quinta-feira, fevereiro 09, 2006

Cartas

Bissau, 17 de Fevereiro de 1969

Finalmente tenho algum tempo para escrever. São tantas as coisas que tenho para te contar que nem sei por onde começar, acho que por repetir infinitas vezes que te amo e que esta separação a que nos obrigam vai parecer pequena daqui a uns anos.
Apesar de estar contrariado num país que não conheço, a milhares de quilómetros dos que amo, não posso deixar de sentir que esta terra tem algo que cativa e não nos deixa indiferentes. Não consigo esquecer o momento em que saí do avião e senti o ar quente na cara, tive de reprimir a sensação de que aqui também estou em casa, de que aqui também posso ser feliz, pois sei que vim para uma guerra, para uma luta que não desejo e o meu único pensamento deve ser o de voltar para ti...


João parou de ler a carta que tinha nas mãos e olhou para a sua avó. Estava sentada muito direita ao lado do caixão castanho com um ar tranquilo, demasiado tranquilo para quem acabara de perder o companheiro de tantos anos. Caminhou até ela e beijou-a na testa.
- Estive a ler um pouco de uma das cartas que me deu, o avô falava de quando chegou à Guiné.
Ela esticou as mãos para as dele e falou devagar.
- Foi em Fevereiro, não foi?
- Sim, há quase sessenta anos.
- Ele queria muito que tu ficasses com estas cartas.
- Eu sei avó, mas elas...elas deviam ficar com a avó.
- Meu querido...eu não vou durar para sempre e o avô queria que aquele tempo não fosse esquecido.
- Mas porque é que não as deixou ao pai? Malditos teimosos...porque é que não se entenderam?
Ela passou a mão pelo cabelo negro dele e sorriu.
- Sabes que para nós sempre foste um filho, não sabes?
- Eu sei, mas ele é que é o vosso filho.
- E um filho que muito amo, mas a vida nem sempre é como queremos, o teu avô queria tanto ter sido um pai diferente, mas acho que só o conseguiu contigo.
- Eu tive dois pais maravilhosos...e duas mães também, mas porque é que as coisas não foram diferentes?
Não esperou pela resposta e afastou-se de volta ao sítio onde tinha começado a ler as cartas. Abriu a caixa de madeira que a avó lhe entregara no dia anterior e tirou uma carta ao acaso.


Bissau, 18 de Agosto de 1969

Só passaram seis meses desde que cheguei e tenho a sensação que sempre aqui vivi. Todos os dias sonho com o dia em que vou voltar a ver-te, mas não posso mentir, cada vez amo mais esta terra e sofro por tudo que aqui acontece. Às vezes à noite sonho com o fim da guerra e com nós dois a vivermos neste paraíso esquecido, sonho com os nossos filhos a correrem por entre as árvores e nós a bebermos chá frio ao fim da tarde. O pôr-do-sol aqui é tão bonito que nem o vou tentar descrever...


Guardou a carta na caixa e saiu da capela, era estranho estar a ler os relatos do avô. Ele nunca falava do tempo que passara em África e lembrava-se de uma vez lhe ter perguntado como é que tinha sido a guerra e de ter visto as lágrimas aparecerem nos seus olhos. Nunca mais lhe perguntara nada sobre a Guiné e agora sentia que de alguma maneira estava a magoá-lo. Mas tinha sido ele a querer que ficasse com as cartas e não ia pôr em causa a sua vontade.
O avô Fernando tinha sido mais do que um simples avô, tinha sido o seu companheiro de aventuras e recordava agora as tardes infinitas passadas a dois. Lembrou-se dos papagaios de papel de jornal, das fisgas feitas de borracha de pneus velhos, dos barcos esculpidos na madeira dos pinheiros, lembrou-se de tudo o que aprendera com ele e sentiu saudades.
Só tinha pena de não ter podido partilhar esses momentos com a única pessoa no mundo que amava tanto quanto o avô, o seu pai. Nunca percebera bem o que se tinha passado entre eles e com os anos deixara de tentar entender o que não parecia ser possível mudar. Sabia que tinham sido bastante próximos quando o seu pai era ainda criança, mas algo os afastara e o tempo escondera as razões.
Apagou o cigarro no chão de terra e dirigiu-se para o interior da capela, abriu outra vez a caixa e retirou outra carta.


Bissau, 23 de Setembro de 1970

Desculpa não ter escrito nas últimas semanas, mas as coisas aqui não têm sido fáceis. Os tempos de prazer acabaram e esta terra, que apesar de tudo teimo em amar, tornou-se um inferno para a maior parte de nós. Os combates são cada vez mais brutais, cada vez mais violentos, cada vez mais sem sentido e não sei quanto tempo mais aguentarei. Desculpa-me por ter de te contar estas coisas, mas não sei mais a quem recorrer, os meus companheiros passam o tempo a decorar as rezas que depois repetem enquanto se escondem de cara enfiada na lama e eu não tenho ninguém com quem falar. Eu não me escondo, não me escondo pois já perdi o medo e luto de peito aberto por algo em que não acredito...e acontecem coisas que eu não sei se alguma vez vou esquecer. Promete-me, promete-me que um dia me deixas deitar no teu colo e tentar não pensar mais nisto, promete-me que os nossos filhos não vão saber, promete-me que vou ser um bom pai...


A carta tinha mais linhas escritas mas João não foi capaz de continuar. Levantou-se e dirigiu-se à sua avó que continuava sentada no mesmo sítio, abraçou-a com força e chorou.
- Avó, tu não merecias ter tido de ler aquelas cartas...aqui longe sem poder fazer nada. Eu não fazia ideia...
- Não chores neto, elas fazem parte do passado, mas eu não podia não as ter lido. Foi saber que eu as lia que lhe deu forças para sobreviver. Sem isso ele não tinha conseguido, porque nós sempre partilhámos tudo e eu tinha de estar com ele, percebes?
- Acho que sim...mas é tão injusto, a vida é tão injusta...e o pai, o que aconteceu com o meu pai? Isto tudo...isto afectou muito o avô, não afectou?
- O teu avô teve uma boa vida...e teve anos maravilhosos com o teu pai, onde é que achas que ele aprendeu a brincar com crianças? Meu querido, ele adorava-te, tal como adorava o teu pai.
- Mas então porquê?
- Porque há marcas que ficam na alma de um homem, feridas que voltam a abrir quando menos esperamos, foi só isso. Mas não te quero ver assim, não foi para isto que ele te deixou as cartas, foi porque te adora e porque acha que apesar de tudo elas têm muitas coisas boas que merecem ser lembradas. É uma parte importante da vida dele...da nossa vida que está ali e deve ficar com alguém que possa compreender, que possa guardar tudo com amor.
- Amo-te avó, amo-vos muito aos dois.
Abraçou-a mais uma vez com força e pelo canto do olho reconheceu uma figura à porta da capela. Pela primeira vez reparou que estavam a ficar parecidos, que o tempo os aproximara de uma maneira que não podiam recusar. O seu pai tinha agora o mesmo cabelo grisalho que o seu avô sempre tivera e as mesmas rugas que se habituara a observar. Foi ter com ele e reparou nos seus olhos cheios de lágrimas que teimavam em não cair.
- Sabes pai, ele amava-te muito...
- Eu sei filho...eu sei, eu também o amo muito.

16 comentários:

Kiau Liang disse...

Ontem mostrei pela primeira vez isto à minha mãe, choramos as duas agarradinhas pela alma....já tenho os olhos cheios de lágrimas outra vez

http://pe-com-meia.blogspot.com/2005/03/viver-para-sempre-no-corao-de-quem.html

miak disse...

Dos poucos textos que não preciso de comentar muito...

Sinto-o como meu...tanto que nem queria falar sobre ele...

:)

laura disse...

Às vezes o que não é dito, mas que se sente, é tão ou mais valioso que o dito. Mas também é bom que seja dito, para que possa ser melhor saboreado.

xein disse...

Caramba! Cada vez escreves melhor... Fizeste-me lembrar as cartas do António Lobo Antunes... Bom sinal, hein! ;)

Sente-te!

inBluesY disse...

de facto a tua mais real, a do "miak" a fantasia. sempre agradável perder algum tempo a lêr estes V/textos.

Aq disse...

Amor, sem palavras. Sequer sem proximidade perceptível. É o amor que se tem àqueles que não estão próximos por qualquer motivo. É o amor que se tem aos que já nem estão. A outra face do amor incondicional. Do único amor eterno. Um texto bonito.

kolm disse...

Estive perto destas dores semi- adormecidas em homens maravilhosos... Tomei refeições, ri, brinquei e zanguei-me sentada ao lado delas. Foram muitas as vezes que reprimi o sentimento de os abraçar face a histórias de amizades e desamores mutilados.
Nunca na minha vida vou esquecer o Martinho, e o Pereira... boas e más tardes, passadas dentro de realidades alucinantes.
E o ir para casa de coração partido e com os olhos cheios de lágrimas...com vontade de lhe dar aquele carinho que não podia demonstrar. O que me conforta é que sinto, que ainda hoje se lembram de mim...
Obrigada por me fazeres sentir... Bom fim de semana

nspfa disse...

Mais uma história que tem a particularidade de me fazer lembrar da minha vida e da minha relação com os meus pais. Não que haja ódios ou desavenças entre nós, apenas uma separação de muitos anos motivada por questões económicas.Hoje essas questões estão ultrapassadas, mas quem é que nos vai fazer reaver um tipo de relação mais intimo e próxima entre mim e o meus pais? Ninguem!E doi saber isto.

Imaginei-me no fim da vida do meu pai a dizer-lhe as ultimas palavras do teu conto.Pior ainda é imaginar-me a perdê-lo e sem nunca ter tido oportunidade de lho dizer.E tentar fazê-lo agora n consigo.

Grande abraço e parabens por mais esta comovente história

Abelhinha disse...

Muito bonito.

Sem mais palavras

Agripina Roxo disse...

Meu Deus! cada vez melhor, cada vez mais sentido. rspiff o teu texto mais bonito... sem palavras, deixaste-me sem palavras...

um beijo enorme

Morgana disse...

Lindo texto..ainda bem que me comentaste e me deste oportunidade de te descobrir e à tua escrita. meu pai esteve na guerra colonial. nunca falou disso cá em casa. não sei o que ele terá passado, o que terá sofrido e ainda sofrerá. Ah..e se estavas a gostar das Ideias Soltas, hoje já lá tenho mais algumas. beijocas

Thiago Forrest Gump disse...

Emocionante!

kolm disse...

Deitado na sua cama dormia profundamente. Num instante levantou-se dentro de um sonho... um lindo sonho. Estava dentro de um caleidoscópio. Por entre uma luz diferente alguém se dirigiu a ele. Não conseguiu perceber se era homem ou mulher (também não importava). Estendeu-lhe a mão que lhe oferecia um papel enrolado e lacrado... “- Aceita é teu. Assina com o teu nome verdadeiro e guarda-o”... (10.02)

kolm disse...

Trazia na mão o papel enrolado que inexplicavelmente tinha sido transportado para realidade. Desdobrou-o e leu atentamente... falava de grutas labirínticas, relógios de sol, estátuas antigas e animais de pedra.
Fluiu sobre mente e recordou que falara em escrever palavras para dedicar. E alguém que não conhece seja homem ou mulher (também não importa) entregou-lhe em mãos essas palavras... para serem dedicadas a quem ele quiser... ou simplesmente guarda-las... eram suas...

:)

kolm disse...

A história está escrita, apenas lhe foi dada para que possa viajar nela...
porque aquele espaço físico existe e merece ser visto!

:)

kolm disse...

palavras que deslizam em imagem...

Um grande fim de semana para ti... :D