segunda-feira, fevereiro 27, 2006

Onze

- No que é que estás a pensar?
Conhecia Maria há tanto tempo que não me passava pela cabeça conseguir esconder-lhe algo, mas naquele dia pensei duas vezes antes de responder.
- Lembrei-me de uma coisa de repente.
- De uma coisa?
- Sim, uma coisa que aconteceu há uns meses atrás.
Diverti-me com o seu olhar curioso.
- Sabes a final da Taça UEFA do ano passado?
- Da Taça UEFA? Estás a falar de futebol, certo? Achei que fosse alguma coisa interessante.
- Vá lá, não sejas assim, a final à qual foi o Sporting, no seu estádio, contra uma equipa russa?
- Sim, tenho uma ideia, perderam, não foi?
Suspirei com a recordação.
- Mas porque raio foste pensar nisso agora?
- Eu na verdade penso muitas vezes nisso.
Ela riu com aquele riso de criança marota que nunca tinha perdido.
- Vocês homens são demais.
- Mas queres ouvir ou não? Afinal tu é que perguntaste no que é que eu estava a pensar.
- Tens razão, desculpa, podes continuar.
- Bem, não sei se te lembras mas eu fui ver o jogo ao estádio com um bilhete que ganhei num concurso.
- Já me lembro, tinhas de telefonar e eles davam um bilhete de mil em mil telefonemas.
- Vês...
- Deves ter achado que os astros estavam alinhados e que era o dia perfeito para uma grande vitória.
- Tu brincas, mas por acaso achei, mas isso não é importante, o que interessa é que fui sozinho ao jogo e lembrei-me agora de uma pessoa que ficou ao meu lado.
- Uma pessoa?
- Sim, um homem.
Maria abriu mais os olhos, normalmente as nossas conversas não eram sobre homens.
- E o que é que esse homem tinha de especial?
- Era um sujeito com um ar bastante desagradável, com um ar acabado, de quem tinha tido uma vida cheia de problemas. Lembro-me que cheirava a tabaco de uma maneira muito intensa, como se tivesse fumado sem parar durante anos, durante o jogo nunca o vi sem ter um cigarro na mão.
- Gosto destas tuas descrições, mas não estás a compor uma personagem muito agradável.
Bebi o resto da Coca-Cola que tinha no copo e continuei.
- Pois, mas ele era mesmo assim, o género de pessoa que não apetece estar ao pé, acho que foi aí que os astros começaram a ficar desalinhados.
- E o que é que esse homem tinha de tão especial, além de cheirar a cigarros? Suponho que não foi só por isso que te lembraste dele.
- Não, não foi.
O ar dela era cada vez mais impaciente.
- Rui, estou a dez segundos de me desinteressar por esta história, não podes ir mais depressa?
Eu ri com o ar zangado dela, esta era uma critica antiga, mas eu sabia que ela me ouviria até ao fim.
- Quando o jogo estava a começar, sabes quando as duas equipas estão alinhadas?
- Sim, sim, segue por favor.
- Bem, nessa altura ele puxou de uma máquina fotográfica, uma daquelas digitais mais baratas que nem visor têm.
- Sim, e?
- E começou a tirar fotografias com a máquina ao contrário.
- De pernas para o ar?
- Não, ao contrário mesmo, a espreitar pela objectiva.
- Estás a brincar...
- A sério, fartou-se de tirar fotografias e nem uma com a máquina virada para o relvado.
Maria ficou pensativa e esperou um pouco antes de falar.
- Sinceramente não sei o que é mais estranho, se o homem a tirar as fotografias ao contrário, ou tu lembrares-te de repente disso, nunca me tinhas contado isto.
- Nunca contei a ninguém, acho que fiquei tão triste com o jogo que apaguei alguns pormenores da minha cabeça.
- E agora veio-te assim tudo de repente. Tu és estranho, sabes isso, não sabes?
Sorri para ela.
- Mas a historia não acaba aqui.
- Espero bem que não.
- Eu chamei-o à atenção.
- Tu?
O ar de espanto era dos maiores que eu já tinha visto na cara dela.
- Mas tu tens sempre vergonha de falar com as pessoas. Não acredito que foste dizer ao tipo o que ele estava a fazer, foi como chamares-lhe doido.
- Sim, eu sei.
- E o que é que ele disse?
- Falou de discos.
- De discos? Mas que discos?
- Discos, música.
O empregado da esplanada onde estávamos sentados aproximou-se e retirou da mesa as garrafas vazias. Perguntou se queríamos mais alguma coisa e eu agradeci com uma aceno, ela não respondeu.
- Mas o que é que ele disse exactamente?
- Que os melhores discos tinham sempre onze músicas.
Maria acendeu um cigarro e fumou-o pensativamente.
- Tu estás a gozar comigo, certo?
- Não, ele disse o que eu acabei de dizer.
- Deixa-me recapitular, tu estás aqui a passar a tarde com a tua melhor amiga na melhor esplanada de Lisboa, uma vista sobe o Tejo que nos faz sonhar e de repente...de repente lembraste de num jogo de futebol teres visto um homem com mau aspecto tirar fotografias com uma máquina ao contrário, homem esse que te deu conselhos estranhos sobre música. Está a faltar alguma coisa?
A vista da esplanada era a razão porque insistia com Maria para irmos ali tantas vezes, era capaz de ficar horas a olhar para os cacilheiros a cruzarem o rio. Respondi-lhe sem olhar para ela.
- Não, resumiste bem o que se passou.
- E o que é que tu lhe disseste?
- Nada.
- Nada?
- Sim, o jogo começou e eu não disse mais nada.
Ela ficou calada durante vários minutos a olhar para o rio. Nós costumávamos nos gabar dos nossos silêncios nunca serem constrangedores, mas naquele dia, pela primeira vez, senti o desconforto das palavras não ditas. Então ela fixou-me nos olhos e falou com um ar calmo.
- E acabou assim?
- Sim, o jogo acabou, nós perdemos, eu vim-me embora e não voltei a pensar no assunto, só que...
- Só que?
- A verdade é que nunca liguei as duas coisas, mas de há algum tempo para cá que quando compro um disco a primeira coisa que faço é contar as músicas.
Ela sorriu antes de falar.
- Rui, isto nunca aconteceu, pois não?
- Se tu quiseres aconteceu.

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

A chuva não parava de cair

A chuva não parava de cair, uma chuva fina daquelas que pode cair durante horas a fio, sem um segundo de intervalo, sem um momento de descanso. Rui lembrou-se outra vez do momento em que tinha decidido vir a Londres.
Era tarde e tinha de escolher um sítio para comer. Reparou numa montra iluminada do outro lado da rua, uma pizzaria com um ar acolhedor que o convenceu sem ter de pensar. Entrou e sentou-se numa mesa perto da janela, agora já não se importava que chovesse e enquanto esperava ser atendido divertia-se a observar o reflexo das luzes dos carros no vidro salpicado por pequenas gotas de água.
O restaurante não era muito grande e não estavam muitas pessoas na sala. Todas as mesas estavam cobertas por uma toalha de quadrados vermelhos e brancos e tinham sobre elas pratos, talheres e copos que brilhavam ao luz de velas. Pela primeira vez desde que chegara sentiu-se bem e quase desejou poder ficar ali apenas a observar, a olhar os outros.
Uma voz chamou-o à realidade.
- É português? Acertei, não acertei?
Ficou de tal forma espantado que não respondeu logo ao homem parado à sua frente e que começava a perder o sorriso enquanto tentava emendar o que tinha dito.
- I’m sorry, please...
Interrompeu-o.
- Não, não peça desculpa. Sim, sou português, mas como é que descobriu?
- Ah! Eu sabia, em vinte anos nunca me enganei uma única vez, acho que deve ser um dom que eu tenho.
- Um dom?
- Sim, um dom.
E rebentou num riso que o deixou muito vermelho, seguido de uma tosse que parecia ir durar para sempre. Demorou a recompor-se e continuou.
- Ai, desculpe, mas é este maldito tempo, as saudades que eu tenho de Portugal, do nosso sol.
- Pois, imagino.
- E vive onde, lá na nossa terra?
- Vivo no Porto, mas nasci e cresci em Lisboa.
- Muito bem, muito bem, que saudades...nem imagina...mas não o chateio mais, aqui tem a lista, fique à vontade.
- Obrigado.
Ficou a ver o homem a dirigir-se a outra mesa onde um casal se tinha acabado de sentar e reparou que não parecia a mesma pessoa, como se a alegria se tivesse apagado no momento em que começara a falar outra língua. Baixou os olhos para a lista e começou a ler quando ouviu uma voz atrás de si.
- Eu devo ser a única pessoa em que o dom dele não funciona.
Virou-se para ver quem estava a falar e encontrou uns enormes olhos azuis que o olhavam a sorrir.
- Desculpe?
- Estava a dizer que o dom dele não funciona comigo, já uma vez me perguntou se eu era francesa, mas quando eu lhe disse que não fez um ar estranho e não perguntou mais nada.
- Se calhar não funciona com raparigas louras de olhos azuis.
Ela riu e passou as mãos pelo cabelo.
- Se calhar não...eu sou a Susana e estou em Londres há dois anos, tu deves estar de férias, certo?
Rui olhou para a mochila que o denunciava.
- Sim, estou...eu sou o Rui, queres...eu não sei se...o que eu queria dizer era...
- Se me quero sentar contigo?
- Sim, desculpa...é que não estava à espera de encontrar...de encontrar alguém com quem conversar, ainda por cima alguém português, tenho passado muito tempo sozinho nos últimos dias.
Ela levantou-se e sentou-se ao lado dele.
- Mas quando ele vier aí outra vez não lhe digas nada, está bem? Não quero que ele se sinta infeliz, sempre são vinte anos sem falhar uma única vez.
- Eu não digo, está descansada.
Durante o jantar Susana contou que viera para Londres estudar um ano e que tinha acabado por ficar a trabalhar na Universidade. Não tinha sido nada muito planeado e desejava voltar a Portugal, só não sabia muito bem quando. Rui não contou porque é que viajava sozinho e desejou que ela não perguntasse, estava a ser uma noite muito agradável e não lhe apetecia recordar os últimos meses da sua vida.
Era quase meia-noite quando deixaram o restaurante e como não chovia decidiram caminhar um pouco.
- Acho que da próxima vez que lá fores devias dizer alguma coisa.
- Estás tonto? Ele nunca me ia perdoar e eu gosto muito de vir aqui. De qualquer forma se ele não descobriu até agora, já não vai descobrir.
- Sim, acho que tens razão.
- Mas mudando de conversa, só temos falado quase de mim.
Rui ficou pouco à vontade e as palavras saíram com dificuldade.
- O que é que queres saber mais sobre mim?
- Estou a ver pelo tom que não é um assunto que te agrade.
Ela falava de um forma directa, mas delicada e isso desarmava-o.
- Desculpa, eu realmente tenho tentado não pensar muito em algumas coisas nos últimos tempos.
- Mas não tens de falar se não quiseres.
Parou no meio da rua e olhou para ela demoradamente.
- Mas eu quero, ou melhor, eu não quero...mas preciso. E tenho a sensação que te posso contar tudo, porque achas que isso acontece? Será que é mais fácil partilhar as coisas que nos magoam com alguém que quase não conhecemos?
- Há quem prefira chamar a isso empatia, mas se calhar podes ter razão.
- Eu não queria dizer que não tenho empatia contigo...eu...tu percebes...
Ela sorriu.
- Claro que percebo. E estou a ouvir.
Olhou outra vez para os olhos dela e sentiu um frio no estômago.
- Sabes? E se de repente não fosse assim tão importante?
- Como?
- Se não fosse tão importante tudo o que aconteceu até hoje. E se eu te dissesse que estou farto de ser tão complicado, de fazer a vida tão complicada? Porque é que não pode ser tudo diferente? Porque é que eu tenho este feitio? Porque é que eu penso um milhão de vezes nas mesmas coisas? Porque é que eu sou tão ansioso? Porque é que eu não posso dizer apenas que sou eu? Que existo e que estou aqui, que há duas horas atrás não te conhecia e que agora estou à tua frente e me sinto completamente apaixonado por ti...me sinto apaixonado por ti e sei que isso não faz sentido nenhum e que estou só outra vez a ser o mesmo impulsivo de sempre, estou a ser...
Parou para respirar e continuou.
- Susana, eu quero ser diferente, eu quero mudar, mas não quero deixar de ser o que sempre fui, não quero perder as coisas boas que tenho, não quero...já não sei, isto faz algum sentido para ti?
Mais uma vez os olhos dela sorriram para ele.
- Afinal sempre tinhas alguma coisa importante para dizer.
- É...acho que sim, desculpa...uma pessoa passa anos a esconder as coisas dela própria e depois explode.
- E isso é mau?
- Não sei se é mau...é novo para mim.
Ela aproximou-se dele e agarrou-lhe com força uma das mãos.
- Anda! Acho que temos de conversar, acho que tens muito para falar, muito que está aí dentro guardado.
Ele não respondeu e apenas seguiu a seu lado. As ruas estavam quase desertas e enquanto observava a cidade pensava no que tinha acabado de dizer.
Ela reparou no ar sério dele e brincou.
- Então estás apaixonado por mim?

domingo, fevereiro 19, 2006

Sombras

João crescera longe da grande cidade e habituara-se a olhar as coisas de outra maneira, a prestar atenção aos pormenores que os outros deixavam escapar.
Naquele dia chuvoso de Novembro caminhava pelas ruas desertas e olhava os edifícios antigos, sorria com os pequenos detalhes esquecidos e admirava a coragem de quem os tinha imaginado. Observava os monstros desenhados na pedra, sentinelas antigas que protegiam a cidade há centenas de anos e pensava porque é que os homens tinham deixado de os fazer. Gostava de passear debaixo das estátuas e imaginar que um dia uma delas podia soltar-se e cair com violência sobre ele. Era a sua forma de desafiar o destino, de lembrar a si próprio como era frágil e como tudo podia mudar num segundo.
Desceu uma rua ao acaso e percebeu que nunca ali tinha estado, todas as casas eram antigas e pareciam desabitadas. Reparou que todas as janelas estavam fechadas e pensou há quanto tempo estariam abandonadas. A rua não tinha saída e acabava num muro que escondia um jardim com árvores gigantes que deviam ser mais velhas que a cidade.
Parou junto a um portão enferrujado e espreitou por entre as grades, podia ver o que parecia ser um palácio escondido pela vegetação que crescia livremente e tapava as pedras que um dia tinham sido brancas. Junto ao portão uma estranha torre de cor escura guardava a entrada, parecia-se com os jazigos dos cemitérios e teve vontade de saber quem repousaria ali.
De repente ouviu um barulho metálico e o portão abriu-se um pouco, empurrado pelo seu próprio peso. Largou as grades e recuou dois passos, tinha vontade de entrar e descobrir o que se escondia por entre as árvores, mas hesitou um pouco. Apesar de toda a curiosidade estava com um pouco de medo e demorou alguns segundos antes de decidir entrar empurrando a estrutura metálica que estranhamente deslizou sem dificuldade.
Mal entrou ficou parado junto à torre que observara do lado de fora e pareceu-lhe menos assustadora, já não lhe parecia tanto um jazigo e depois de passar uma das mãos pela pedra gasta continuou por um caminho desenhado no chão que desaparecia pelo meio dos arbustos altos.
Depois de caminhar alguns metros pelo caminho apertado, encontrou uma clareira onde a luz rompia por entre as sombras das árvores. No meio daquele espaço aberto estava uma fonte que não deitava água e um banco onde alguém estava sentado. Era uma senhora de cabelo branco vestida com um vestido cinzento que levantou a cabeça quando o ouviu aproximar-se e falou com ele.
- Olá.
João pensou se não deveria ter entrado no jardim.
- Boa tarde. Desculpe a invasão, mas o portão estava aberto e eu não resisti a entrar.
- Não faz mal, tudo aqui está abandonado, por isso acho que já não pertence a ninguém.
- A senhora sabe de quem é este jardim? Ele pertence à casa que vemos da rua?
- Sim, o jardim pertence à casa, mas não sei dizer a quem pertence a casa, já passou tanto tempo.
- Tanto tempo? Desde o quê?
Ela fez um ar muito sério e endireitou-se no banco antes de continuar.
- Eu já vivi naquela casa, desde que nasci até aos meus dezoito anos. Já era uma casa antiga naquela altura e acho que ninguém sabe quem a construiu.
- A sério? Viveu mesmo aqui?
- Sim, brinquei neste mesmo jardim quando era criança.
- Sempre admirei estas casas antigas e fico a imaginar que histórias terão para contar.
A senhora fez um ar triste.
- A história deste sítio não é uma história alegre.
- Não é?
- Não, é uma história de amor, mas de um amor impossível, um amor que trouxe muito sofrimento a todos os que aqui viviam.
- Mas o que é que aconteceu?
- O mesmo que aconteceu tantas outras vezes em tantos outros sítios, um olhar mais demorado, um toque ligeiro de mãos, um beijo roubado debaixo destas árvores. Foi um amor que só devia ter acontecido anos mais tarde, mas que não conseguiu esperar.
João queria perguntar o óbvio, mas os olhos da velha senhora tinham-se enchido de lágrimas e não teve coragem de falar, ficou apenas sentado a seu lado a ouvi-la contar como há muito tempo haviam muitas flores por todo o jardim que depois eram levadas para a casa e enchiam de perfume os corredores compridos. Ela contou também sobre as festas que ali tinham acontecido e de como toda a rua era iluminada por velas que levavam até à entrada da casa. Nesses dias todos ficavam à janela a ver as pessoas a chegarem nos seus vestidos elegantes.
Quando finalmente decidiu que se devia ir embora, sentiu um enorme carinho pela senhora e sabia que nunca ia esquecer as histórias que ela lhe tinha contado.
- Bem, acho que vou andando. Obrigado por esta tarde e pelas histórias que me contou.
- Não tem que agradecer meu jovem, eu é que agradeço a paciência com esta velhota.
Ele sorriu envergonhado.
- E fica bem aqui? Daqui a pouco fica tarde e vai começar a escurecer.
- Obrigada pela preocupação, mas eu estou à espera da minha neta, ela vem sempre ter comigo ao fim da tarde.
Meteu-se outra vez por entre os arbustos e caminhou de regresso à rua. Na sua cabeça tinha ainda vivo tudo o que tinha ouvido e por momentos imaginou-se a viver muitos anos atrás.
Quando fechou ao portão e se preparou para regressar a casa sentiu que não estava só, olhou para trás e deu de caras com uma rapariga que o olhava com um ar zangado.
- Quem é você? O que estava a fazer aí dentro?
- Desculpe, eu reparei que o portão estava aberto e…foi mais forte que eu.
- Não o devia ter feito, não é um sítio público.
Rapidamente percebeu as semelhanças.
- Você deve ser a neta da senhora que encontrei lá dentro, eu…eu não lhe perguntei o nome, eu sou o João…passámos uma tarde muito agradável e ela está à sua espera, mais uma vez peço desculpa pela invasão.
Ela ficou calada e acenou apenas com a cabeça e começou a abrir o portão. Ele começou a subir a rua mas antes que ela entrasse parou e falou.
- Acha que posso voltar?
- Como?
- Se posso voltar aqui…não sei bem explicar, mas senti-me em casa e a sua avó é das pessoas mais encantadoras que já conheci.
Ela ficou um momento sem responder, mas depois sorriu e respondeu.
- Sim, pode, claro que pode, eu…eu peço desculpa por ter sido tão agressiva, mas tive um dia complicado e…e não estava à espera de encontrar alguém aqui.
- Não faz mal, eu percebo, bem…vou andando, pode ser que nos voltemos a encontrar aqui, adeus.
- Sim, pode ser que sim, adeus.
Luísa fechou o portão, afastou-se um pouco e quando olhou para o jazigo não conseguiu aguentar mais as lágrimas, começou a correr enquanto chorava e só parou quando chegou à clareira. Como sempre o banco estava vazio à sua espera, mas a recordação da sua avó ali sentada era mais forte e imaginava-a sempre a ler um livro, imaginava-a a contar-lhe histórias de príncipes e princesas enquanto ela a ouvia sentada no chão.
Tinha tido uma vida triste a avó Luísa, de quem tinha recebido o nome e também o feitio, segundo dizia a sua mãe. Gostava de lembrar-se dela ali sentada e raro era o dia que não visitava aquele sítio. Era a sua forma de não se despedir dela e de sentir que ela ainda estava presente.
Sentou-se no banco e recordou uma das últimas vezes que ali tinha estado com a avó, ela tinha lhe pedido para não esquecer aquele lugar, pois apesar de toda o sofrimento, era um sítio mágico. Luísa ria sempre com estas conversas da avó, mas daquela vez ela parecia estar a falar a sério. Repetiu em voz baixa as palavras que trocaram naquele dia.
- Não deixes nunca de vir aqui, promete-me isso.
- Eu prometo avó.
- E vive um grande amor, vive o que eu não consegui.

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

Cartas

Bissau, 17 de Fevereiro de 1969

Finalmente tenho algum tempo para escrever. São tantas as coisas que tenho para te contar que nem sei por onde começar, acho que por repetir infinitas vezes que te amo e que esta separação a que nos obrigam vai parecer pequena daqui a uns anos.
Apesar de estar contrariado num país que não conheço, a milhares de quilómetros dos que amo, não posso deixar de sentir que esta terra tem algo que cativa e não nos deixa indiferentes. Não consigo esquecer o momento em que saí do avião e senti o ar quente na cara, tive de reprimir a sensação de que aqui também estou em casa, de que aqui também posso ser feliz, pois sei que vim para uma guerra, para uma luta que não desejo e o meu único pensamento deve ser o de voltar para ti...


João parou de ler a carta que tinha nas mãos e olhou para a sua avó. Estava sentada muito direita ao lado do caixão castanho com um ar tranquilo, demasiado tranquilo para quem acabara de perder o companheiro de tantos anos. Caminhou até ela e beijou-a na testa.
- Estive a ler um pouco de uma das cartas que me deu, o avô falava de quando chegou à Guiné.
Ela esticou as mãos para as dele e falou devagar.
- Foi em Fevereiro, não foi?
- Sim, há quase sessenta anos.
- Ele queria muito que tu ficasses com estas cartas.
- Eu sei avó, mas elas...elas deviam ficar com a avó.
- Meu querido...eu não vou durar para sempre e o avô queria que aquele tempo não fosse esquecido.
- Mas porque é que não as deixou ao pai? Malditos teimosos...porque é que não se entenderam?
Ela passou a mão pelo cabelo negro dele e sorriu.
- Sabes que para nós sempre foste um filho, não sabes?
- Eu sei, mas ele é que é o vosso filho.
- E um filho que muito amo, mas a vida nem sempre é como queremos, o teu avô queria tanto ter sido um pai diferente, mas acho que só o conseguiu contigo.
- Eu tive dois pais maravilhosos...e duas mães também, mas porque é que as coisas não foram diferentes?
Não esperou pela resposta e afastou-se de volta ao sítio onde tinha começado a ler as cartas. Abriu a caixa de madeira que a avó lhe entregara no dia anterior e tirou uma carta ao acaso.


Bissau, 18 de Agosto de 1969

Só passaram seis meses desde que cheguei e tenho a sensação que sempre aqui vivi. Todos os dias sonho com o dia em que vou voltar a ver-te, mas não posso mentir, cada vez amo mais esta terra e sofro por tudo que aqui acontece. Às vezes à noite sonho com o fim da guerra e com nós dois a vivermos neste paraíso esquecido, sonho com os nossos filhos a correrem por entre as árvores e nós a bebermos chá frio ao fim da tarde. O pôr-do-sol aqui é tão bonito que nem o vou tentar descrever...


Guardou a carta na caixa e saiu da capela, era estranho estar a ler os relatos do avô. Ele nunca falava do tempo que passara em África e lembrava-se de uma vez lhe ter perguntado como é que tinha sido a guerra e de ter visto as lágrimas aparecerem nos seus olhos. Nunca mais lhe perguntara nada sobre a Guiné e agora sentia que de alguma maneira estava a magoá-lo. Mas tinha sido ele a querer que ficasse com as cartas e não ia pôr em causa a sua vontade.
O avô Fernando tinha sido mais do que um simples avô, tinha sido o seu companheiro de aventuras e recordava agora as tardes infinitas passadas a dois. Lembrou-se dos papagaios de papel de jornal, das fisgas feitas de borracha de pneus velhos, dos barcos esculpidos na madeira dos pinheiros, lembrou-se de tudo o que aprendera com ele e sentiu saudades.
Só tinha pena de não ter podido partilhar esses momentos com a única pessoa no mundo que amava tanto quanto o avô, o seu pai. Nunca percebera bem o que se tinha passado entre eles e com os anos deixara de tentar entender o que não parecia ser possível mudar. Sabia que tinham sido bastante próximos quando o seu pai era ainda criança, mas algo os afastara e o tempo escondera as razões.
Apagou o cigarro no chão de terra e dirigiu-se para o interior da capela, abriu outra vez a caixa e retirou outra carta.


Bissau, 23 de Setembro de 1970

Desculpa não ter escrito nas últimas semanas, mas as coisas aqui não têm sido fáceis. Os tempos de prazer acabaram e esta terra, que apesar de tudo teimo em amar, tornou-se um inferno para a maior parte de nós. Os combates são cada vez mais brutais, cada vez mais violentos, cada vez mais sem sentido e não sei quanto tempo mais aguentarei. Desculpa-me por ter de te contar estas coisas, mas não sei mais a quem recorrer, os meus companheiros passam o tempo a decorar as rezas que depois repetem enquanto se escondem de cara enfiada na lama e eu não tenho ninguém com quem falar. Eu não me escondo, não me escondo pois já perdi o medo e luto de peito aberto por algo em que não acredito...e acontecem coisas que eu não sei se alguma vez vou esquecer. Promete-me, promete-me que um dia me deixas deitar no teu colo e tentar não pensar mais nisto, promete-me que os nossos filhos não vão saber, promete-me que vou ser um bom pai...


A carta tinha mais linhas escritas mas João não foi capaz de continuar. Levantou-se e dirigiu-se à sua avó que continuava sentada no mesmo sítio, abraçou-a com força e chorou.
- Avó, tu não merecias ter tido de ler aquelas cartas...aqui longe sem poder fazer nada. Eu não fazia ideia...
- Não chores neto, elas fazem parte do passado, mas eu não podia não as ter lido. Foi saber que eu as lia que lhe deu forças para sobreviver. Sem isso ele não tinha conseguido, porque nós sempre partilhámos tudo e eu tinha de estar com ele, percebes?
- Acho que sim...mas é tão injusto, a vida é tão injusta...e o pai, o que aconteceu com o meu pai? Isto tudo...isto afectou muito o avô, não afectou?
- O teu avô teve uma boa vida...e teve anos maravilhosos com o teu pai, onde é que achas que ele aprendeu a brincar com crianças? Meu querido, ele adorava-te, tal como adorava o teu pai.
- Mas então porquê?
- Porque há marcas que ficam na alma de um homem, feridas que voltam a abrir quando menos esperamos, foi só isso. Mas não te quero ver assim, não foi para isto que ele te deixou as cartas, foi porque te adora e porque acha que apesar de tudo elas têm muitas coisas boas que merecem ser lembradas. É uma parte importante da vida dele...da nossa vida que está ali e deve ficar com alguém que possa compreender, que possa guardar tudo com amor.
- Amo-te avó, amo-vos muito aos dois.
Abraçou-a mais uma vez com força e pelo canto do olho reconheceu uma figura à porta da capela. Pela primeira vez reparou que estavam a ficar parecidos, que o tempo os aproximara de uma maneira que não podiam recusar. O seu pai tinha agora o mesmo cabelo grisalho que o seu avô sempre tivera e as mesmas rugas que se habituara a observar. Foi ter com ele e reparou nos seus olhos cheios de lágrimas que teimavam em não cair.
- Sabes pai, ele amava-te muito...
- Eu sei filho...eu sei, eu também o amo muito.

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Durante a Noite

Abro o frigorífico e olho lá para dentro. Tiro um pacote de leite e desejo que não tenha passado o prazo de validade. Tem a data do dia anterior e decido arriscar tentando ignorar o sabor esquisito que me convenço ser apenas da minha cabeça. Dirijo-me à sala às escuras e tento fazer pouco barulho, não quero acordar Teresa, principalmente depois da discussão que tivemos e que provocou a sua ida para a cama mais cedo.
Sento-me à mesa onde horas antes estivemos a comer e ligo o portátil, é algo que faço quase de forma automática, sem nenhum plano. Sei que devia ir deitar-me e abraçar Teresa, mas tenho a cabeça demasiado cheia, tenho de desabafar e só o vou conseguir se escrever algumas palavras. Juro a mim próprio que é só uma hora, mas sei que estou a mentir, nunca é só uma hora.
São duas da manhã e relembro a conversa do princípio da noite, relembro as palavras amargas que Teresa me disse e penso se ela terá razão, se eu mudei assim tanto nestes últimos anos. Sei que as coisas não são como antigamente, mas só nos últimos meses dei conta do quanto nos afastámos um do outro.
Sinto-me saturado e tenho vontade de sair de casa, de guiar sem destino durante horas, só eu e o barulho do carro. Olho para as chaves no móvel da entrada e domino o impulso de me levantar, se Teresa acordar sem eu estar em casa vai ficar preocupada e vai ser mais difícil pôr as coisas bem.
Tenho saudades do tempo em que nos conhecemos, do dia onde tudo começou, do cinema onde éramos as duas únicas pessoas na sala, da queda que dei na escuridão que castigava quem chegava atrasado. Nunca me vou esquecer do seu riso e do meu esforço para conter as lágrimas de dor. Lembro-me de me sentar a seu lado e de não conversámos durante todo o filme, mas de ter a certeza que estávamos juntos e que iríamos estar para sempre.
Os meus pensamentos são interrompidos por um choro, levanto-me e dirijo-me depressa ao quarto que fica ao lado do meu. Consigo lá chegar antes que Teresa acorde e com cuidado afasto os sonhos maus para longe. Sento-me na cama e deixo a mão por cima dos cobertores enquanto o embalo traz o sono até mim.
Acordo com uma mão na minha e pergunto se ele chorou outra vez, Teresa diz-me que não, que julgava que eu tinha adormecido na sala e que me tinha ido chamar. Observo-a enquanto puxa os cobertores para cima e lembro-me outra vez de nós. Ficamos um pouco a ouvir o seu respirar calmo e saímos do quarto de mãos dadas.

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

O Conto

Eram três da manhã e Ricardo continuava acordado, a seu lado Carla dormia profundamente sem saber que ele a observava. Passou os dedos pelos seus cabelos e dominou a vontade de chorar, o medo de a perder era quase insuportável. Ela acordou.
- Não estás a dormir...que horas são? Não reparei quando te vieste deitar.
- São três.
- O que se passa?
- Nada de especial, só não consigo dormir, volta para os teus sonhos.
- Agora já acordei...bem que podes me contar o que vai nessa cabeça.
Ela conhecia-o bem demais e não ia desistir, sabia que não ia conseguir desviar o assunto.
- Há uma hora atrás acabei de escrever o melhor conto de toda a minha vida.
- O melhor?
- Sim, o melhor.
Carla percebeu que ele falava a sério e esfregou os olhos para espantar o sono.
- E?
- E acho que não vou poder escrever mais nada depois disto.
- Não sejas doido.
- Estou a falar a sério.
- Mas porque é que dizes isso?
- Porque no momento em que acabei senti-me vazio.
Levantou-se e dirigiu-se à janela, não conseguia encará-la.
- Ricardo...olha, eu não quero parecer insensível, mas não achas que és capaz de estar a exagerar? Tu ficas sempre assim quando acabas de escrever algo. Eu percebo a tua angústia, mas vais ver que daqui a uns dias já estás frente ao computador sem me ligares nenhuma.
Ele virou-se de repente e deixou-a ver as lágrimas que lhe corriam pela cara.
- Eu não tenho mais nada para te oferecer.
- Ricardo...eu..eu sei que te pedi para falares, mas não vou ter uma discussão sobre as tuas inseguranças a esta hora, acho que devias tentar dormir.
Deixou-se cair na cama e tocou-lhe outra vez no cabelo, pensou se seria a última vez que o fazia.
- Desculpa, eu não queria chatear-te.
- Acho que devíamos falar amanhã, vais ver que já não pensas assim, não achas?
- Sim, não te preocupes, tu já sabes como é que eu sou, amanhã falamos.
- Eu amo-te, sabes isso, não sabes?
- Sim, eu sei, vai dormir, eu vou só à sala um minuto, tenho de gravar o que escrevi.
Ela olhou para ele com um ar espantado.
- Desculpa?
- O que foi?
- O que foi? Tu achas que escreves o melhor conto da tua vida e...e não o gravas?
Respondeu sem olhar para ela enquanto saía pela porta do quarto.
- Seduziu-me a possibilidade de o poder perder, uma estupidez, eu sei. Já volto.
Sentou-se frente ao monitor preto e tocou numa tecla qualquer, o texto apareceu de novo e leu mais uma vez o que tinha escrito nessa noite. Quando acabou escolheu um título banal e gravou o ficheiro. Foi-se deitar sem pensar no dia seguinte.