esperava...

Tinha 30 anos e uma vida boa comparativamente com muitas das pessoas que conhecia, mas mesmo assim não chegava e eu estava sempre à espera de poder mudar, de descobrir qualquer coisa nova.

Nunca tinha gostado do que fazia, mas com os anos tinha-me habituado à ideia de que nem todos podiam ter trabalhos de que gostavam. Arrastava-me assim todos os dias para aquele escritório e trabalhava com a cabeça sempre noutro lado. Nem era um mau profissional, para quem não estava presente, mas o pior era a besta com quem tinha de trabalhar, um chefe que para além de deixar muito a desejar em hábitos de higiene, era o tipo de pessoa que nos rebaixava em todos os momentos.

A vida começava então quando saía do trabalho e podia fazer as coisas que gostava. Tinha uma casa pequena no meio da cidade que era muito frequentada por vários amigos. Éramos um grupo grande mas que se estava a desfazer com a avalanche de casamentos dos últimos anos. Depois vieram os empregos, os filhos, os sogros e cada vez eram menos as pessoas que frequentavam a minha casa e que mantinham contacto.

Eu próprio estivera quase para entrar naquele grupo, mas a certa altura tinha sentido que o meu namoro só servia para eu me acomodar e não seguir com a minha vida pelo caminho mais certo. O que acontecera, na verdade, é que tinha ficado sozinho e não tinha ido a “lado nenhum”.

Continuava mesmo assim todos os dias a prometer a mim mesmo que iria mudar, que iria ter um emprego mais realizador, que iria descobrir a mulher dos meus sonhos, enfim, que seria feliz. Mas os dias passavam e eu apenas me sentia mais sozinho e infeliz.

Era aquela sensação da música “...só quero estar onde não estou...”, uma indefinição que me deixava mais desorientado a cada dia que passava e fazia com que me refugiasse nos meus sonhos de forma mais intensa. Só que até os sonhos já não chegavam para compensar o que a realidade não trazia à minha vida e eu sentia-me a explodir.


Mudança

Foi com esta disposição que fui trabalhar naquele dia de Novembro e na verdade acho que foi por isso que tudo aconteceu. Nem sei bem quem começou, mas lembro-me perfeitamente como acabou, com vários dentes do meu chefe espalhados pelo chão e com mais um desempregado na cidade.

De certa forma tinha conseguido trazer alguma coisa de diferente para a minha vida mas não era bem o que estava à espera. Não ia ser fácil arranjar novo emprego depois do que tinha acontecido, já para não falar na situação de ter sido despedido com justa causa, não podendo recorrer ao subsidio de desemprego, tornei-me numa vitima para mim mesmo e fui-me abaixo.

Já há muitos anos que cortara todas as relações com a minha família e ter de lhes pedir ajuda não era uma hipótese para mim. Mas sabia que o dinheiro chegaria no máximo para dois meses e depois algo de grave iria acontecer. Foram dois meses muito rápidos em que fiz aquilo em que sempre fui muito bom, ou seja, nada. E até ao último dia não acreditei que iria se passar o que na realidade tinha que acontecer. Claro que fiquei sem casa.

Durante mais dois meses recorri à ajuda de alguns amigos que me deixaram ficar em casa deles, mas a vida é engraçada, pois as pessoas com quem eu podia mais contar ou estavam fora do país, ou tinham 3 filhos para criar, ou tinham ido estudar dois anos para os Estados Unidos. Onde é que estavam as pessoas? O que tinha acontecido ao mundo que me rodeava? Apesar desta inconstância eu era boa pessoa, eu sabia que sim, porque é que então me estava a acontecer isto?

E mais uma vez tive azar, o casal de amigos que me abrigava nas últimas semanas teve de largar a casa onde vivia em menos de uma semana e eu de repente estava sem ter onde ficar e com pouco dinheiro no bolso. Podia vender as coisas que tinha e que desde que tinha perdido a casa estavam guardadas num barracão de outro amigo, mas não eram muito valiosas. Quando perdi o emprego tive de vender as coisas mais valiosas por causa da indemnização que tive de pagar ao meu antigo chefe.

Quando entrei no quarto daquela pensão de quinta categoria não pude deixar de sorrir, não era bem o que tinha planeado como mudança, mas para já iria ter de servir.


Queda

Não foi uma estadia longa a da pensão, nem muito feliz. O pânico instalou-se e eu sentia que não ia poder adiar por muito mais tempo o que não podia ser adiado. Estava na rua, era uma questão de dias..

Uma pessoa nunca imagina o que é viver na rua. Quando andamos nos nossos carros aquecidos com a as nossas roupas de marca e olhamos para os sem-abrigo pensamos só no frio e na fome que devem ter. Mas viver na rua é mais do que isso, viver na rua é frio, é fome, mas também é insegurança, é falta de higiene, é sentirmo-nos uns animais à procura de um pouco de lixo para comer.

Claro que não se desce tão baixo logo de inicio, primeiro tentamos por tudo não nos deixar levar por aquele mundo, vamos a todas as instituições de apoio, a todas a sopas dos pobres, forçamo-nos a acreditar que vamos conseguir sair daquela vida depressa. Mas verdade é que vamos tendo menos esperança, vamos tendo mais fome, vamos cheirando cada vez pior e quando damos por nós já nos transformámos naqueles mendigos que durante anos observámos e pensámos como teriam ficado assim.

Mas não deixamos de ser quem somos, ou pelo menos eu não deixei. Os sonhos aí ajudam, mas só para manter o “eu”, só para não nos esquecermos quem somos. E voamos, voamos como nunca, apesar do nosso corpo estar mais pesado, apesar de fisicamente estarmos cada vez mais afastados do que fomos, o espírito pode ainda ter alguma chama.


Raiva

Passaram dois anos e transformei-me por completo. Não restava muito do ser humano alegre que tinha sido e arrastava-me pelas ruas da cidade sem nenhum sentido de hora, dia, ano, nada...foi então que aconteceu.

Um dia andava à procura de um sitio para dormir. Era uma noite fria, de um mês qualquer, de um ano qualquer e eu procurava só algum sitio onde não tivesse tanto frio, onde pudesse dormir, onde pudesse descansar. Nessa altura a noção de mim próprio era muito vaga e só consigo relembrar este dia pelo que aconteceu, pelo que fui capaz de fazer.

Encontrei um canto dentro de um prédio abandonado e encostei-me a uma parede. Fechei os olhos como se não os fosse abrir outra vez e dormitei. Mas passaram apenas alguns segundos e fui acordado por uma voz que me chamava, era outro como eu, outro desgraçado da vida. Uma mão estava estendida para mim com um pedaço de pão, uma oferta generosa, mas uma oferta errada.

Levantei-me de um salto e fixei longamente aquele homem que me oferecia comida. Olhei as suas longas barbas, a sua roupa rasgada, a sujidade que o cobria todo e pensei que estava a ver um reflexo de mim mesmo. A lua brilhou, iluminando uma parte do quarto onde estávamos e mostrou algo que não fazia sentido no meio daquela imundice, diante de mim estavam dois enormes olhos azuis de uma beleza invulgar. Os olhos nunca ficam sujos, os olhos brilham mesmo no meio da tristeza e aqueles brilhavam de uma forma assustadora. Não me contive...e ataquei-o.

Parti para cima dele com toda a força que me restava no corpo e bati-lhe, bati-lhe o mais que pude, bati-lhe com as mãos, com os pés, usei pedaços de madeira que estavam por ali perdidos e que espetei na sua carne, mandei-o contra as paredes e quis matá-lo, quis que sofresse, quis que ele sentisse a raiva que eu sentia por aquela vida. A violência que usei foi tão grande que o meu sangue juntava-se ao dele no chão de pó e terra suja, criando uma lama vermelha com um cheiro intenso que até hoje posso sentir.

Só parei quando ele perdeu os sentidos e corri...


Correr

E corri, corri como nunca tinha corrido até aquele dia...corri para longe do mendigo, para longe da sujidade, da fome, do sangue que ainda tinha nas minhas mãos. Percorri uma distância muito grande, sempre sem saber onde estava, com a chuva a cair sobre mim. Mas não havia chuva que lavasse o meu “eu”, não havia água que me limpasse, eu estava a chegar ao fim.

Mas continuei, continuei até que já não sentia nenhuma parte do corpo, continuei descalço e quase sem roupa por entre os automóveis, por entre as pessoas que fugiam assustadas. E eu não via nada, não via ninguém, eu só tinha vontade de fugir, só tinha vontade de chorar.

Lembrei-me então da minha família, dos carinhos que a minha mãe me tinha dado quando era ainda bebé, das brincadeiras com os meus irmãos, dos dias de Natal, da praia no verão, dos meus avós com os seus sorrisos doces, lembrei-me dos meus amigos, das minhas namoradas, até me lembrei do chefe desdentado. Foi como se toda a minha vida me tivesse a passado à frente dos olhos como num filme que alguém se esquecera de focar, uma cópia estragada de um filme distante, de algo que eu já não sabia se teria ou não acontecido.

Achei que ia morrer, eu queria morrer! Queria que tudo acabasse, queria poder fechar os olhos e sentir uma cama quente ao meu redor, dormir, dormir para sempre e sonhar com coisas boas...achei que era o fim.


Redenção

Acordei. Não tinha morrido e estava numa cama com cheiro a perfume, uma cheiro que eu já não sentia há anos. Não fazia a mínima ideia onde estava, mas deixei que este sonho se prolongasse por algum tempo, tentei saborear o cheiro a comida que vinha da porta entreaberta, gozei o sol que batia na minha cara quando o cortinado branco baloiçava suavemente. Não queria acordar daquele sonho e deixei-me estar sem me mexer, olhando para o vazio naquele pequeno quarto.

Depois ela entrou. Eu demorei para reconhecer a pessoa que estava junto a mim, cuidando das minha feridas e obrigando-me a comer, era uma amiga do passado. Alguém que eu conhecera pouco, mas que por milagre achara que não podia deixar um mendigo no meio do chão. Ela só me reconheceu no hospital para onde me levou e onde era médica, os meus olhos também estavam na mesma e apesar do brilho ser mais fraco, ela sabia que já os tinha visto.

O nome dela era Maria, como o de todas as mães e ajudou-me a renascer, ajudou-me com muita calma a voltar a mim, a sair do pesadelo onde me tinha enfiado e do qual julguei que nunca iria sair. Nunca houve nada entre nós, foi só uma amiga que apareceu à minha frente, uma amiga que me deu a força para eu começar, que teve a paciência para a minha adaptação a um mundo diferente. Pois tal como eu o mundo tinha mudado e eu não sabia. Eu não sabia nada para falar verdade, eu só sabia que pela primeira vez em anos tinha sorrido e chorado durante horas logo a seguir...


Esperança

Os meses passaram e a vida voltou, não era a minha vida antiga, mas era uma boa aproximação. Depois de tudo o que passei sentia uma calma interior, que era como que o acabar de todo aquele desejo do “não sei o quê”, parecia que crescera como pessoa.

Os meus amigos voltaram para mim, ou melhor, eu voltei para eles e até fui visitar os meus pais, a quem não tive coragem de contar o que tinha acontecido. Até porque cada vez mais parecia que não tinha acontecido nada, que eu tinha adormecido e tido o mais negro dos pesadelos.

E foi com uma alegria suave sempre presente que passeava com alguns amigos numa tarde de Outono quando deparei com o mais bonito pôr-do-sol que alguma vez vi em toda a minha vida. Todos os prédios reflectiam aquela luz e pareciam todos pintados de amarelo torrado, como se eu próprio os tivesse pintado com os meus marcadores de quando era miúdo. Encostei-me e respirei fundo, sentindo todo aquele prazer de estar vivo, com amigos ao meu lado e podendo só fechar os olhos e sonhar.

Foi então que vi alguém no chão ao meu lado, era um mendigo. Na verdade era uma amostra do que uma pessoa pode ser tal era o mau aspecto que apresentava. Alguém que estava comigo apressou-se a dizer para sairmos dali e comecei a andar quando olhei para trás e vi numa das suas mãos retorcidas um pedaço de pão que esticava na minha direcção. Na sua face disforme, nem um sinal de emoção, nem um sinal de tristeza, maldade ou qualquer outro sentimento, era uma cara vazia. Mas os seus olhos azuis abriram-se e misturaram-se com as cores do final de tarde, era um azul mais fraco mas que teimava em brilhar. Olhei para eles durante uns segundos que me pareceram uma eternidade e afastei-me apressadamente para apanhar os meus amigos, ainda olhei mais uma vez para trás e a mão continuava estendida para mim. Afastei-me para sempre.

Apesar de tudo sou feliz, choro, mas sou feliz e continuo a passear ao final do dia com amigos ou sozinho e sei que um dia posso encontrar outra vez o meu destino, ou então posso só ter uma vida normal como todos os outros...