sábado, novembro 27, 2004

A Cidade

Rui sentou-se ao computador sem saber que ia começar a escrever o melhor conto de toda a sua vida. Estava algo melancólico por causa de uma música que ouvira na rádio e que o transportara para o passado. Não sabia porque é que dava tantas vezes voltas sobre a sua própria vida. Irritava-se por parecer que ia sempre parar ao mesmo sitio, ao mesmo bosque sombrio que o chamava e seduzia.

Os seus dedos viajavam de forma dolorosa por cima das teclas cinzentas e as palavras quase que pareciam sair deles e não do cérebro ou do coração. Era como se todas aquelas ideias aparecessem sozinhas, criadas do nada. Não havia controlo sobre o que escrevia, apenas fechava os olhos e continuava.

Só conseguia ver tons de verde e ouvir músicas estranhamente desajustadas que ligava numa história de amor sem sentido, um conjunto de coincidências que não tinham existido mas que eram infinitamente repetidas na cabeça de uma personagem, um prisioneiro do seu criador que lhe dera uma existência estranha num universo impossível.

Mas Rui também era prisioneiro das ideias de outros e escrevia influenciado por tudo o que tinha sentido até aquele dia. Sabia que não estava a criar nada de novo, apenas a deitar para fora o que tinha consumido sempre de uma forma intensa, demasiado intensa. E brincava assim com a vida de outros que não podiam fugir da vida que lhes tinha sido destinada.

As letras formavam cada vez mais uma história bela mas triste, onde um comboio passava por entre prédios com anúncios gigantescos com cores que iluminavam a noite e que eram quase insuportáveis para quem só queria chegar a casa depois de um dia monótono. O único prazer daquela viagem aparecia na terceira paragem onde por breves segundos ele podia espreitar para a mesma casa que observava há anos, podia fechar os olhos e continuar o resto da viagem fantasiando com uma vida que não era a sua.

Rui abriu os olhos e viu o seu reflexo no vidro do metro, gostava de olhar a sua própria cara pois os seus olhos contavam-lhe histórias que depois escrevia. Quando passava pelas estações a sua cara desaparecia e era substituída por outras que esperavam ansiosas, mas era uma questão de tempo até ter de enfrentar aquela expressão que sempre o acompanhava. Podia voltar aos seus pensamentos, às suas fantasias e sentar-se a escrever sobre um amor feito de filmes e músicas e de coincidências sentidas mas não percebidas.

Levantou-se da cadeira, dirigiu-se à janela e olhou a cidade, olhou para todas aquelas luzes que iluminavam outras pessoas, outras vidas que imaginava e conhecia. Não ia acabar a sua história naquela noite, se lhe desse um fim aquele amor morreria numa frase que não sabia como escrever.

Continuou a olhar a cidade e com a cara colada ao vidro ficou a olhar para o comboio parado frente ao seu apartamento...

quinta-feira, novembro 25, 2004

Uma tarde

Recordo-me daquela tarde como se fosse hoje. Quase que consigo sentir os cheiros à minha volta e o corpo dela encostado ao meu. Dois adolescentes sentados num pequeno muro sem pensarem no mundo à sua volta.

Era tudo muito simples, mesmo os problemas próprios da idade não cabiam ali. Sentia apenas a mão dela no meu cabelo e pela primeira vez na vida sentia uma verdadeira emoção que me alterava os sentidos e me fazia doer o estômago.

Hoje consigo pensar naquele momento como um momento perfeito e tenho pena de não o ter percebido na altura. Tenho pena de não ter compreendido que aquele momento iria eternizar-se na minha memória. Um quadro que vi num corredor cheio de luz e do qual nunca me esqueci...

terça-feira, novembro 02, 2004

Duas vidas

Entrei na papelaria à procura de uma revista que tinha a certeza ainda não tinha saído naquele mês. Percorri os corredores despreocupadamente até dar de caras com um livro de viagens. De repente, senti um cheiro intenso a livros, como se todas as obras ali à venda estivessem a chamar-me à atenção, olhei para a capa do livro de viagens mais uma vez e peguei-lhe devagar. Parecia que sorria para mim, envolvia-me com as histórias de locais longínquos e deixava-me a sonhar com outra vida, com as viagens que eu poderia ter feito, com as pessoas que eu podia ter conhecido. Seria tarde demais para seguir o meu destino?

Caminhei devagar para casa sem conseguir tirar o livro da minha cabeça, quase não chegara a folheá-lo, mas sabia bem o que podia encontrar nele. Os sons mudos do deserto, a chuva forte na minha cara, o fumo do tabaco seco a encher-me os pulmões. Experiências que eu não tinha podido ou querido ter, aventuras onde outro tomara o meu lugar. O que é que ele teve de deixar para trás para poder roubar o meu caminho? Quem teria ficado à espera durante meses infinitos? Quem se teria cansado dos sorrisos no regresso?

Meses antes tinha tido um sonho, uma viagem por savanas sem fim com o céu a olhar para mim. Na altura não tinha entendido o significado do sonho e escrevera sobre ele apenas para não me esquecer das sensações que senti e que eram novas. No meio de uma noite, acordado por acaso, tinha-me sentido aconchegado por sonhos estranhos de viagens que não desejara, por locais que nunca tinha imaginado visitar. Tinha sido sempre assim, as viagens mais improváveis apareciam sempre nos meus sonhos. Tudo sem nenhum significado óbvio, sem nenhuma lógica que eu entendesse quando acordava, mas que com o tempo iam crescendo na minha cabeça trazendo novos sonhos.

Neste momento não posso viajar, não posso partir para as ilhas distantes e nadar com as crianças de cabelo estranho, mas posso continuar a ouvir a música que ouço nos sonhos e posso criar os meus próprios sonhos. Só não entendo o que está à frente dos meus olhos fechados, não sei ainda que música é que tocava no momento em que as folhas secas e coloridas voavam pelo chão da igreja, não sei porque é que a noite me chama e me faz sonhar.

Penso mais uma vez no livro de viagens e não consigo deixar de pensar que tudo tem um sentido, um sentido que posso nunca descobrir, mas que consigo sentir...

segunda-feira, outubro 18, 2004

sonho de uma noite sem fim

Sabia que estava dentro de um sonho, o mais real em que alguma vez tinha estado. Sentia uma sensação estranha, um medo que me assustava mas que ao mesmo tempo me dava prazer e andava devagar por cima da erva seca provocando um som que se juntava aos barulhos da noite.

O cenário era o de uma longa planície iluminada pela luz da lua e das estrelas que se podiam ver a brilhar por cima de mim. A linha do horizonte só era perturbada pela gigantesca montanha que se erguia à minha esquerda e que tapava uma grande parte do céu. Estava em África, sabia-o pois aquele cheiro que eu nunca tinha sentido era igual ao que tinha imaginado durante toda a minha vida.

Ouvia os animais que pareciam afastarem-se de mim e continuava a caminhar olhando o céu que aumentava de brilho a cada hora que passava. Podia ler o meu caminho nos desenhos feitos pelas estrelas que me indicavam para onde ir. A ansiedade era muito grande, não sabia bem quem ia encontrar, não sabia o que me fazia caminhar durante horas, numa viagem que não acabava. Mas não me sentia cansado, nos sonhos podemos caminhar durante dias e não sentimos nem fome nem sede. Mas a ansiedade aumentava e envolvia-me de uma forma estranha, quase doce.

Não sabia o que significava aquele sonho, não sabia o que é que estava ali a fazer, mas tudo parecia natural, era como se toda a vida estivesse estado à espera daquela noite sem fim. Como se o que procurasse pudesse resolver de uma vez por todas as minhas ansiedades, os meus pânicos, as minhas angustias. O meu coração batia cada vez mais forte enquanto eu respirava fundo, fechava os olhos e sentia tudo à minha volta. Estava nervoso, mas sentia um prazer enorme em estar ali naquele momento.

Deitei-me no chão e olhei para as constelações, sentia um ligeiro cheiro a queimado de algum incêndio longínquo e vi as aves a fugirem, nuvens negras que se afastavam do perigo e que voavam em direcção à montanha, procurando abrigo debaixo da sua sombra, tornando o céu por cima de mim ainda mais negro. Os outros animais não fugiam, mas faziam-se ouvir cada vez mais alto. Não conseguia perceber as suas histórias, mas sentia-me aconchegado por aqueles lamentos. Continuava assustado e de olhos fechados respirei fundo sentindo o cheiro no ar...adormeci e sonhei.

Aquela noite não ia acabar...

terça-feira, outubro 05, 2004

O Tempo outra vez

Mas o tempo passa e nós mudamos. Deixamos de ser quem éramos e temos medo do que vem a seguir. Apesar de tudo o sorriso é o mesmo, é o sorriso da fotografia a preto e branco que agora já não é só meu. Não sei como vai ser a partir deste momento, mas sei que vai ser diferente. É uma sensação que assusta mas que também nos faz brilhar os olhos, os olhos que já não vemos só no espelho.

Sempre tive medo de crescer, de perder uma parte de mim, de não correr mais pelo corredor da casa e de ver os filmes escondido atrás da porta. Sempre achei que nunca ia mudar, que ia para sempre olhar o céu da mesma maneira e de sonhar. Mas todos mudamos, todos nós nos transformamos em alguém que não somos e que sempre conhecemos.

Não quero deixar nada para trás e olho desesperadamente para o passado. Não vejo alegria nem tristeza, vejo apenas um miúdo a brincar com um carro pequeno e que não olha para mim. Mas eu sei que ele sabe que eu estou aqui, sabe que somos o mesmo e que não nos podemos separar.

Lentamente dou um passo e começo a caminhar, para logo de seguida voar...

quarta-feira, agosto 04, 2004

A Música

Adeus

Ana e Luís seguiam devagar pela rua. Estavam quase encostados um ao outro mas não se tocavam, mesmo assim existia uma sensação de conforto, como que um amparar mutuo. Este era o seu mundo, um mundo de silêncio onde tudo era quase entendido sem o uso das palavras, sem que fosse preciso explicar o que ia na cabeça de cada um, um mundo onde existia uma tristeza sempre presente que os unia de uma maneira muito forte, mas que fazia com que os seus olhares fossem tristes e distantes.

Luís desistira de tentar convencer Ana a ficar e sabia que aquele era um passeio de despedida. Dois anos de convivência diária, de muitos risos e algumas lágrimas, iam finalmente chegar ao fim. Depois da última conversa, ele já não tinha coragem de tentar convence-la de que estava a cometer o erro da sua vida, que não ia haver outra hipótese para serem felizes. Ela não ia ouvir e ele não ia tentar mais.

Parou à entrada do metro, o local onde sempre se separavam, e ficou a olhar para a sua cara durante algum tempo. Abriu a boca mas não foi capaz de falar, queria dizer-lhe que a vida não devia ser assim, que não se pode querer controlar os sentimentos, mas sabia que ela naquele momento não era livre, estava prisioneira das suas ideias e nesse estado não podia pensar da mesma maneira que ele.

Deu-lhe um beijo na face e afastou-se sem olhar para trás, tinha de começar a viver uma nova vida e era melhor começar já.


Manhã

De repente tinha começado uma vida nova e nos primeiros meses quis fazer tudo o que não tinha feito nos últimos anos, todos aqueles desejos que estavam esquecidos e que agora tinha decidido retomar. Mas Ana estava sempre presente, não havia um dia que não pensasse nela, ou que não sentisse que aquele pequeno frio no estômago era o seu inconsciente a dizer que ainda não a tinha esquecido.

Mas o tempo traz algum sossego e o que era uma obsessão transformou-se numa recordação que cada vez incomodava menos. Ficava a imagem dela à entrada do metro e a sensação de vazio que tinha sentido.

Durante algum tempo ainda foi tendo noticias através de amigos comuns, ela tinha seguido a carreira de sucesso que queria e casado com o homem com que sonhara, mas não com o homem dos seus sonhos, achava ele. Mas ao fim de um tempo deixou de saber o que se passava, a distância afasta as pessoas, especialmente as que já estão afastadas antes de se separarem fisicamente e pôde seguir com a sua vida.


Escrever

Passaram cinco anos e Luís levava a vida possível. Não era uma pessoa infeliz e a maior parte dos dias sentia que estava bem e que tinha uma boa vida, mas havia um sentimento de tristeza que era quase imperceptível para os outros, mas que estava sempre presente. Ele sabia reconhece-lo e lembrava-se de uma fotografia de um dos seus discos favoritos, uma cara triste, uma cadeira velha e uma angústia no ar com que se identificava. Apesar de tudo era um disco alegre, nada parecido com a fotografia da capa. Ele sentia algo parecido na sua vida. Era a capa do disco que não fazia sentido, ou era ao contrário?

Mas a maior parte das vezes sentia-se feliz, ou fazia por isso. Preferia seguir as letras do disco, que se tinha tornado na sua maior companhia, uma nova obsessão que não compreendia, tudo o que estava escrito parecia vir da sua cabeça. Sabia que podia só ser pelo facto de ser especialmente susceptível àqueles versos, mas não deixava de ser uma coincidência muito grande.

Luís era também um escritor, mas de uma forma solitária, dono de um blog que ninguém lia a não ser ele próprio. De qualquer forma era na escrita que se encontrava, era através das histórias que criava que vivia outras vidas que eram ao mesmo tempo parte da sua e o oposto da mesma. Ele escrevia sempre na primeira pessoa e contracenava com muitas pessoas que não existiam, reflexos imperfeitos de outros com quem se tinha cruzado, mas que não conhecera o suficiente. Era preciso completar as peças, era necessário imaginar cada fala, cada pensamento e até as características físicas destes seus companheiros irreais.


Reencontro

Mas a vida é estranha e às vezes parece que anda em círculos. Este era o pensamento na cabeça de Luís quando ao subir a rua viu uma figura conhecida a vir em direcção a ele. Ela estava mais velha, o olhar tinha algo de diferente, como se o tempo tivesse apagado um pouco do brilho que ele nunca esquecera.

Sorriu e avançou para ela, deram dois beijos e ficaram a olhar um para o outro sem dizer nada. Ana parecia cansada e foi com uma voz trémula que perguntou como é que ele estava, nunca mais tinham falado desde a separação no metro e havia um certo desconforto no ar. Luís não respondeu, sabia que ela lhe queria contar alguma coisa e que as perguntas de circunstância só iam fazer com que ela demorasse mais tempo a falar. Reparou que os seus dedos estavam vazios.

Sentaram-se num banco de jardim e Ana falou e contou tudo o que se tinha passado desde que se tinham despedido. Tinha passado anos muito bons a nível profissional e pessoal, era vice-presidente de uma empresa muito importante e tinha casado com uma pessoa que parecia ter sido feita para ela. Alguém que a fazia ter conforto, alguém que lhe tinha dado segurança, a relação que ela sempre desejara. Mas o seu discurso era triste e desanimado. Mesmo assim Luís conteve a sua curiosidade e continuou a ouvir Ana a falar ao ritmo que queria, contando como as coisas tinham corrido muito bem até um certa altura, até ao momento que se tinha instalado uma sensação de vazio na sua vida, até ao momento que tinha de completar com sonhos os seus dias. Nunca aconteceu nada de grave, nenhuma traição, nenhuma discussão séria, só um desanimo crescente e uma ruptura inevitável sem nenhuma conclusão, sem nenhuma lição a tirar. Ana perguntou se não podia ser feliz, Luís não respondeu...


Mar

Levantou-se, deu-lhe uma mão e disse para saírem dali. Foram até ao pé do mar e ficaram sentados no carro a observar as pessoas a brincarem na praia. Luís não teve coragem de ligar o rádio, sabia bem o que é ia começar a tocar, não teve forças para enfrentar tudo outra vez e ficou apenas a ouvir o barulho do mar. Ficaram em silêncio muito tempo, até àquela hora em que a noite se confunde com o dia e tudo se mistura, tudo parece diferente. Mas era um silêncio confortável, sempre foi, não precisavam de falar para saber exactamente o que se passava na cabeça do outro...e beijaram-se.

Foi o beijo mais intenso das suas vidas, a emoção que sentiram não era comparável com todas as experiências passadas, a saudade não era só um sentimento abstracto e podia quase sentir-se entre eles e as suas mãos apertavam com força o corpo um do outro como se não se fossem ver nunca mais. Mas para Luís havia algo que não estava certo, alguma coisa que o fez afastar-se e refugiar-se nos seus pensamentos, a sensação que sentia ao abraçar Ana era muito boa, mas parecia desajustada no tempo, parecia que, de alguma forma não fazia sentido, isto apesar de ainda sentir o seu gosto na boca e de saber que não podia sentir o que estava a sentir com mais ninguém.

Ligou o carro e guiou em direcção à cidade sem dizer uma palavra. Ana não disse nada, a cara de Luís tinha tanto de feliz como de zangado e sabia que não era boa altura para falar. Apesar de tudo, percebia o que se passava, sabia o que Luís devia estar a pensar ou a sentir e lembrou-se das palavras dele no dia da despedida. Não sabia se podia ainda ser feliz, não sabia como é que podia corrigir o que não tinha a certeza que tivesse de ser corrigido. Ficou só calada, contendo as lágrimas e observando Luís enquanto conduzia. A expressão dele de repente tinha ficado estranha e pela primeira vez olhou para ele e não conseguiu perceber o que ele estava a pensar. Sentiu outra vez uma vontade enorme de chorar, mas não o fez, olhou apenas o mar que acompanhava a estrada e adormeceu até chegarem a sua casa. Luís não disse um palavra quando ela saiu do carro, mas olhou para ela de uma maneira doce antes de partir devagar. Era tarde...


Estranho mundo

Passaram duas semanas e Luís tentava afastar certos pensamentos da sua mente, não queria ter que decidir, sabia que ia ter que se enfrentar a si mesmo e tinha medo do que fosse acontecer. Ana tinha-lhe telefonado várias vezes, mas ele não atendera, não sabia mesmo o que fazer, por um lado ela era tudo o que sempre tinha querido, por outro, quem era ela para aparecer e desaparecer assim da sua vida? Claro que eram almas gémeas, mas isso já ele sabia há muitos anos, já sabia que estavam destinados a ficar juntos. Mas ela não tinha querido aceitar este destino, ela achou que existia uma outra vida que poderia viver. Não era vingança, não era por ser uma segunda escolha, ele sabia que tinha sido sempre a primeira escolha e que era a principal razão para ela ter voltado, mas assim as coisas não faziam sentido. Ele tinha demorado muito tempo a libertar-se daquele amor, a conseguir viver sabendo que podia não a ver mais, mas também sabia que não era completamente feliz, que faltava alguma coisa na sua vida, se ao menos tivesse a certeza que podiam ter uma vida alegre, sem a tristeza sempre presente, sedutora, mas que magoava.

Decidiu ir passear e resolver de uma vez por todas aquele assunto e mesmo sabendo que as probabilidades de numa tarde resolver o que não tinha conseguido resolver em anos serem poucas, caminhou sem rumo pela cidade. Tentou olhar para as ruas, que tão bem conhecia, com outros olhos, olhava para os cantos para onde ninguém olhava, levantava a cabeça e olhava para a parte de cima dos prédios e observava o que ninguém vê quando se caminha com os olhos na calçada. Então seguiu por um percurso pouco habitual e entrou numa rua por onde não costumava caminhar. Era uma rua escura e muito antiga, mas que não era assustadora. Os prédios pareciam observar quem passava e não se via ninguém, mas sentia-se acompanhado, era uma sensação estranha mas agradável. Não sabia onde ia dar a rua e continuou a olhar para as varandas enfeitadas de vasos com flores que não condiziam com as cores escuras das paredes que os rodeavam.

De repente a rua acabou e deu por si num local conhecido, estava perto da estação de metro onde se tinha despedido de Ana uns anos antes. Não pôde deixar de achar curioso ter ido dar ali e avançou enquanto se recordava mais uma vez da figura dela em pé enquanto ele descia a rua sem olhar para trás. Mesmo sem a ter visto sabia que nesse momento ela estava mais bonita do que nunca e era essa imagem que ele tinha guardado na sua memória, uma memória de algo imaginado e por isso perfeita. Entrou no metro...


Música

Enquanto descia as escadas devagar começou a ouvir uma música ao fundo, alguém devia estar a pedir algumas moedas em troca da sua arte. Caminhou ao encontro do som e depois de virar uma esquina do corredor subterrâneo deu de caras com um homem muito alto com uma barba cinzenta muito grande e que tinha uma guitarra nas mãos. Tinha parado de tocar e ficou a olhar para Luís que andou mais devagar na esperança de ouvir a próxima música, sempre gostara de ouvir os músicos de rua embora raramente os recompensasse pelo prazer que sentia. O homem dirigiu-se para ele e perguntou se ele queria ouvir alguma música, algum pedido especial. Luís lembrou-se do seu disco favorito e da música de que gostava mais, mas não teve coragem de falar nela e disse que qualquer uma servia.

O homem voltou lentamente para o seu canto e sorriu levemente enquanto se preparava para começar a tocar. Parecia que ele o estava a desafiar e por momentos achou que ia tocar a sua música, como se pudesse adivinhar os seus pensamentos, como se soubesse que tinha nas suas mãos a resposta que ele procurava. Tremeu quando ouviu os primeiros sons da guitarra tocada por aqueles dedos elegantes e tentou perceber se os seus medos tinham sentido. Mas não, a música era muito bonita, mas desconhecida. Não sabia se tinha ficado feliz, ou se por outro lado era uma desilusão. Olhou triste para o chão e perguntou a si mesmo porque é que as coisas mais difíceis nunca aconteciam, porque é que não podia haver um pequeno sinal que o ajudasse, porque é que era tudo tão real...

Ficou a ouvir a música até ao fim e quando o homem acabou tirou uma moeda da carteira e procurou um sitio onde a pôr, que não existia. Então, estendeu a mão para o cantor e tentou dar-lhe a moeda. Mas ele acenou com a cabeça em sinal de recusa, não parecia querer aceitar aquela recompensa e Luís ficou sem saber o que pensar, não era esta a razão para ele estar ali? Tentou mais uma vez dar-lhe a moeda mas só conseguiu provocar uma gargalhada no homem, foi algo inesperado pois o riso modificou-lhe as feições e de repente parecia estar frente a outra pessoa. Ele parou de rir e, baixando a cabeça para ficar à mesma altura de Luís, disse-lhe que guardasse a moeda para uma altura realmente importante. Depois agarrou nas suas coisas e saiu apressadamente.

Luís guardou a moeda no bolso...


Encontro

Acordou no dia seguinte com uma sensação de bem estar que já não sentia há uns dias. Nada tinha mudado, mas sentia que não podia ficar para sempre triste, que tinha que avançar para algum lado, embora não fizesse a menor ideia para onde ir. Telefonou para Ana e pediu para a ver. Ela estranhou a voz dele, mas aceitou logo o convite, estava há demasiados dias em sofrimento e mesmo não sabendo se não ia enfrentar outra despedida, foi ter com ele, não podia desperdiçar uma oportunidade que podia ser única, mas saiu de casa muito nervosa. Relembrou todo o passado no caminho, todas as suas opções, todo o amor que sentia por Luís e que tinha recusado. Sabia que não podia voltar atrás, mas tinha medo que fosse tarde para emendar o que tinha feito, embora não conseguisse ter a certeza que tivesse errado, era muito complicado e tentou não pensar mais no assunto, a cabeça estava a ficar demasiado cheia.

Encontraram-se num bar onde iam muitas vezes no passado, era um sitio muito original em tons de cor-de-laranja. Sentaram-se numa mesa a um canto e Ana ficou à espera do que Luís tinha para lhe dizer. Ele olhou-a de forma demorada, na verdade não tinha chegado a nenhuma conclusão, achou que podia confiar num momento de inspiração e que quando estivesse com ela, alguma coisa surgisse, mas claramente tinha escolhido uma dia mau e não sabia o que dizer. Apesar de tudo continuava bem disposto, mais bem disposto do que na realidade desejava estar, mas era algo que não conseguia evitar, desde que acordara que estava com aquele estado de espírito e por muito que o irritasse não conseguia concentrar-se no problema que tinha para resolver.

Levantou-se para ir buscar uma bebida ao balcão, uma desculpa para ficar sozinho e ganhar uns segundos. Esperou um pouco enquanto observava a decoração do bar, nada tinha mudado nos últimos anos e pensava que de certa forma o mesmo se passava com a sua vida. Ali estava ele a pensar nos mesmos problemas de sempre, parecia que não tinha avançado nada desde que Ana tinha ido embora, pior, parecia que tinha voltado ainda mais atrás. Mas pensava nisto de forma despreocupada, estava cansado de tanta tristeza de tanto sofrimento, não queria chorar mais, não queria ser uma pessoa de braços caídos. Então reparou em algo que não pertencia àquele sitio, algo que normalmente só se via em filmes, uma máquina com pequenos discos que podiam ser escolhidos em troca de uma pequena moeda. Olhou em redor e reparou que o bar estava quase vazio, não iria incomodar ninguém, debruçou-se sobre a máquina e leu os nomes das músicas disponíveis. Enfiou a mão num dos bolsos e sentiu a moeda que tinha guardado no dia anterior. Introduziu-a na máquina e caminhou em direcção à sua mesa.


Rir

A música começou a tocar e Ana levantou a cabeça surpreendida, era a música de Luís, a sua fonte de inspiração. Não a ouvia há anos e lembrou-se de quando ele tinha comprado o disco, tinha sido pouco tempo antes de se ir embora. Uma lágrima escorreu-lhe pela face e ficou a olhar para o seu companheiro de sempre. Perguntou-lhe se sabia quais eram as probabilidades daquela música começar a tocar naquele momento, quando as suas vidas estavam numa encruzilhada onde era necessário fazer uma escolha e decidir que caminho seguir. Luís sorriu e disse que não era assim uma coincidência tão grande pois tinha sido ele a escolher a música. Ela não tinha reparado na máquina e sorriu também, mas a sensação de estar a passar pelo momento mais importante da sua vida continuava presente. O mesmo se passava com Luís, sabia que era ele que decidia, era ele que tinha que escolher o destino dos dois.

Meteu a mão no bolso e tentou sentir a moeda que já não estava lá, não tinha como evitar os minutos que se iam seguir, este era o momento que sonhara, era o momento que temera. Sabia que estava próximo da decisão mais importante da sua vida e não fazia a mínima ideia do que fazer. Porque é que viver era tão complicado, porque é que não podia ser pequeno outra vez? Talvez nunca o tivesse deixado de ser, uma criança que crescera, mas que não sabia lidar com os problemas dos adultos, uma criança que continuara a sonhar. Lembrou-se de quando tinha cinco anos e corria pela praia sem nenhuma preocupação, sentia apenas o vento na cara e ria para quem passava, olhava para o mar e imaginava o que estava do outro lado sem nunca ter tido uma resposta, mas também sem que isso o incomodasse muito. Porque é que as coisas não podiam ser assim tão simples? Se calhar podiam...

Pegou na mão de Ana e levou-a para fora do bar, ela não sabia o que é que ele tinha decidido e sentia-se perdida, mas ele não queria prolongar nenhum tipo de sofrimento e apertou a mão dela com força enquanto a conduzia até ao carro. Entraram e ele ligou o rádio, sabia que música ia começar a tocar pois tinha posto o cd estrategicamente naquela posição. Quando viu os olhos dela a brilhar por ouvir aquele som perguntou-lhe se não achava muito estranho que estivessem sempre a ouvir a mesma música. Ela não conteve o riso e ele acompanhou-a...

Porquê?

Deixou Ana a dormir e saiu para caminhar um pouco, sentia-se bem, mesmo não sabendo nada da vida, mesmo não tendo retirado nenhuma conclusão de tudo o que acontecera nos últimos anos. Sabia apenas que não fazia sentido não ser feliz, não sabia o que o ia acontecer, não sabia como ia lidar com os problemas do passado e muito menos com os do futuro, mas tinha a certeza que naquele momento estava bem e que a vida era o que era e era simples, o resto não importava. Voltou para casa...

sexta-feira, julho 09, 2004

O Destino de Kal-El

"...acho que podemos fazer o que queremos das nossas vidas..." (Hobbes)

Tristeza

Clark voava ao mesmo tempo que pensava na vida e não compreendia porque é que não era como as outras pessoas, porque é que tinha de ser ele...

Todos invejavam a sua sorte, todos sonhavam vestir o seu fato azul e vermelho e sentir as nuvens nas mãos. Mas para ele era um fardo mais pesado do que podia suportar, a alegria dos primeiros anos tinha desaparecido e sentia-se só, sentia uma tristeza que crescia dentro dele, sentia-se aprisionado dentro de si próprio, escravo dos poderes que todos admiravam. O seu corpo era invulnerável mas a sua alma era a mais frágil de todo o universo. Sabia que não iria aguentar muito mais.


Passado

Viu ao longe o que vinha à procura e desceu lentamente, tocou no solo e observou a árvore velha que diziam ter estado sempre ali, a árvore que tinha sido sua companheira durante toda a infância e que era a sua mais velha e querida amiga. Ajoelhou-se e procurou o esconderijo por entre a erva alta, um pequeno buraco onde cabia apenas uma mão de um adulto ou duas de uma criança. Não demorou em sentir o metal da caixa ferrugenta e trouxe-a para o sol. Todos os seus segredos estavam naquela caixa pequena e velha, tudo o que era realmente importante para ele estava ali dentro e mal conseguiu conter as lágrimas quando levantou a tampa gasta pelo tempo e observou os seus pequenos tesouros.


Voar

No fundo da caixa estavam umas folhas muito amarelas escritas com uma tinta preta que teimava em não desaparecer e sorriu quando começou a ler.

"...hoje voei como nunca tinha voado, atirei-me de cima do monte mais alto que encontrei e deixei-me cair até estar muito perto do chão, então subi e senti o estômago às voltas como quando damos o primeiro beijo, rodopiei e senti o vento fresco na minha cara, voei por entre as árvores e corri atrás dos animais que se escondiam na floresta.

Fui em direcção ao mar e toquei com as mãos na água gelada enquanto aumentava a velocidade e deixava um rasto de espuma branca atrás de mim. Voei o mais depressa que consegui e fiz com que a água se levantasse dos dois lados criando um efeito incrível. Senti-me a pessoa mais feliz de todo o mundo e achei que não podia haver um momento mais perfeito do que aquele.

Voltei para cima da terra e passei por cima de um campo cheio de flores que não conseguia ver, mas que conseguia cheirar. A noite tinha caído e escondia os desenhos que eu fazia no céu, um céu cheio de estrelas que eu quase conseguia tocar. Senti a pulsação acelerada e o meu peito quase que rebentava, achei que não ia conseguir aguentar, mas não pude evitar e subi outra vez muito depressa até estar o mais longe da terra que alguma vez tinha estado.

Então desci lentamente e toquei a erva suavemente enquanto a lua aparecia no horizonte indicando-me o caminho para casa. Eu olhei para o céu, senti uma última vez o cheiro do chão e das flores e parti calmamente..."


Tinha escrito aquelas linhas com treze anos e sabia que tinha sido o dia mais feliz da sua vida. Tinha sonhado com algo que só era possível na sua cabeça, mas tinha sentido o mesmo prazer que teria sentido se tudo tivesse mesmo acontecido. Naquela altura não sabia que, ao escrever aquelas linhas, estava a escrever o seu destino, estava a inventar o seu futuro, estava a condenar-se a si próprio.

Guardou tudo outra vez na caixa e voltou a guardá-la debaixo da árvore. Ficou algum tempo a pensar e olhou mais uma vez para a árvore antes de partir, sabia que nunca mais voltaria aquele lugar.


Futuro

Desde o dia na árvore que não vestira mais o fato azul e vermelho e não voara mais entre as nuvens. Já não sentia o fardo sobre as suas costas e era só mais uma pessoa como as outras, uma pessoa que no entanto sentia que ainda não era feliz. Então um dia comprou um bloco como os que usava quando era mais novo e com a sua caneta preferida começou a escrever sobre a vida de um homem, um homem que sonhava...

"Era uma vez um homem que tinha uma vida muito simples mas que era feliz porque sonhava e acreditava que um dia os seus sonhos podiam tornar-se realidade..."

terça-feira, junho 29, 2004

O Fim do Mundo

...uma vez ouvi alguém dizer num filme - “este é um bom dia para morrer”...

Insónia

Entrei no metro e sentei-me perto de dois homens que não pareciam portugueses, é engraçado como conseguimos olhar para uma pessoa e dizer que ela não pertence ao sitio onde está. Apesar das teorias que se baseavam nas diferentes características físicas terem perdido força ao longo dos anos, a verdade é que todos nós continuamos a utilizar esta forma de análise quando olhamos para as pessoas ao nosso lado.

Os homens saíram do metro e eu olhei para o outro lado e reparei em duas mulheres que falavam alegremente. Tentei ouvir a conversa mas elas falavam de uma maneira que eu não entendia nada do que diziam, não percebia se tal acontecia por casa da distância a que nos encontrávamos ou se falavam numa daquelas línguas parecidas com a minha.

Aproximei-me para tentar descobrir mas elas saíram quando o metro parou, ainda pensei em segui-las mas rapidamente cheguei à conclusão que era exagerado e que talvez conseguisse viver com aquela dúvida para sempre. Acontecia-me muitas vezes isto, ficar perante situações que queria perceber melhor, mas que a educação e se calhar a vergonha, não me deixavam dar um passo mais arriscado. E assim ficava com muitas perguntas sem resposta que nunca esquecia, era esse o meu pesadelo, o eterno recordar de situações simples, a angústia de não ter resolvido pequenos quebra-cabeças e de ter de viver para sempre com eles.


Morte

Acordei com o rádio e com as noticias das sete da manhã, onde alguém dizia que íamos todos morrer, eu tentei acordar outra vez mas não deu resultado, a frase continuava a ser repetida. Mudei de estação e todos falavam do mesmo, parecia que era mais ou menos consensual que íamos todos morrer, mas eu continuava a não perceber nada do que se estava a passar.

Liguei a televisão e percorri os canais até ver a entrevista do físico que dizia que iríamos ser atingidos por um meteoro de grandes dimensões em menos de vinte e quatro horas. Era um homem estranho e ao principio não percebi porque estavam a dar tanta atenção a alguém que eu identificava como um lunático. Mas depois vieram as reacções da comunidade cientifica, ninguém concordava com os cálculos, mas todos falavam da grande competência do senhor que dizia que iríamos morrer. Decidi não ir trabalhar, era o mínimo que podia fazer perante tal confusão.


Medo

Passeava pela baixa e olhava para todos a tentar perceber o que pensavam do assunto, pelo que podia perceber a maioria das pessoas não tinha dado especial relevância à noticia, pois todos pareciam continuar a sua vida normalmente, mas podia jurar que havia uma tensão no ar, que os olhares eram desconfiados e desanimados.

Tinha telefonado a todos os meus amigos e ninguém tinha achado que alguma desgraça fosse acontecer, mas também me parecia ter reparado num pequeno nervosismo nas suas vozes, podia ser tudo imaginação minha, mas era o que sentia, sentia que ninguém queria admitir que estava afectado por algo com poucas probabilidades de acontecer, mas que todos estavam perturbados de alguma maneira. Decidi que ia passar o dia sozinho.

Tirei o leitor de mp3 da mochila que trazia comigo e escolhi uma música alegre para aquele dia que talvez fosse o último da minha vida. Desci até ao rio e acompanhado pela minha banda sonora pessoal andei devagar enquanto respirava o ar fresco da manhã. Era muito estranho pensar que tudo podia acabar, havia ainda tanto para fazer. É claro que era pouco provável que isso acontecesse, mas decidi pensar um pouco no assunto.


Palmas

Almocei sentado num muro perto do rio enquanto olhava umas obras muito barulhentas, todos trabalhavam muito concentrados e não pareciam ter ligado ao facto do mundo poder acabar. Tinham fatos amarelos que condiziam com as máquinas que abriam o chão escavando um enorme buraco. Pensei que talvez fosse melhor deixar o meteoro tratar dos buracos, mas não tive coragem de me meter com aquelas pessoas.

Saí dali e fui dar a um jardim onde parecia estar acontecer algo, pois estavam centenas de pessoas perto de um palco. Aproximei-me e percebi que era um concerto. Que hora estranha para um concerto, ainda por cima num dia de semana e com o calor que estava, não percebia quem tinha tido aquela ideia, mas a verdade é que tinha conseguido atrair um grande número de pessoas para assistirem ao espectáculo.

Tinha-me sentado no chão a ouvir o concerto e olhava as pessoas despreocupadamente quando reparei numa rapariga que me chamou atenção. Estava vestida com uma camisola vermelha e uma saia azul com umas bolas brancas pequenas, era loura e tinha uns óculos que lhe davam um ar muito formal, como se quisesse parecer mais bem comportada do que era. Eu sempre adorei olhar as pessoas e tentar imaginar como eram as suas vidas e naquele momento decidi pensar um pouco naquela rapariga enquanto ela ouvia a música que continuava a tocar.

Mas de repente sucedeu algo muito estranho, no meio de uma das músicas ela começou a bater com as mãos por cima da cabeça, como todos os que estavam ao seu lado e eu quase que podia jurar que conseguia distinguir as palmas dela das dos outros. Achei que era imaginação minha e aproximei-me um pouco. Não parecia possível, mas quando ela batia com as mãos uma na outra eu conseguia ouvir aquele aplauso mais alto do que os outros. Mas o mais engraçado é que era apenas um pouco mais alto do que as restantes palmas, bastava que a banda tocasse um pouco mais alto ou que alguém ao seu lado gritasse e eu deixava de a ouvir, mas depois tudo voltava ao normal e eu podia ouvir a música acompanhada por aquelas mãos mágicas.


Perguntas e respostas

Estava completamente baralhado, o que provocaria aquele fenómeno, seria o formato das suas mãos pálidas, seria do sitio onde ela se encontrava, ou seria que eu tinha finalmente perdido o juízo? Não tinha resposta para estas perguntas mas estava decidido a não viver com mais um mistério por resolver, a mais noites sem dormir para tentar perceber porque é que sempre que atendia o telefone via as inicias de quem me ligava nas matriculas dos carros, porque é que quando dormia num hotel ficava sempre num quarto com o meu número favorito. Não aguentava mais que a minha vida fosse invadida por um caso sem solução, por algo que só me iria trazer ansiedade e desconforto. Decidi ir ter com ela.

Tinha ficado tanto tempo a observar aquela cena que não tinha reparado que tinha anoitecido, na verdade era um pouco estranho como é que tinha anoitecido, não parecia que tinha passado tanto tempo, mas já tinha um mistério para resolver e decidi não ligar. Avancei decidido para ela e quando cheguei perto toquei-lhe no ombro, ela olhou para mim e quando eu estava quase a falar ouvi um enorme estrondo por cima de nós, tinham começado a lançar fogo de artificio e fiquei uns minutos a olhar para cima e as formas que apareciam no céu estrelado. Por momentos esqueci-me onde estava e que o mundo ia acabar.

Senti então uma mão na minha e olhei para a rapariga das palmas, ela abriu a boca e disse qualquer coisa que eu não percebi, a música continuava a tocar e em conjunto com o fogo de artificio era muito difícil ouvir alguém, mas pareceu-me que ela não estava a falar português, tentei gritar qualquer coisa em inglês mas ela encolheu os ombros, não tinha percebido ou não tinha ouvido? Não insisti, decidi que ela era Suiça e que se chamava Anne e fiquei de mão dada com ela a ver o fogo.

Tudo era mais claro para mim de repente, o som das suas mãos era mais alto devido a uma técnica muito antiga que os suíços desenvolveram para comunicar nas montanhas. Mas não bastava saber como tocar com as mãos, a forma delas também era importante e Anne pertencia a uma família onde as mulheres tinham as mãos mais perfeitas de toda a Suiça. Era uma herança genética que tinha passado de geração em geração e que tinha de ser mantida em segredo pois haviam muitas pessoas interessadas em utilizar este dom para fins maléficos. Mas eu não representava perigo e podia agarrar suavemente nas suas mãos e sorrir.


Fim

A concerto acabou e nós afastamo-nos um pouco das outras pessoas, eu olhei-a um pouco sem dizer nada e ela sorriu enquanto guardava os óculos numa pequena mochila que trazia às costas. Queria perguntar-lhe quem era ela, mas não sabia em que língua devia falar e não queria começar mal, tinha errado muitas vezes no passado e sabia bem que as primeiras palavras eram as mais importantes.

Decidi avançar na minha língua materna com um simples cumprimento e ela pareceu compreender, mas nunca me chegou a responder pois subitamente todos desataram a gritar quando milhares de estrelas cadentes rasgaram o céu negro por cima de nós. Foi como se todos entrassem em pânico ao mesmo tempo, via pessoas a correr de um lado para o outro fugindo sem saberem do quê, via outras quietas no chão chorando como crianças e sentia o medo no ar, era o medo da morte, o medo de não ver a manhã seguinte.

Então, no meio da confusão, o fogo de artificio que não tinha sido lançado começou a voar por entre as pessoas, deixando rastos de todas as cores. Ninguém sabia para onde fugir, era como se estivéssemos numa jaula de fogo, numa camisa de forças com cores magnificas que subiam ao céu e nos perseguiam enquanto corríamos desesperados. Eu fiquei quieto a observar todo aquele espectáculo, o céu continuava todo riscado de vermelho e laranja e as estrelas cadentes confundiam-se com o fogo que nos envolvia.

Achei que era um final muito bonito e deixei-me estar em pé a sentir todas as emoções de quem passava por mim. Já não estava de mão dada com a rapariga das palmas, o fogo tinha-nos separado e teimava em não nos deixar aproximar um do outro, mas conseguia vê-la a olhar o céu com a mesma calma com que eu assistia àquele fim do mundo. Então sentei-me no chão, tirei os auscultadores de um dos bolsos das calças e ouvi uma das minhas músicas preferidas, um momento como aquele merecia uma banda sonora.

O mundo não acabou, mas tinha sido um bom dia...

quinta-feira, junho 03, 2004

Orion

Espera

Esperava por um telefonema há dezasseis dias e todas as noites sentava-me no sofá da sala fixando sem parar o telefone preto que teimava em ficar silencioso. Nestas noites solitárias não pensava em mais nada, parecia impossível, mas conseguia ficar várias horas frente àquele objecto apenas com um pensamento na cabeça. Nem sequer pensava no motivo do telefonema ou na pessoa que o deveria fazer, era como um transe que se tinha apoderado de mim, uma espécie de meditação amaldiçoada em que conseguimos isolar apenas um pensamento deixando tudo o resto de lado. De repente ouvi o barulho há muito esperado. Hesitei...e então num segundo veio-me tudo à mente e relembrei o que se passara.


Antes

Sempre tinha sido uma pessoa solitária, o que não queria dizer que não conhecesse muitas pessoas, era mais um sentimento interno que fazia com que sentisse que por muitas pessoas que estivessem comigo eu ia ser sempre a pessoa mais solitária do mundo, como se este mundo tivesse sido construído só para mim e as outras pessoas fossem meros actores, figuras abstractas e inexistentes cuja única função era contracenar comigo neste sonho maldito. Pensava muitas vezes o que fariam elas quando eu não estava presente. Mas não tinha nenhuma confirmação desta minha teoria e continuava a contracenar com os outros, sempre com a sensação de solidão.

Todos diziam que eu era muito calado e muito distante, apesar de eu achar que para quem estava tantas vezes “fora deste mundo” tinha muitos amigos. Mas era verdade que eu intimidava muita gente, só não percebia se isso também fazia com que eu tivesse um certo “estilo” ou se só fazia de mim um pobre diabo aos olhos dos outros.

Já entrara na casa dos trinta e todos os meus relacionamentos tinham sido muito parecidos, começavam baseados em interesses comuns e até funcionavam bem ao principio, até que o dia-a-dia surgia e como eu raramente estava “presente”, elas acabavam por ir embora. Tinha havido uma rapariga de quem eu gostara muito e que me conseguira puxar um pouco para o nosso mundo, mas mesmo ela não aguentou muito viver com uma pessoa tão fechada e acabou por seguir o seu rumo.

Apesar de não parecer eu pensava muito nisto tudo e nas razões para eu ser assim, não havia muito a dizer, família disfuncional, falta de afecto, basicamente um pouco de pequenas coisas que tinham deixado as suas marcas. Mas nem tudo era cinzento, às vezes eu acordava de manhã e passeava sozinho pela cidade e conseguia sorrir um pouco com o ar fresco da manhã. Por vezes lia um livro ou via um filme que me levavam a mundos desconhecidos e onde eu me sentia muito confortável. E também conseguia ser agradável com algumas pessoas, não era muito habitual, mas acontecia e uma coisa era verdade, não costumava ser antipático para com ninguém, só estava distante muitas vezes.


O que é isto?

Até que um dia a minha vida foi invadida por um estranho, ou melhor por uma estranha. E não era só estranha por eu não a conhecer, era mesmo uma pessoa muito estranha.

Foi no aniversário de um amigo meu que a conheci, acho que nos puseram ao lado um do outro de propósito, uma espécie de experiência dos meus amigos. O que aconteceria se dois “que não regulam bem” se conhecessem? A coisa correu muito mal pois nós mal olhávamos um para o outro e para piorar todas as pessoas à nossa volta já tinham arranjado um parceiro de conversa.

Um pouco farto de estar sempre sozinho resolvi meter conversa.
- Parece que nos quiseram juntar aqui de propósito.
- Eu já reparei, mas não me sinto obrigada a fazer conversa. Disse ela de uma maneira não muito simpática.
- Pois eu também não mas também não me importo de conversar.
- Conversar sobre o quê?
Fiquei um pouco irritado com tanta má disposição, mas insisti.
- Podíamos tentar perceber o que há de diferente entre nós e o resto das pessoas que estão nesta mesa.
- Poder podíamos, mas sinceramente não sei se isso vai ser muito interessante.
Com esta resposta calei-me. E ainda diziam que eu era distante!

Saí para casa já tarde e quando cheguei ao carro tinha um pequeno papel preso no vidro. Uma mensagem que abri rapidamente, era dela. Pedia desculpa pela má disposição e convidava-me para nos encontrarmos no dia seguinte. O local do convite era uma esplanada com uma vista muito bonita sobre o mar que eu conhecia, resolvi não decidir no momento, quando acordasse decidiria.


Ao sol

Acordei e pareceu-me que pior que o jantar não deveria ser e ela era realmente muito bonita, depois de um almoço à pressa dirigi-me para a esplanada. Quando cheguei não estava praticamente ninguém e sentei-me numa mesa que ficava num canto abrigado do vento, mas que deixava ver as ondas a embaterem nas rochas. Pedi um bebida e fiquei ali sozinho à espera dela.

As horas passaram e ela não apareceu, apesar de tudo tinha sido uma tarde muito agradável. Tinha passado horas a observar os outros na esplanada e a imaginar como seriam as suas vidas. Consegui inventar pelo menos cinco histórias muito interessantes que me ocuparam a cabeça durante aquele tempo todo.

Obviamente que ela não devia aparecer e decidi que era altura de ir para casa. Tinha o carro estacionado um pouco longe e decidi dar um volta pela praia antes de me ir embora e acabei sentado na areia a pensar na vida, pois não tinha muita vontade de ir para casa. Deitei-me e olhei o céu azul, até que adormeci debaixo daquele sol suave.


Orion

Quando acordei era de noite, fiquei incrédulo, como é que eu podia ter dormido tanto tempo? Como sempre não tinha relógio, mas o brilhar das estrelas confirmava que de facto já era de noite e que eu tinha dormido imenso. Acho que a palavra correcta era desmaiado e não dormido, pois só assim podia explicar algo tão estranho.

Olhei para o lado e a praia parecia vazia, até tive um pouco de medo, até que reparei em alguém uns duzentos metros à minha esquerda. Dirigi-me à pessoa para perguntar as horas e conforme me fui aproximando reparei que era um rapariga que parecia estar a observar o céu através de um telescópio. Cumprimentei-a e ela levantou a cabeça para olhar para mim, era também muito bonita, parecia que eu andava com sorte. Confirmou que era tardíssimo e perguntou-me se eu gostava de astronomia, eu respondi que gostava mas que sabia pouco sobre o assunto.

Ela apontou para um conjunto de estrelas e perguntou-me se eu sabia o nome daquela constelação. Por incrível que pareça eu sabia e respondi que era Orion, mas para falar verdade não me lembrava por que razão tinha sido capaz de responder. Ela sorriu e disse que era a constelação favorita dela e que ficava muitas vezes horas a olhar para ela, eu perguntei como é que se tinha um constelação favorita, mas ela apenas encolheu os ombros e voltou a olhar o céu pelo telescópio.

Acho que noutras situações teria tentado conhecê-la melhor, mas estava cansado e resolvi ir-me embora. Despedi-me com uma banalidade qualquer e fui andando até ao carro. Quando lá cheguei reparei que tinha outro bilhete. Abri-o um pouco desconfiado e li algo muito estranho, o bilhete dizia “Faltaste ao nosso encontro, mas eu percebo, Orion é muito bonita”. Fiquei aterrorizado e corri para a praia à procura da rapariga do telescópio, mas nada, não estava ninguém na praia.


Sonho

Quando cheguei a casa telefonei para o meu amigo que fizera anos no dia anterior e perguntei-lhe quem era a rapariga que ficara ao meu lado no jantar, o silêncio do outro lado da linha deixou-me desconfortável, até que ele respondeu que eu tinha estado sentado entre dois amigos comuns e que não tinha aberto a boca a noite toda, não havia rapariga nenhuma.

Parecia que estava enlouquecer, desliguei e corri para a entrada onde tinha deixado a carteira, lá dentro encontrei os dois bilhetes. Isto não fazia sentido, por um lado sabia que não tinha sido tudo imaginação minha, mas por outro o simples facto dos dois bilhetes existirem era contraditório e assustador.

Adormeci na sala e tive um sonho muito estranho em que fazia uma tatuagem com a forma de uma constelação desconhecida. E ao meu lado de mão dada estava a rapariga do jantar com uma t-shirt branca com uma palavra em azul, “Atende!”.

Acordei sobressaltado. O que era isto? Estava a perder a sanidade mental? Ou seria que o meu mundo privado sempre existia e estava a desmoronar-se? Fui para o quarto e com alguma dificuldade consegui adormecer, mas foi a noite mais estranha de toda a minha vida, tive centenas de sonhos e pesadelos, que pareciam irem-se repetindo enquanto eu dormia. Nos pesadelos estava quase sempre presente a rapariga do jantar e nos outros sonhos a rapariga do telescópio, mas acho que em alguns dos sonhos tudo se misturava e eu viajava pelas estrelas, dizendo o nome de cada uma delas. Lembro-me também de uma dor que sentia no braço direito, como se tivesse sido picado por algum insecto, era uma sensação que me acompanhava em todos os sonhos.


Realidade?

Acordei completamente angustiado, mas ao mesmo tempo com a sensação de ter vivido algo importante e real. Por esta altura já não dava muita importância ao sentido do que tinha acontecido, só queria que as coisas acalmassem. Pensei na minha vida e no meu mau humor que parecia estar sempre presente, desejei apenas ser feliz e ter uma vida normal.

Fui tomar um banho e quando me despi reparei que no meu pulso esquerdo tinha uma tatuagem. Toquei no pulso e estava dorido, como é que isto era possível? No sonho eu sentira dores no braço direito, não no esquerdo, eu tinha a certeza. E se os sonhos fossem como os espelhos e mostrassem as coisas ao contrário? Olhei para o espelho da casa de banho e levantei o braço, vista através do espelho a tatuagem parecia um número, o dezasseis.


Dezasseis

O telefone tocava já há uns segundos e eu ainda hesitava, quem estaria do outro lado da linha, o que é que iria acontecer. Eu sabia que tinha de atender, eu estava há dias à espera deste momento, mas continuava a hesitar em agarrar no auscultador. Olhei para a janela e reparei que o céu estava completamente estrelado, olhei para o meu pulso e para a tatuagem e foquei a minha atenção outra vez no telefone, senão atendesse depressa podia ser tarde demais...

Então atendi e ouvi uma voz feminina do outro lado.
- Olá, sou eu, estava quase a desligar, demoraste muito tempo a atender.
- Eu sei, é que tive um dia muito cansativo e acho que estava a dormitar. Respondi, sem saber porque é que estava a dizer aquelas palavras.
Ela continuou.
- Olha hoje está uma noite perfeita para ver o céu, Orion vai estar muito tempo visível e tu no outro dia disseste que era a tua constelação preferida.
Sorri.
- Pois é, eu vou já para aí, beijos.
- Beijinhos, despacha-te!

Entrei no carro e procurei outro bilhete, mas não havia nenhum. Fiquei uns segundos a pensar nos últimos dias, que estranha era a vida. Mais uma vez não consegui achar sentido para nada do que tinha acontecido. Liguei o carro e sorri, pensei no meu mau humor e que ele era capaz de desaparecer nos próximos tempos.

Cheguei à praia e vi uma rapariga de volta de algo, saí do carro e pisei a areia, era uma sensação agradável. Caminhei devagar, tentando que ela não me ouvisse para poder gozar uns últimos momentos de solidão. Então, já muito perto dela, ela virou-se e sorriu para mim, eu sorri também e fui ver Orion...

quarta-feira, maio 26, 2004

O rapaz que ouvia música

Dom

No dia 28 de Setembro de 1972 nasceu em Lisboa um rapaz que parecia igual a todos os outros nascidos nesse dia, mas na verdade não era, esse rapaz tinha nascido com um dom que só se revelaria anos mais tarde.

E o rapaz foi crescendo como todos os outros da sua idade, fazendo as mesmas coisas, tendo os mesmos problemas e as mesmas alegrias. Era muito afável e aquele tipo de pessoa de que não é muito difícil gostar se a conhecermos bem, era como se costuma dizer “um bom miúdo”.

Mas a meio da adolescência qualquer coisa se complicou na sua cabeça, de repente uma vida perfeitamente estável transformou-se numa vida ansiosa e algo angustiada. Ele não sabia o que é que estava na base daquela mudança, mas sentia-se cada vez mais apático, mais sozinho e mais infeliz.

Então começaram os problemas, na escola, em casa, com os amigos, parecia que em todo o lado o seu mundo estava a ruir e por muito que pensasse não conseguia arranjar uma resposta para justificar o que estava a acontecer. Ele achava que não tinha mudado nada, mas o mundo à volta dele estava realmente diferente.


Começo

Quando chegou à idade adulta tudo se complicou, a sua vida corria de forma muito irregular, apoiada em comprimidos e eternas sessões em psicólogos que não o conseguiam ajudar. Continuava a viver com os pais e trabalhava num emprego do qual não gostava muito, mas onde não era totalmente infeliz e até demonstrava algumas capacidades.

Mas era no campo amoroso que as coisas não corriam muito bem, não conseguia manter uma relação estável, para falar verdade não tinha tido assim tantas relações porque era-lhe muito difícil estabelecer contacto com as raparigas que lhe interessavam e isso não ajudava a que tudo o resto corresse bem.

Então um dia tudo mudou. Estava a passear na baixa e decidiu ir a um centro comercial ver se encontrava um disco que procurava há muito tempo. Entrou no elevador e quando a porta estava quase a fechar reparou que uma rapariga vinha a correr para tentar entrar também, segurou o elevador e sorriu para a rapariga quando ela agradeceu ele ter segurado a porta.

A rapariga era bonita, na verdade era mesmo muito bonita e não foi muito fácil não ficar especado a olhar para ela, isto até perceber o que estava a fazer e ter ficado muito corado, o que provocou um ligeiro sorriso nela. Então de repente começou a tocar uma música que ele gostava muito e que nos últimos tempos ouvia até à exaustão. Sentiu que tinha de dizer alguma coisa sobre a música e num impulso, nada próprio da sua maneira de ser, disse que gostava muito daquela música. A rapariga fez uma ar muito espantado que ele não percebeu, pois ela ficou mesmo a olhar para ele de uma maneira estranha. Ele perguntou se tinha dito alguma coisa de mal ou se ela não gostava da música por algum motivo especial e ela ainda ficou com um ar mais espantado, até que lhe disse que não estava a ouvir música nenhuma.

Ficou totalmente aparvalhado, ela só podia estar a gozar com ele, mas rapidamente percebeu pelos seus olhos que não. Deitou a mão à cabeça e pensou assustado no que é que se estava a passar, as portas do elevador abriram-se e saiu a correr, sentia que estava a enlouquecer.

Sentou-se num pequeno café de mesas pretas e ficou a pensar no que tinha acontecido. A música já tinha parado, mas ele tinha a certeza que a tinha ouvido, mas pelos vistos só tinha acontecido na sua cabeça. Sentiu que alguém se aproximava e levantou os olhos da mesa, era a rapariga do elevador que perguntou se podia sentar-se, ele respondeu afirmativamente, embora ainda não se sentisse muito bem.

Ela foi directa ao assunto e perguntou-lhe se ele realmente tinha ouvido uma música a tocar no elevador, ele hesitou na resposta mas acabou por acenar com a cabeça dizendo que sim. Ela disse que isso era muito estranho e perguntou se já tinha acontecido mais vezes. Ele disse que fora a primeira vez e que se calhar tinha sido da companhia, conseguindo apesar de tudo brincar um pouco com a situação. Ela perguntou se a música já tinha parado e ele disse que sim e ela desafiou-o para tentar outra vez ouvir a música. Mas ele disse que não sabia como fazer isso, ao que ela respondeu sugerindo que ele cantarolasse mentalmente uma música qualquer.

Decidiu experimentar e lembrou-se de uma música que tinha ouvido na rádio de manhã, pensou um pouco nela e começou a ouvi-la. O primeiro reflexo que teve foi o de olhar para todos os lados, mas depressa percebeu que não havia nenhum aparelho a tocar e perguntou à sua companhia se também estava a ouvir, ela respondeu negativamente com um olhar triste e disse-lhe que talvez se lhe tocasse também conseguisse ouvir. Esticou uma mão timidamente em direcção a uma das dele, mas pela cara dela ele percebeu logo que ela não estava a ouvir nada.

Achou que aquilo não fazia sentido, que estava maluco, que estava a perder o controlo, mas verdade é que continuava a ouvir a música. E o facto de ter ouvido a primeira música ao pé dela não podia ser coincidência. Sugeriu que talvez tivessem de dar as mãos com mais força, ela disse que sim com a cabeça e apertaram com força as mãos um do outro. Não precisou de uma resposta dela para saber o que tinha sucedido e com os olhos a brilhar ela disse-lhe a sorrir que também tinha aquele CD.


Super-Herói

Tudo isto era uma grande novidade na sua vida. Desde pequeno que se habituara a “devorar” livros de super-heróis com poderes especiais e sempre desejara ser um. Muitas vezes mesmo tinha imaginado um novo tipo de herói com novos poderes com os quais combatia o mal. Pensava nisto enquanto caminhava para casa tentando entender o que se tinha passado e enquanto ia ouvindo música sem parar. Por esta altura já descobrira que conseguia reproduzir mentalmente qualquer música que tivesse ouvido, o que fazia com que de repente a sua vida tivesse “banda sonora”. Poderia considerar isto um “poder”? E se sim, o que fazer com ele? Não podia agarrar-se aos bandidos e “pô-los a ouvir música”. Na verdade nem sabia bem se isto era algum tipo de dom, ou se por outro lado era apenas a sua cabeça que estava cada vez pior. Na realidade, tendo em conta o seu passado, tinha de pôr a hipótese de estar doente e de este ser um sintoma dessa doença, mas era sem dúvida uma doença boa e ainda havia o facto da rapariga ter conseguido ouvir a música também.

A rapariga era outro problema, claramente tinha ficado completamente apaixonado por ela e sentia que ela também sentia alguma coisa por ele, mas também não é todos os dias que se conhece alguém que tem um “leitor de cd’s” na cabeça. Lembrou-se do Super-Homem e do estranho triangulo amoroso entre ele, Lois Lane e a sua outra identidade, o atrapalhado Clark Kent. Achava que o próprio Batman também passara por questões deste género em que não sabia se, ao contar quem era, o amor não seria mais pelo herói do que pelo, apesar de tudo muito charmoso, Bruce Wayne. De qualquer maneira esta sua nova capacidade era muito agradável e a alguma conclusão haveria de chegar.


O Filho da Música

Esteve uma semana fechado no seu quarto a ouvir música e a pensar em tudo o que tinha acontecido. Só era interrompido pela sua mãe preocupada com o que se estava a passar e pelas mensagens que trazia da rapariga daquele estranho dia. Tinha saudades dela, mas não sabia como lidar com ela.

Então um dia de repente acordou com uma música na cabeça da qual não se lembrava, parecia alguma coisa muito distante, qualquer coisa que talvez tivesse ouvido em miúdo. Saltou da cama e abriu a caixa dos velhos discos que já ninguém ouvia e passou as mãos suavemente por eles enquanto procurava algo, mas que não sabia o que era. Até que no meio de dois discos descobriu um pequeno livro que tinha o titulo de “O Filho da Música”, não se lembrava de ter alguma vez visto ou lido aquele livro e folheou com cuidado as folhas já amareladas do tempo.

Era uma pequena fábula que contava a história de um rapaz órfão que vivia numa aldeia muito pequena e que todos diziam ser filho da música, devido ao facto de no dia em que fora encontrado abandonado à porta da igreja os pássaros terem cantado como nunca se tinha ouvido naquelas paragens. O livro contava as peripécias da sua juventude e como ele tinha crescido sempre com uma maneira de ser distante mas estranhamente alegre para quem tinha tão pouco. No fim do livro o rapaz, já homem, deixava a aldeia de uma maneira tão súbita como a em que chegara àquele local, no meio da maior tempestade que todos juravam ter assistido, em que o vento soprara como nunca, tocando belas mas assustadoras melodias pelo meio das árvores. Desde esse dia ele nunca mais tinha sido visto e a história seria contada às crianças durante muito anos.


Descoberta

Que estranha história aquela. Saiu a correr do quarto e com o livro na mão foi ter com a sua mãe e perguntou se ela sabia quem tinha o tinha comprado, também queria saber se ela se lembrava de quando é que ele começara a ter problemas, de alguma forma achava que o livro estava ligado ao seu comportamento. A mãe olhou espantada para o livro e sorriu, enquanto uma lágrima lhe escorria pela face. Ele estranhou este comportamento e ficou a olhar para ela à espera de uma resposta. Então ela contou-lhe que o livro tinha sido uma prenda do seu pai, o avô dele, para ela quando era pequena e que se lembrava que o avô tinha pedido para passar o livro para os seus futuros netos, que não viria conhecer. Claro que ela não o tinha feito, era muito pequena quando tinha recebido estas instruções e nem sabia bem como era possível estar agora a recordar aquela história.

Perguntou como é que era o seu avô e a mãe respondeu-lhe que era um sonhador como ele e que desaparecera cedo demais das suas vidas. Ele beijou-a na testa e disse-lhe para não se preocupar mais com os problemas dele, o avô tinha-lhe dado um conselho que iria ajudar a resolver tudo. A mãe ficou a vê-lo a sair de casa entusiasmado e perguntou-lhe onde ia. Disse que ia pensar um pouco à beira mar e ouvir um pouco de música. Ela estranhou ele não levar o leitor de cd’s portátil, mas ainda assim sorriu enquanto o via pela janela a afastar-se com um andar descontraído e alegre.


De mãos dadas

Quando chegou à praia olhou para todos os lados à procura da sua amiga da semana anterior, não sabia porquê mas sabia que a ia encontrar ali. E estava certo, quase junto à água viu-a pensativa. Sentou-se ao lado dela e beijou-a na face enquanto pedia desculpa por não ter respondido às mensagens dela. Perguntou-lhe se já se tinham encontrado naquele sitio, ela disse que já o vira muitas vezes ali, embora ele parecesse sempre muito distante. Ele disse que não se lembrava dela ali na praia, mas que de certeza que já tinha reparado nela, senão não teria ido ali à procura.

Ela perguntou se ele já chegara alguma conclusão sobre o que lhe tinha acontecido e ele disse que não sabia se havia uma explicação, sabia apenas que podia fazer uma coisa que não sabia se havia mais alguém que pudesse, mas que era uma coisa boa e pelo menos iria tentar utilizá-la para ser feliz. Ela disse que se calhar era algo que desse para aprender e riu-se dela mesmo. Ele riu também e disse que podia ao menos partilhá-la.

Estava um final de dia muito bonito e ele deu-lhe a mão enquanto olhavam o mar e perguntou se ela tinha alguma música que lhe apetecesse ouvir, ela disse que não tinha nenhuma e que na verdade naquele momento preferia ficar a ouvir o barulho do mar. Ele sorriu com a resposta dela e perguntou se lhe podia dar um beijo, não teve quase tempo para acabar a pergunta...

quinta-feira, maio 20, 2004

Cores

Desde pequeno que sempre me fez impressão passar entre duas pessoas que caminham juntas. É como se quebrasse uma ligação invisível entre elas ou então que ficasse de alguma maneira ligado às duas por um nó que poderia ou não ser desatado um dia. Até lá ficaríamos ligados de alguma maneira.

Sempre achei que isto era um sonho meu, apesar de toda a vida ter visto a minha avó a fazer o mesmo e de uma maneira curiosa. Por vezes movimentava-se entre a família numa cozinha cheia de gente sem a mínima preocupação, outras vezes, num corredor ou noutro sitio da casa pedia para passar por um lado ou chegava a pedir às pessoas para desfazerem pequenos percursos que tinham acabado de fazer. O estranho é que eu ao observar tudo isto conseguia ver uma lógica naquele comportamento, como se pudesse ver os fios invisíveis e a forma como eles se enrolavam e soltavam uns dos outros e como isso podia afectar a vida de cada pessoa.

Enquanto fui crescendo esta percepção foi diminuindo, mas sempre consegui sentir quando estava a passar por onde não devia, embora não tivesse a coragem da minha avó. Não conseguia pedir às pessoas para voltar para trás ou que me deixassem passar pela esquerda ou pela direita mas, se pudesse, seguia o caminho que me parecia mais lógico e de uma maneira discreta ia-me desviando no meio da multidão.

Até que um dia percebi que isto não era um sonho meu. Tudo começou quando fui trabalhar para um local novo e certo dia reparei numa rapariga que almoçava perto de mim. Era alguém que eu conhecia, pois tinha entrado numa série de adolescentes na televisão muitos anos antes, mas mais do que isso era uma pessoa que eu já tinha visto em muitas situações. Acho que em todas estas situações tinha pensado nisto vagamente, mas só naquele momento, a almoçarmos perto um do outro, é que percebi que tinha passado toda a minha vida a encontrá-la.

Esta situação era mais estranha ainda, pois eu só vim viver para Lisboa com 18 anos e os encontros já vinham de há mais tempo. Eu lembrava-me dela da praia, de concertos, de passeios na rua, do cinema, de todo o lado. Eram encontros algo espaçados no tempo, o que devia ter feito com que eu não pensasse assim tanto no assunto, mas naquele momento um certo nervosismo apoderou-se de mim. O que era aquilo? Como é que duas pessoas passavam vida a encontrar-se?

Claro que a minha primeira teoria foi a das almas gémeas, mas na verdade eu não simpatizava muito com ela nem a achava especialmente atraente. Na verdade eu não tinha sequer muito vontade de a conhecer, eu tinha era vontade de esclarecer este mistério.

Comecei então a perguntar a todos os meus amigos se já lhes tinha sucedido algo do género, mas para além de ter diminuído bastante na consideração de algumas pessoas que conhecia, não obtive nenhuma resposta positiva. Por esta altura a angústia começava a crescer, pois ela devia trabalhar perto de mim e eu agora via-a com bastante regularidade.

Então um dia sucedeu algo muito estranho, quando estava de férias na praia reparei num homem que eu sabia conhecer de algum lado, depois de pensar um pouco lembrei-me de onde era, eu conhecia-o de umas férias no Brasil. Mas isto não ficava por aqui, de repente percebi que ele também era o senhor que se sentava à nossa frente na praia, no ano anterior e que também tinha estado no nosso grupo naquela visita a umas grutas na Madeira uns anos antes. Fiquei desorientado, era uma situação muito parecida com a da rapariga mas que só acontecia quando eu estava de férias. O que era isto? Que coincidências eram estas? Claramente existiam pessoas que estavam ligadas umas às outras de alguma maneira que fazia com que se fossem encontrando, como que se estivessem presos por alguma linha invisível, que mais tarde ou mais cedo os trazia para junto uns dos outros. Interessante também, era o facto de parecer não ser relevante o facto das pessoas se conhecerem ou não. Eu não conhecia nenhuma destas duas pessoas e sinceramente não tinha nenhuma vontade de as conhecer, embora achasse piada ao homem pois usava um chapéu muito engraçado e nas férias do Brasil ia acompanhado de uma senhora que eu não tinha visto junto com a família nas outras ocasiões. Não aguentei mais, fui ter com a minha avó, que morava fora de Lisboa.

Lembro-me perfeitamente da cara dela quando lhe contei isto tudo e do sorriso que fez. Disse-me que sabia que nós todos reparávamos nas “manias” dela, mas que nunca tinha pensado que pensássemos muito nelas. Olhou para mim durante muito tempo, enquanto mexia no meu cabelo, como se tentasse decidir se devia contar-me alguma coisa ou não. Decidiu contar. Contou-me que quando era nova e vivia na aldeia onde nascera um dia largara a mão da mãe e correra por entre um grupo de pessoas que seguia numa procissão e que enquanto passava entre as pessoas lhe parecera ver umas linhas coloridas que ligavam todas as pessoas que iam naquele grupo, mas que também saíam dali e iam ter com as pessoas que assistiam à passagem. No entanto reparava que entre as pessoas da procissão as cores eram mais fortes.

Com a idade de seis anos deixara a aldeia e poucas vezes lá tinha voltado, mas continuou a encontrar as pessoas da procissão o resto da vida, como se tivesse ficado atada a elas de alguma maneira. Contou-me também que o nesse grupo estava um menino de cinco anos que viria mais tarde a ser seu marido, o meu avô. Disse-me que não sabia explicar tudo o que me contara e que era verdade que nem sempre as pessoas que toda a vida tinha visto tinham tido alguma importância na sua vida. Deu-me um beijo na testa e disse que podia não ligar àquelas tontarias de uma velhota ou que então podia prestar mais atenção à minha volta, a escolha era minha e não me disse mais nada.

Voltei para Lisboa muito pensativo sem saber que conclusões retirar do que a minha avó me dissera e guiei descontraidamente, ouvindo música e sonhando acordado. Quando estava quase a chegar a casa ao fim da tarde vi um arco-íris muito bonito e bem definido que fazia um arco perfeito por cima de mim. Fiquei muito tempo a olhar para ele e estranhei ele demorar tanto tempo a desaparecer. Então tive um impulso e saí da estrada principal em direcção ao lado do arco-íris que me parecia estar mais perto de mim.

Guiei alguns minutos em direcção à base do arco-íris e fui dar a uma terra muito simpática onde parecia estar a haver uma festa. Parei o carro e olhei o céu, as cores no céu já quase não se viam, mas ainda conseguia seguir o arco que parecia terminar no centro da praça onde a festa decorria. Podia ver pessoas a dançar enquanto outras conversavam alegremente. Um cheiro a comida acabada de fazer juntava-se aos cheiros do fim da tarde e as cores esbatidas do arco-íris juntavam-se às cores avermelhadas do horizonte. Por momentos pareceu-me ver uma linha colorida a passar por mim e pensei se seria imaginação minha, aquela hora do dia era estranha e eu tinha tido um dia cheio. Pensei então no que minha avó me tinha dito, pensei no meu avô, que morrera anos antes, mas que deixara uma saudade muito grande no meu coração e depois de um pequeno sorriso e de um último olhar para o céu, comecei a andar devagar e entrei na praça...

terça-feira, maio 04, 2004

Papagaios e cães

Vermelho e Verde

Enquanto avançava por entre as pessoas, demasiado embriagado, conseguia reconhecer os mesmos rostos de sempre. Sílvia, a fogosa loura que nunca parava de dançar até cair exausta num canto qualquer. Maria, que quase sem se mexer enfeitiçava todos os presentes. Carla, completamente desengonçada e sempre no engate. João, batendo violentamente em quem passava.

A mistura de álcool com as pastilhas era muito agradável pois parecia que estava dentro de um daqueles vídeos onde uma câmara de filmar segue desfocada por entre as pessoas e todos nos cumprimentam. Era o meu momento, o artista de cinema no meio dos admiradores.

Os tons de vermelho e verde faziam tremer os meus olhos e a batida exagerada parecia fazer com o que o meu coração batesse descontroladamente. Era o rei da noite, não sentia metade do corpo, mas era o rei e todos se curvavam diante de mim enquanto avançava para o meu trono. Daquela cadeira dourada decidia a sorte de todos, quem vivia, quem morria, quem ficava com quem.


Acordar

Tinha sempre o mesmo sonho depois das noites de discoteca antes de acordar e ir vomitar à casa de banho. Era uma rotina de fim-de-semana que me agradava e passava todas as semanas enfadonhas sonhando com aquele momento em que, sentado no chão da casa de banho, tentava decidir o que fazer com o resto do Domingo. Iria para praia, apesar de ser Inverno.

Como sempre só eu, os papagaios e os cães, eu gostava mais dos papagaios e da forma como dançavam no ar. O cães só chateavam e nunca conseguia meter conversa com as donas. Naquele dia um cão cinzento aproximou-se de mim com um papagaio na boca, uma variação interessante. Atrás dele vinha uma rapariga de calções cremes e botas castanhas, cabelo louro apanhado e um ar um pouco atrapalhado, devia pensar que o papagaio era meu. Disse-lhe que não e ela disse que o cão também não era dela, estava só a tomar conta dele naquela tarde. Era um bom começo, com o cão eu nem tentaria meter conversa.

Chamava-se Inês, eu gostava de Inês, era um nome diferente, com um acento circunflexo, e que soava bem ao ser pronunciado. Eu também gostava desta Inês, de olhos castanhos e pele branca. Mas ainda estava zonzo da noite passada e tinha medo de dizer algum disparate, não podia me descair com o meu medo de cães, pelo menos enquanto o amigo dela andasse a rebolar por ali.


Outra vez as cores

Ela disse que me conhecia, eu fiquei um pouco atrapalhado, pois ainda ontem tinha chegado a casa em tronco nu. Não pude deixar de comentar, um defeito meu, ela riu perdidamente, melhor, ela rebolou na areia. Cheguei a sentir alguma raiva, mas ela era muito bonita e aquele sorriso...Ela conhecia-me do metro, parecia que apanhávamos a mesma linha e normalmente à mesma hora, o que era estranho pois eu ia sempre a olhar para todas as pessoas, onde é que ela se escondia? Bem, pelo menos não me conhecia de outro sitio e com menos roupa. Embora não tivesse a certeza que isso fosse bom, eu estava mesmo muito confuso naquela tarde.

Descobri naquele momento que tínhamos sido feitos um para o outro e se o cão continuasse longe podia vir a ser uma tarde perfeita. Conversámos muito e descobrimos que não tínhamos praticamente nada em comum, prometedor sem dúvida. Tinha a certeza agora que era a mulher da minha vida. Perguntei-lhe se podíamos assistir ao pôr-do-sol juntos e ela disse que tendo em conta que não conseguia imaginar nada mais piroso, iria aceitar. Por esta altura já estava completamente apaixonado e acho que ela também.

Demos as mãos e vimos o pôr-do-sol mais feio que alguma vez vi, o sol era de um amarelo esbatido e enfiou-se depressa na neblina, acho que na realidade foi só um meio pôr-do-sol. Mas eu beijei-a na mesma e foi o beijo mais doce de toda a minha vida, pelo menos até o cão ter caído em cima de nós cheio de areia e algas.


Eu e a Inês

Hoje estamos juntos e somos muito felizes, temos um cão, mas é pequenino e é ela que trata dele, até porque eu desconfio que ele não gosta de mim. Eu comprei um papagaio e todos os domingos imagino que voo com ele. Já não vou tanto à discoteca, até porque eles têm outro soberano. Mas fico em casa a olhar o céu, que na cidade não dá para ver grande coisa, mas eu sei as constelações de cor e aponto para o lugar delas enquanto estamos deitados na varanda e às vezes até deixo que o cão fique connosco.

sábado, abril 24, 2004

Tempo

Queria que o tempo parasse aqui para poder olhar tudo à minha volta, ler os livros que comprei e ver todos os filmes que já foram feitos. Então tudo à minha volta fica em câmara lenta e eu sou o herói super-sónico que passa por todos sem ser notado. Não uso relógio pois o tempo não existe, é uma invenção dos homens.

Voo por cima do mar sem saber onde estou, sem saber que dia é e que horas são. Não sei o meu nome, não sei de onde venho, estou sozinho, mas o tempo não passa. Eu subo para o céu, toco as estrelas que brilham sem saberem porquê e que não se preocupam com o seu fim.

Eu tenho medo do dia em que o tempo vai fazer sentido e quando não puder voar mais. Tenho medo de me aparecer de repente um relógio no meu pulso esquerdo e de voltar a ouvir aquele tic-tac que me provoca uma angústia sedutora. Nessa altura os pesadelos vão voltar e os miúdos à volta da árvore velha vão cantar uma música desconhecida que nunca acaba.

Toco flauta em cima de um telhado, olho o céu e vejo que está cor-de-laranja e verde. Sei que nasci e que sou filho de uma mãe que não existe mas que consigo ouvir ao fim da tarde. O sol traz esse som com uma cor de ouro e eu respiro fundo antes de partir. As crianças já ouviram a flauta e voam para a ponte de vento.

Na noite de tempestade eu ouço os tambores e vejo a guerra à minha frente. A lua faz brilhar as espadas que estavam guardadas para esta batalha entre os dois mundos. Consigo ver o brilho nos olhos dos nossos oponentes e cheiro o medo no ar. O sonho pode acabar aqui hoje pois o sangue derramado vai abafar a música. Embora a nossa causa seja nobre sei que isto é errado mas agarro na minha espada e com os olhos num só dos meus inimigos, corro sem pensar.

A morte ceifa as vidas dos dois lados e não me vê passar e eu continuo sem tocar em ninguém, a minha lâmina tem um encontro e tem de estar imaculada. Paro então e quase consigo tocar nos seus cabelos negros que neste mundo parecem não ter fim. Sinto vontade de a beijar mas tento atingir o seu coração. Quase que nos erguemos no ar e lutamos brutalmente com amor e ódio por uma causa desconhecida.

Um silêncio repentino, a guerra parece que assiste e as espadas param a olhar para nós, mas é tarde demais, um leve tocar de lábios, um olhar triste e dois corpos são feridos, caímos no chão de mãos dadas, sem sentir nada, sem ouvir nada, a chuva junta o sangue e nós morremos.

O tempo não passou, pois não existe e eu voo...

A Noite (uma parte do tempo)

Noite

Ouço os tambores ao longe e estremeço um pouco. A chuva cai de forma brutal mas não consegue apagar os archotes que nos deixam ver os nosso inimigos.

Tento que o meu cavalo se mantenha quieto perante aquele barulho ensurdecedor mas não é muito fácil, de alguma forma ele sabe o que nos espera e os seus olhos estão inquietos.

Penso o que estará ela a pensar do outro lado do charco em que se tornou o futuro campo de batalha. Já passaram alguns anos desde aquele encontro e não conseguimos manter as promessas feitas. Por isso hoje vai haver guerra, hoje pode ser que nos encontremos e que tenhamos de lutar um contra o outro.


Dia

Nasci filho de reis e com um destino traçado numa terra envelhecida pelo sangue derramado. Desde sempre que os reinos do norte e do sul lutam, sem que nenhum dos lados consiga vencer e com gerações e gerações perdidas nesta luta esquecida, nesta terra esquecida.

Sabia pois que não era sensato passar a árvore esquecida, marca do caminho sem volta e entrada na terra de ninguém, onde os dois reinos não tinham poder, mas onde os soldados do sul costumavam esperar que algum de nós se aventurasse. Mas há séculos que os príncipes do norte faziam esta viagem e eu não seria o primeiro a quebrar a tradição.

Foi sem surpresa que ouvi o barulho de espadas e o bom senso deveria ter-me feito afastar, mas não o fiz. Subi a uma árvore gigantesca e consegui perceber a origem dos sons de luta, eram os ogres.


Noite

O meu pai olha com pena para todos os homens. Sabe que muitos não voltarão para as suas famílias e que de certa forma ele é o responsável por isso, ninguém lhe irá apontar isso, mas ele sabe o fardo que tem que carregar. E eu sei que um dia, quando o anel passar para a minha mão, também serei o responsável por todos aquelas famílias desfeitas.

Os gritos aumentam e eu sei que já não podemos voltar para trás. Penso se será hoje que será travada a batalha final, aquela sobre a qual os poemas do norte e do sul falam há milhares de anos.

Tento reconhecer caras do outro lado do campo, mas só vejo armaduras negras por entre os pingos da chuva que teimam em cair. No centro dos nosso inimigos um brilho azul chama-me a atenção, será o colar que em tempos tive entre os meus dedos? Será que a minha espada vai ficar parada perante aquele brilho familiar? Como é que viemos aqui parar?


Dia

Os ogres eram os verdadeiros donos daquela terra, mas alguém para além de mim tinha invadido os seus domínios e eles iam no seu alcanço.

Desci da árvore e deslizei suavemente no chão de forma a poder ver melhor o que se passava. Um grupo de ogres tinha encurralado um soldado do sul, que se debatia por entre as espadas enferrujadas daqueles monstros sem dono.

Podia observar o rasto de corpos imundos espalhados no chão desde a estrada a leste até aquele vale sem saída e perceber que não era um simples soldado, mas os ogres eram muitos e ele não ia resistir muito mais tempo. O que eu pensava fazer poderia condenar-me à morte, mas não conseguia ver alguém morrer assim perante bestas sem nenhum tipo de crença.

Elevei-me no ar e a minha espada reflectiu o sol sobre todos. Quando toquei o solo já dois ogres jaziam sem vida e os outros iriam seguir o destino dos anteriores. Um grupo daqueles não podia vencer dois soldados treinados e em segundos os que tinham tido a sorte de não terem conhecido as nossas laminas fugiam desesperadamente enquanto eu olhava para o cristal azul que pendia do pescoço do meu parceiro de batalha e aguardava pela surpresa que iria ter.


Noite

A ordem foi dada e as flechas voam de um lado para o outro contra os muros de escudos. Eu mantenho-me de pé confiante na sorte e devido ao súbito aparecimento da lua consigo ver o inacreditável, dos dois lados todos estão junto ao chão debaixo dos escudos enquanto os archeiros lançam de longe as suas flechas cegas, os dois exércitos orgulhosos parecem grupos de crianças aterrorizadas agarradas às saias das mães.

Duas figuras mantêm-se em cima das suas montadas como se as flechas não lhes pudessem tocar, uma delas sou eu, príncipe do norte, o que carrega a espada dos reis de outrora, o outro soldado sem medo veste de negro e usa a estrela azul ao pescoço.

Um relâmpago faz o meu cavalo estremecer e elevar-se, como se sentisse a fúria contida de todos os milhares de homens que o rodeiam. Eu sinto o mesmo e olhando para o meu pai, dou ordem de corrida ao meu companheiro de sempre. Não vejo o desespero nos olhos do Rei, mas sei que por baixo do metal que lhe cobre a cara as lágrimas correm, ele sabe que vou de encontro ao meu destino e que posso não voltar.


Dia

Tal como esperava não tive nenhum agradecimento e só tive uns segundos de descanso antes de ter de lutar outra vez. Os homens do sul acreditam nas leis antigas de duelo e antes de matarem sabem que se devem dar a conhecer. A máscara de combate caiu no chão e pude vê-la pela primeira vez com os seus cabelos e olhos negros. Uma guerreira que esperava apenas pelo passar dos segundos a que eu tinha direito, depois a luta recomeçaria.

Nas suas mãos vi um arma da qual já ouvira falar, era a espada de dois gumes, manejada por duas mãos e feita do mesmo material que a minha. Não haviam duas espadas daquelas, o meu oponente tinha-se identificado. Eu não sabia que o actual herdeiro do sul era uma mulher.

Ao seu ataque respondi com um desviar, mas não desembainhei a minha espada, esta luta não fazia sentido e eu não iria travá-la. Ela tocou na minha armadura mas não me feriu, estava a conter-se, mas não parava de me tentar atingir e saltámos de rocha em rocha com ela a tentar ferir-me e eu a tentar esquivar-me.

Agarrei de forma firme na sua espada e disse que não lutaria. Ela parou sem saber o que fazer enquanto eu destapava a face e olhou para o símbolo no meu peito. Eu não estava vestido como um príncipe, mas aquela também não era a armadura de um simples soldado. Ela percebeu finalmente e parou, os dois reinos olhavam-se nos olhos.


Noite

Do outro lado também uma figura se começou a mover, duas figuras negras que cavalgam sozinhas ao encontro uma da outra. Não penso no que vai acontecer, só grito para irmos cada vez mais depressa, com as mãos na rédeas e olho para o vulto que se aproxima.

Saltamos no ar mas não nos tocamos, caímos no chão e o metal das nossas espadas reflecte a lua antes de nos aproximarmos. Estamos de cara destapada e podemos ver os olhos um do outro, onde as lágrimas contidas se podem ver quase a cair na lama. Não falamos e parece que o tempo pára naquela noite de tempestade.

De repente gritamos furiosamente e desferimos golpes furiosos contra o outro, somos ambos guerreiros de excepção, quase iguais na arte da guerra e facilmente anulamos os golpes contrários. O que estamos nós a fazer?


Dia

Mais ogres aproximavam-se e saímos daquele lugar, cavalgando lado a lado até ao monte verde que parecia ser o destino dos dois naquela terra hostil. Ela tinha uma voz doce e agradeceu a minha intervenção, apesar de dizer que não era necessária, hoje sei que falava verdade, mas na altura admirei apenas o orgulho nos seus olhos.

Queria que o tempo tivesses parado naquele dia, pois foi o mais perfeito de todos os da minha vida. Subimos ao altar antigo e cada um cumpriu o objectivo da sua viagem, como é que os príncipes dos dois reinos inimigos tinham os mesmo costumes? Não entendíamos o sentido de tal coincidência mas sabíamos que deveria significar alguma coisa.

Conversámos durante horas e antes da noite se aproximar e de termos de voltar para os nossos, fizemos uma última paragem, chegara a hora dos nossos caminhos tomarem sentidos opostos. Não falei muito pois não havia muito a dizer, toquei levemente no seu rosto e fixei longamente o cristal azul. Ela não disse nada, tocou apenas na minha mão e nos rasgões que tinha feito na minha armadura, mas os seus olhos disseram tudo o que eu precisava e eu prometi-lhe que o futuro seria diferente.


Noite

Como é que deixámos isto acontecer? Como é que os anos passaram e não conseguimos que aquele dia tivesse mudado alguma coisa?

Sentimos os olhos dos outros em nós, sentimos o peso de todo este ódio nos nossos ombros. Estou cansado e quase que desejo não conseguir deter um dos seus golpes, olho os seus olhos e vejo que ela também deseja o mesmo. Então avançamos um para o outro e as nossas espadas chocam violentamente deslizando uma na outra, ficamos perto e consigo sentir a sua respiração e o seu cheiro. Trocamos palavras de amor e de despedida e erguemos as nossas armas num gesto que todos compreendem, chegou o fim, a guerra termina aqui, com o nosso amor, com o nosso sangue.

Caminhando

Vinte e três

Estava casado há cinco anos e nunca tinha traído a minha mulher. Era este o meu pensamento enquanto olhava para o gelo no fundo do copo naquele bar no meio do Porto. Estava já ali há duas semanas em trabalho e tinha ganho algum afecto por aquele canto mesmo no meio da cidade, que ficava muito perto do meu hotel.

Era uma espécie de mistura entre os bares que frequentara na província, antes de ir estudar para Lisboa, e os bares cheios de universitários que conhecia na grande cidade e que, felizmente, não frequentava há muito.

O tipo de clientela era muito heterogéneo, mas a média de idade não era muito alta, ia desde os vinte e poucos até aos trinta e muitos, eu estava no meio. Esta posição era-me favorável pois podia sonhar com todos, ou melhor com todas.

Era nisso que eu pensava naquela noite de calor, nada própria daquela altura do ano. Nas pessoas que estavam ao meu lado e na minha vida, principalmente no meu casamento. Não é que não fosse feliz mas ao fim de uns anos as dúvidas, que sempre existiram, tornaram-se mais fortes e eu comecei a questionar tudo e a olhar para o lado de outra maneira.

Tinha crescido observando as relações dos outros e quando chegara à idade adulta tinha mais que informação suficiente para saber que a fidelidade era um mito. Mesmo assim tinha-me recusado a acreditar que tal fosse uma fatalidade e tinha casado acreditando que podia fugir ao que era o mais óbvio. Com o passar dos anos fui vendo as coisas que iam acontecendo nos casamentos dos meus amigos e a descrença começava a apoderar-se de mim.

Levantei os olhos do copo e reparei que ao meu lado estava uma rapariga sozinha a escrever numa folha descontraidamente. Era mais ou menos da minha idade, ou pelo menos assim parecia e era muito bonita, com uma cabelo preto curto e uma pele muito branca. Estava vestida com umas calças de ganga escuras e com uma camisola preta de mangas compridas, tudo muito simples, como eu gostava.

Sempre olhei para as pessoas, sempre observei todas as pessoas que por um motivo ou outro apareciam à minha frente e sabia que às vezes chegava a exagerar na forma como olhava. Este caso era especialmente difícil, pois ela estava muito perto de mim e eu para olhar ia dar muito nas vistas. Já estava quase com o pescoço todo torto numa posição completamente ridícula, quando o empregado do bar se dirigiu a mim e perguntou se me estava a sentir bem. Senti-me a ficar de todas as cores, sabia que ela tinha ouvido, sabia que ela podia ver a aliança na minha mão esquerda, esquecia-me sempre dela até ao momento em que me lembrava que nestas situações ela só fazia com que eu ficasse mais exposto.

Estive cinco minutos a olhar outra vez para o gelo e a pensar em ir dormir, quando de repente senti um frio no estômago e por impulso olhei directamente para ela e disse como me chamava, assim, sem nenhuma explicação ou introdução. Ela olhou para mim, esboçou um leve sorriso, disse o seu nome também e continuou a escrever. Fiquei completamente desarmado, tinha sido uma resposta que não dava para eu perceber nada e assim tinha que insistir e talvez fazer mais figuras tristes. Mas também muito pior não podia ficar e aproximei-me. Perguntei o que é que ela estava escrever e ela disse que antes de eu olhar para ela estava a escrever o nome dela repetidamente, mas que nos últimos minutos tinha estado a apontar o número de vezes que eu olhava directamente para ela, vinte e três. Eu achei impossível mas não argumentei.


Vinte e quatro

Conversámos. Mas não foi uma conversa de bar, não foi daquelas conversas em que se tenta meter toda a vida no menor número possível de palavras. Foi uma conversa calma, ao sabor da noite, em que as pausas em vez de constrangedoras foram reconfortantes. Quem era esta rapariga que eu parecia conhecer há tanto tempo? Que sensação era esta que me fazia estremecer um pouco de cada vez que a sua voz chegava a mim? O que estava eu a fazer?

Chegou a meia-noite e eu achei que me devia ir deitar, estava tudo tão perfeito que pensei que era melhor não exagerar, sabia que mais uns minutos e ainda acabava a desculpar-me por ter olhado tanto para ela ou a explicar que não estava a atirar-me a ela, enfim, coisas minhas. Despedimo-nos com dois beijos na face e nem falámos em trocar telefone, mails ou outro meio qualquer de contacto. Fiquei a vê-la a descer a rua sem nunca ter olhado para trás, esta segurança é que me desarmava, pois eu não sentia que ela fosse assim, achei que devia ser só comigo, um pensamento agradável, ou não.

Fui para o quarto e sentei-me na varanda a olhar o céu. Sempre sentira que não tinha crescido o suficiente, mas agora cada vez sentia mais que não sabia nada de nada. Fiquei ali umas duas horas a pensar na vida e a pensar nela, que estranho encontro, que estranha empatia. Sabia que devia ter ficado com o telefone dela, mas a vida é estranha e arranja maneiras.


Dez

Passou um ano em que não fui ao Porto uma única vez, até que numa tarde de Outubro recebi uma chamada do meu chefe a perguntar se era possível eu ir na semana seguinte passar uns dias ao Norte para acompanhar um projecto importante, eu aceitei.

Apesar de ter ficado no mesmo hotel que no ano anterior não me atrevi a ir ao bar onde tinha conhecido aquela rapariga que de vez em quando ainda invadia os meus sonhos. Tinha medo de não a encontrar e isso ser uma desilusão, um comportamento pouco aceitável para uma pessoa da minha idade, mas que eu não conseguia deixar de ter.

Foi no outro lado da cidade e sem muita vontade que, no terceiro dia fora de casa, eu fui com uns colegas a uma discoteca. Nunca gostara daqueles ambientes cheios de fumo e acabava sempre a um canto a perguntar como é que tinha ido ali parar, enquanto observava a multidão histérica a correr para a pista de dança ao toque do êxito do momento.

Esta vez não foi excepção, mas tinha escolhido um canto muito bom, onde mesmo sentado conseguia observar tudo o que se passava e fiquei por ali olhando para toda aquela gente divertida até que alguém me tocou ligeiramente nas costas. Não posso dizer que tenha ficado surpreendido, era algo que eu não sei porquê já esperava, mas fiquei um pouco nervoso, estas coincidências sempre me tinham incomodado.

Ela estava na mesma, a mesma calma no olhar, o mesmo sorriso doce. Como eu ficava desarmado perto desta mulher, parecia mesmo um adolescente. No entanto, a conversa foi outra vez fácil e a noite foi avançando enquanto falávamos como se o nosso encontro anterior tivesse sido no dia anterior. Até que veio o silencio no meio de todo aquele barulho ensurdecedor e ficámos só a olhar um para o outro sem dizer nada. E eu mudei.


Um

Agarrei-lhe num braço e fiz sinal para irmos embora. Ela pareceu surpreendida com a minha atitude, pareceu não estar à espera do meu olhar decidido, mas eu também tenho os meus momentos e ela não disse nada e seguiu-me apenas com a sua mão na minha.

Caminhámos muito pelo centro da cidade quase deserta, sem que ninguém dissesse uma única palavra. Mas continuávamos de mãos dadas, continuava a sentir a sua pele na minha com um aperto ligeiro mas firme, como se fosse uma criança que seguisse o pai distraidamente, mas com a atenção suficiente para não se perder.

A minha cabeça não pensava em nada e foram momentos muito estranhos, pois eu tinha entrado numa espécie de transe em que sentia que claramente não dominava a minhas acções, embora tudo fizesse sentido. Então parei e pedi desculpa. Ela perguntou, porquê, mas a segurança na sua voz não era a mesma e eu percebi que ela estava nervosa. Ficámos longos minutos a olhar um para o outro no meio da rua e eu sentia-me como se estivesse a ver um filme, como se eu observasse toda esta cena de fora.

Eu não queria ir embora, não queria deixar à sorte a possibilidade de voltar a encontrá-la, mas não sabia o que fazer. Estava frente a uma pessoa que mal conhecia e com a qual só tinha tido duas conversas e com um ano de distância, mas que eu sabia estar ligada de alguma maneira ao meu destino, destino no qual eu não acreditava. Não sei quanto tempo estivemos ali parados, o tempo parou, então eu sorri e larguei a sua mão sem deixar de olhar para os seus olhos. Disse-lhe que nunca a esqueceria e desta vez fui eu que desci a rua sem olhar para trás, algumas lágrimas caíram-me dos olhos, mas continuei.


Dois

No dia seguinte acordei com uma sensação estranha, uma calma estranha tendo em conta tudo o que se tinha passado. E o que é que se tinha passado? Esta era uma pergunta para qual eu não tinha um resposta fácil, decidi então não pensar mais no assunto, seria um sonho para recordar, uma memória meio desfocada que ficaria na minha cabeça sem provocar muito mal, esperava eu.

A semana no Porto transformou-se em duas, em que tive de trabalhar imenso, sem nunca sair à noite, até ao dia anterior a regressar a Lisboa, em que resolvi sair um pouco. Deixei o hotel sozinho e vagueei sem ver por onde andava, até que alguém me perguntou as horas, ainda era cedo, tirei os olhos do chão molhado da chuva e reparei que estava frente ao bar onde ia muito no ano anterior e onde tudo tinha começado, entrei.

Estava praticamente vazio e dirigi-me ao balcão sentando-me precisamente no mesmo lugar onde tudo tinha acontecido. Pedi uma bebida e olhei para ver se ela estava lá, mas não, o lugar estava vazio e senti um aperto no estômago, claro que eu queria que ela estivesse ali, mesmo que não soubesse o que fazer se tal acontecesse, mas eu desejava que ela estivesse ali.

Fiquei muito tempo a olhar para o lugar vazio, como se isso pudesse fazer com que ela aparecesse de repente. Senti-me triste, sentia que tudo o que tinha feito sentido já não fazia. Senti que não devia ter descido a rua sem olhar para trás, senti que tinha perdido uma oportunidade de algo, só não sabia do quê. Voltaria para Lisboa, voltaria para a mulher que amava, para a minha vida que nem sempre era cinzenta e o tempo mudaria tudo.

Levantei-me olhando uma última vez para o lugar cada vez mais vazio e despedi-me, olhei para o outro lado e comecei a andar quando reparei que do outro lado a dois lugares de mim estava ela a olhar para mim. Fiquei sem palavras. Mas ela não e perguntou-me se eu achava que as pessoas fazem sempre as coisas da mesma maneira. Eu disse que sim, pelo menos quando querem que algo de bom volte a acontecer. Ela sorriu e disse que não concordava, era no imprevisto que estava o segredo, não podíamos deixar o destino ditar as suas leis, era preciso que de repente virássemos à direita quando tínhamos de virar à esquerda, era necessário confundir o destino. Eu disse que não acreditava no destino, mas ela sabia que eu estava a mentir.

Acompanhou-me até ao hotel e ficámos parados à porta. Estávamos tão perto que eu sentia o seu perfume e as nossas mãos iam-se tocando como que empurradas pelo vento. Beijei-a, beijei-a como nunca tinha beijado ninguém na vida. O mundo rodou descontroladamente, as luzes dos candeeiros falharam, a chuva caía de uma forma estranha. Era eu ou o mundo tinha mudado? Era eu que enlouquecia, ou a cidade estava parada a olhar para nós? Não a larguei durante o que para mim foi uma eternidade e ao mesmo tempo o momento mais rápido da minha vida.

Olhei para ela e disse que a amava, ela sorriu enquanto uma lágrima lhe escorria pela cara juntando-se aos pingos da chuva. E então voltou a falar com aquela confiança que parecia só ter ao pé de mim. Disse que também me amava e que nunca tinha sentido nada assim por ninguém, disse-me que eu era o destino dela e que nem todas as pessoas encontram quem as pode fazer felizes. Mas também disse que, mais uma vez, tinha de seguir pelo caminho menos óbvio. Vi a mão esquerda dela fechada e pensei que nunca lhe olhara com atenção para os dedos, embora soubesse que eram os mais bonitos que já vira. Sorri e entrei no hotel.

Amanhã

Passou um ano e dois meses desde aquela noite chuvosa e passeio pela minha cidade. Voltei a estar sozinho e mudei tudo na minha vida. Deixei o emprego, voltei a escrever e comprei uma casa com uma vista sobre o Tejo que deixa qualquer um sem palavras. Pode parecer um pouco irresponsável uma pessoa que diz não acreditar no destino fazer depender a sua felicidade de um outro acaso que ninguém pode jurar que vá acontecer, mas a verdade é que já sou feliz, já encontrei a calma que há muito procurava e já encontrei o meu caminho, só que de vez em quando sigo por outra rua, pois é lá que eu a vou encontrar.