quarta-feira, janeiro 25, 2006

Telma

Telma: vontade, desejo...

Luís entrou no hipermercado e estranhou o ambiente. Embora estivesse mais perto da sua casa preferia ir a outro, preferia pagar um pouco mais para se sentir mais à vontade, para sentir que pertencia a um mundo mais perfeito, mais bonito. Mas naquela tarde tinha pressa e não tinha tempo para passear pelos corredores, era mesmo só entrar, comprar o que queria e sair rapidamente, por isso era preferível um sítio com menos gente.
Apesar de tudo demorou mais tempo do que tinha pensado, não conhecia bem o sítio onde estavam as coisas e não conseguiu encontrar logo o que procurava. Só depois de fazer duas vezes o corredor principal descobriu o que queria, uma nova marca de comida pré-cozinhada que vira anunciada na televisão e que tinha decidido ir ser o seu jantar.
Enquanto caminhava em direcção à zona das caixas olhou para as poucas pessoas que circulavam à sua volta. Eram diferentes das que estava habituado a observar nos sítios que costumava frequentar e recordou-se de quando era um miúdo e vivia fora da cidade. Tudo tinha mudado desde essa altura e recordava agora esses tempos.
Ao chegar perto das caixas reparou que estavam praticamente vazias, podia escolher a que lhe apetecesse e avançou para a que estava mais perto de si onde uma rapariga vestida com um casaco azul e vermelho aguardava pelo próximo cliente. Pôs a embalagem que trazia na mão no tapete rolante e cumprimentou-a.
- Boa tarde.
Ela respondeu.
- Boa tarde, tem cartão de desconto?
- Não, não tenho. Eu não costumo vir aqui.
- Então tem que começar a vir mais vezes, se for ao balcão principal pode pedir lá um cartão.
- Obrigado pela sugestão, mas hoje estou com pressa, talvez noutro dia.
Enquanto falavam Luís observou-a a passar devagar a embalagem pelo leitor de código de barras e a pô-la num saco de plástico. Normalmente irritava-se quando demoravam tanto tempo, mas naquele dia não pensou nisso, deixou-se ficar apenas a vê-la a mover as mãos com delicadeza. Ela devia ser mais nova do que ele, talvez tivesse menos uns sete ou oito anos e era muito bonita, mas era diferente das raparigas para as quais costumava olhar, era mais simples e estava menos arranjada. Pensou que talvez só estivesse a achar isso por causa da profissão dela e desejou não o estar a fazer, mas a verdade é que deu por si a reparar que as outras raparigas das caixas não estavam vestidas da mesma maneira e a pensar se ela não seria uma espécie de chefe ou supervisora. Definitivamente estava a ser preconceituoso e abandonou os pensamentos que tinha na cabeça. Ela falou.
- Quer mais um saco?
- Não, obrigado. Deixe-me só ver se encontro o multibanco...ah, está aqui! Sabia que o tinha guardado num destes bolsos quando fui pôr gasolina.
Ela passou o cartão na máquina com os mesmos movimentos lentos e cuidadosos e Luís deu por si a marcar os números do seu código pessoal também devagar. Depois de alguns segundos ouviu o barulho característico de impressão e esperou que ela lhe entregasse o recibo e o papel do multibanco. Quando ela esticou o braço para lhos entregar não resistiu e tocou com os seus dedos nos dela. Ficou com medo que ela tivesse reparado, mas ao mesmo desejou que tivesse percebido. Despediu-se de forma nervosa.
- Então boa tarde.
- Boa tarde e esperamos poder vê-lo por cá mais vezes.
O tratamento formal pareceu-lhe desadequado, mas sabia que só o era na sua cabeça. Caminhou para a garagem e leu o recibo que ela lhe tinha dado, procurou um nome impresso no papel e achou um que devia ser o dela, Telma Santos.

Luís passou a ser um cliente assíduo do hipermercado. Todos os dias ao fim da tarde passava por lá para comprar o jantar e tentava pagar na caixa onde ela estava. Ao fim de alguns dias exibiu com orgulho o seu cartão de desconto e a partir daí passaram a trocar algumas palavras. Eram conversas rápidas, mas todos os dias falavam sempre mais um pouco do que no anterior, àquela hora havia pouca gente e podiam sempre perder algum tempo a falar.
Três semanas depois de a ter conhecido convidou-a a para jantar. Foi uma situação muito estranha e a meio pensou se não estaria a avançar cedo demais, mas ela aceitou sem ter de pensar muito. Impôs apenas uma condição, o jantar seria em casa dela no fim-de-semana seguinte. Ele aceitou.
Foi com algum nervosismo que Luís saiu do carro e tocou à campainha do prédio com o número vinte e três. Não era costume fazer convites daqueles a pessoas que mal conhecia e estava um pouco ansioso com o desenrolar da noite. No intercomunicador ouviu uma voz conhecida.
- Sim?
- Telma? Sou eu, o Luís.
- Sobe.
Entrou no prédio e sentiu o cheiro de comida. Subiu as escadas até ao segundo andar e quando se preparava para bater à porta ouviu o barulho de uma chave a rodar na fechadura. Telma abriu a porta sorridente.
- Olá, entra. Tiveste dificuldade em dar com a rua?
- Não, não conhecia a zona, mas as tuas indicações estavam perfeitas.
- Pois, suponho que não seja uma zona muito frequentada pelos ricos.
Quando ia argumentar percebeu pela cara dela que estava a brincar. De qualquer forma sentiu-se desconfortável com o comentário, sabia que haviam diferenças entre eles e não tinha conseguido resolver bem esse problema na sua cabeça. Um problema que o incomodava mais por achar que não era boa pessoa por pensar naquelas coisas, do que por sentir que isso tinha realmente alguma importância.
Ela interrompeu os seus pensamentos.
- Então, vais ficar aí à entrada?
- Desculpa, eu às vezes tenho destas coisas, não ligues. Toma, isto é para ti, não sei se gostas.
Telma agarrou no ramo de flores e cheirou-as demoradamente.
- Há muito tempo que não me ofereciam flores.
- Não é nada de especial, também trouxe vinho.
- Mas tu és maluco? É só um jantar simples, não era para trazeres nada, obrigada.
Entraram e observou a casa, era muito pequena mas muito acolhedora e sentiu-se muito bem lá dentro. As paredes estavam cheios de desenhos e todos os cantos estavam preenchidos por algum objecto, como se cada centímetro de espaço tivesse sido cuidadosamente planeado. Ela percebeu.
- Está um pouco cheia eu sei, mas tenho alguns problemas em me livrar das coisa de que gosto.
- Dá para perceber. E os desenhos?
- São meus.
- A sério?
- Sim, mas são só brincadeiras, não são verdadeiras obras de arte. É como te disse, não me consigo livrar das coisas.
Sentaram-se no sofá da pequena sala.
- Queres beber alguma coisa?
- Bebo um copo de água, não quero começar já com o vinho.
Ela sorriu com a piada dele e saiu da sala enquanto Luís continuava a observar aquele novo mundo onde tinha entrado. Por cima de uma televisão cinzenta estavam várias prateleiras cheias de CD’s e não resistiu a levantar-se e dar uma olhada. Quando Telma entrou com a água não conseguiu esconder o seu espanto.
- Desculpa, estava aqui a olhar para a tua colecção de CD’s, confesso que estou admirado.
- Porquê?
- Eu julgava que era um apreciador de música, mas quando olho para tudo o que tens aqui, sinto que não sei assim tanto sobre o assunto.
- É uma das minhas paixões, juntamente com o cinema e com os desenhos, mas não tenho dinheiro para tudo. Só que não respondeste à minha pergunta.
- Que pergunta?
- Porque é que ficaste admirado com a minha colecção de CD’s?
Falou sem pensar.
- Não achei que uma pessoa como tu...
Percebeu tarde demais o que estava a dizer.
- Desculpa, não era isto que eu queria...eu não queria dizer o que disse.
- Não? Eu acho que tu disseste exactamente o que querias. É difícil esqueceres, não é?
- Esquecer o quê?
Sabia bem no que é que ela estava a falar e não insistiu na pergunta quando percebeu que ela não ia responder. De repente sentiu-se muito desconfortável e apeteceu-lhe sair daquela sala pequena. Apeteceu-lhe fugir e esquecer tudo, esquecer o que dissera, esquecer quem era, apenas meter-se no seu carro e fingir que nada tinha acontecido. Mas no meio de todos este pensamentos confusos olhou para ela e reparou que não estava com um ar zangado. Acalmou-se.
- Desculpa, não era esta a noite que eu tinha planeado quando te convidei para jantar.
- Eu sei.
- Olha, eu não sou má pessoa e não acho que sou superior a ninguém, só que...eu não sei bem explicar, há coisas que são automáticas...eu...
Não foi capaz de continuar e sentou-se outra vez no sofá. Ela sentou-se a seu lado e falou calmamente.
- O teu mundo é muito diferente deste, não é?
- É...mas...
- Diz.
- É, mas não quero que seja, percebes?
Ela sorriu de uma maneira que o fez tremer.
- Eu sei.
- Sabes? Mas...então não estás zangada?
- Nunca disse que estava.
- Mas tu confrontaste-me. E com algo que eu próprio não consigo admitir para mim mesmo a maior parte das vezes.
Ela pousou as suas mãos nas dele e ficou um segundo a olhar para ele.
- Achei só que devíamos resolver este problema o mais cedo possível.
- Mas então tu...tu já sabias?
- Desde o momento em que me tocaste na mão, na primeira vez em que nos vimos.
Repetiu dentro da sua cabeça o que ela tinha acabado de dizer. Parecia que estava a acordar de um sonho, como se nas últimas semanas tivesse estado nalguma espécie de transe do qual começava a sair. Percebeu que não tinha pensado muito no que tinha andado a fazer, mas que de repente tudo fazia sentido.
Perguntou-lhe timidamente.
- E achas que já resolvemos o problema?
Ela não respondeu e beijou-o nos lábios.
- Luís, acho que gosto de ti.

12 comentários:

laura disse...

fantástico. estavas a ouvir "rent" quando escreveste?

Madame Pirulitos disse...

Simplificações da realidade. Gostaria que fosse assim tão simples. Gostaria que fosse assim tão bonito.
A tua escrita é pictórica. Isso sim, é real.

kolm disse...

rspiff miak e kiau...
transmitirei as vossas palavras a Henric Wellinton... certamente irá retirar da malinha cinco cálices, encherá de vinho e distribuirá por cada um de nós! :)

rspiff disse...

kiau, miak, rspiff e kolm juntos ao fim da tarde para beberem o vinho de Henric...gostei desta ideia...sairei das minhas sombras para estar com vocês...pode ser que seja um dia mágico...

nspfa disse...

Posso ser eu o Luís da história?!Vá lá, só hoje!

mais uma das tuas histórias...todas com argumentos diferentes, todas com situações que não entram no irreal mundo das imaginárias histórias dos contos aborrecidos.Como gosto de vir aqui.

Mais uma vez os meus sinceros parabéns

ps: confesso aqui que o teu e o da broa quente são os blogues onde mais me delicio com a forma de escrever.No dela não comento tanto porque tenho uma certa vergonha. O meu pode até ser engraçado, mas em termos de excelência das palavras não se compara aos vossos.

Lisa disse...

Gosto muito das tuas histórias, muito simples e sentidas, muito boas observações do belo que há nas pequenas coisas e gestos.
E sem peneiras! Sabe bem ler.
:)

kolm disse...

Não me parece que andes com falta de ideias. ;-)

Lindo comentário o teu
"...se a inspiração não é sempre a mesma e apenas visita uma pessoa de cada vez..."

Bom fim de semana!!

Abelhinha disse...

A vida por vezes tem que ser assim, dar tiros no escuro por algo que nem se sabe bem o que é!

Beijocas

Penélope disse...

Gosto das tuas histórias (e ainda só recuei até Novembro de 2005). Muitos parabéns pela ‘escrita’ - criativa, rica.
Vou voltar.

p.s.: mera curiosidade - o «Me, Myself and I» significa ‘egotismo’ ou ‘De La Soul’, ou nenhum dos dois?

Penélope

Agripina Roxo disse...

o que seria de nós e do nosso imaginário e porque não do nosso coração, sem as tuas histórias?!
o que seria de mim sem os finais felizes, e o sabor a mel das tuas palavras?!

beijos-sonho para mais mil histórias de encantar :)

Desconhecida disse...

E é mesmo assim, a paixão, o amor ou que lhe quiserem chamar aparece onde menos se espera, por quem nunca se imaginou!

kolm disse...

Mais uma vez obrigada pelas tuas palavras... Adoro verdadeiramente Antony and the Johnsons.... E apesar do meu mundo musical ser enorme, raros são os dias em que não oiço pelo menos o “The Guests” e o “Atrocities”... Mas não no carro... o leitor está encravado com o CD de Paul Weller... há mais de uma semana... :)

fuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu (um sopro em direcção à inspiração...) :D