quarta-feira, março 19, 2008

Pai

Viro a cabeça ao ouvir o som de metal no chão. Um homem pragueja e pega no recipiente onde larga as moedas que apanha curvado. Outra pessoa passa a correr e as moedas voam de novo para longe. O homem amaldiçoa a sorte, o mundo, a chuva, sem perceber que está no caminho dos outros. Uma rapariga ajuda-o a procurar as moedas e ele não agradece. Afasto a imagem do meu pai e desço as escadas rolantes.

À espera do metro está um rapaz com um acordeão. É um quadro antigo, igual em tantas recordações, pele escura, dedos sujos, um pequeno cão que nunca cresce, nenhum dos dois cresce, uma garrafa de plástico cortada ao meio, um pedaço de cordel na boca do animal. O rapaz não vê ninguém, distraído com um jogo electrónico nas mãos. O brinquedo deve ter custado mais do que um dia de esmolas, mas ele não se importa. Tenho a certeza que o vai esconder, quando começar a pedir. Lembro-me outra vez do meu pai, não consigo esquecer.

Depois do apitar das portas ouço um cego. Conheço os cegos do metro todos de cor, separo-os em grupos, divido-os por cheiros, pela pena que sinto. Existe um que me irrita, por um dia ter falado mal a uma senhora, mesmo tendo razão. Reconheço-o depressa, jogo com o destino, digo que o dia me vai correr mal se ele me tocar. Ele não me vê, mas dá-me um encontrão quando passa por mim. Segue o seu caminho, mais escuro do que o meu.

A vida do meu pai sempre foi improvável, o Homem-Impossível, como eu lhe chamava, um super-herói imaginado. Um dia comprou um carro, ele comprava um carro novo todos os anos. Fui buscá-lo com ele, brinquei com os dedos na pintura creme, antes de reparar na matrícula. As duas primeiras letras eram as iniciais dele, os números o dia do aniversário. Vi os olhos do vendedor, vi demasiadas vezes aquele olhar. Todos os meses ia ao Bingo, sentava-se numas cadeiras vermelhas, que tinham sido vermelhas. Fazia sempre uma linha, sempre no segundo cartão da noite. Fingia que não acertava em mais nenhum número, de braços sobre a mesa, escondendo o jogo. Os empregados sabiam, calavam-se por simpatia, por pequenas gratificações, por medo. Um dia perguntei-lhe porque o fazia. Riu-se e disse que um dia iria perceber. Nunca percebi, o tempo passou e eu nunca percebi.

As histórias de guerra eram segredo, guardava-as no ar triste, na cara sempre contraída. Só não podia esconder as cicatrizes, seis riscos no rosto, três do lado esquerdo, mais três do lado direito. Contou-me, depois de choros e ameaças. Tinham disparado perto, seis balas que apenas o queimaram, que desenharam uma expressão. Tornou-se uma lenda, caminhava sempre à frente dos outros, que pisavam o mesmo caminho com cuidado. Nunca ia aos encontros de antigos combatentes, não mantinha contacto com aquela outra vida. Mas todos os anos, sempre no mesmo dia de Março, recebia um embrulho cheio de coisas esquisitas. Amuletos, pedaços de tecido camuflado, crucifixos, fotografias de homens feridos. Não perguntei, nunca tive coragem de perguntar.

Volto ao homem que corria atrás das moedas. Imagino-o o dia todo a repetir as mesmas palavras, raiva, dor, ajuda, fome, angústia. Vejo a cidade cinzenta, toda em tons de cinzento. Pergunto como é que as pessoas mudam, porque me parecem todas iguais. À minha frente um ecrã mostra a hora e o dia. Sorrio pelo impossível, porque sempre herdamos algo, mesmo o que fica escondido.

Escolho a chuva e peço três desejos, que o calor que sinto seja o mesmo, que o meu choro seja igual, que um dia se juntem num só.

3 comentários:

kolm disse...

Já li... Aliás sabes que mais tarde ou mais cedo venho sempre aqui actualizar-me!!

Um sorriso do tamanho do mundo!

Vampiria disse...

Ola rspiff, o livro é teu? abraço

MP disse...

mudei de colmeia.

agora estou aqui

http://copiaoculta.wordpress.com