quinta-feira, janeiro 03, 2008

Violeta

A mulher vestida de cinzento lembra-me a minha tia Inês, traz-me o seu sorriso de volta, as suas histórias contadas, repetidas vezes sem conta, até já não ter coragem de pedir. O autocarro embala-me a manhã, mergulhando-me em sonhos, afastando o acordar. Lembro-me da minha história preferida.


Era uma vez uma menina, uma princesa que vivia num lugar distante, um mundo feito de erva verde, de montes redondos que escondiam o Sol. A menina chamava-se Violeta, um nome escolhido pelo vento, trazido em murmúrios, no barulho das folhas, da água a correr. Violeta não era filha de um Rei, não conhecera sequer o colo de uma mãe, uma Rainha de coroa dourada, vestida com roupas de seda. Era apenas uma princesa, uma menina, mas senhora de um mundo, de campos que não tinham fim. Nesse mundo não havia noite, só a manhã e o entardecer, só o momento antes da primeira estrela, que chamava a luz outra vez, girassóis gigantes que dançavam sem parar, quase sem descanso, num reflexo eterno. Um dia Violeta conheceu um rapaz, ainda não era um homem quando o descobriu, com uma pequena barba de pêlos louros, trepando às árvores, saltando nas pedras do rio. O rapaz era delicado, educado, ensinado a encantar, virtudes que não faziam sentido no mundo de Violeta, que se apaixonara sem as perceber, mesmo antes de descobrir o que escondiam. Ela ficou presa nas palavras, nas aventuras, em reinos longínquos, em histórias de amor, mas também num raro saber, de conseguir ver melhor, de contar mais cores nos insectos, no apontar de uma flor, de um pôr-do-sol, que nunca chegava a acontecer.


O autocarro trava bruscamente. Sinto uma dor no estômago, um murro invisível, igual ao que sentia, no momento em que o mundo perfeito da menina ruía, nas palavras da tia Inês, quando eu só suportava ouvir o resto, de mãos muito apertadas nas dela.


Uma cor apareceu pela primeira vez, desconhecida, perigosa. Violeta espreitou escondida, não por medo, que não conhecia, não por desconfiança, que não existia, só pelo estranhar, dos braços enormes, cheios de pêlos, só pelo tom da noite, que nunca caía. Aproximou-se devagar, do monstro que era o rapaz, sentiu o cheiro intenso, um odor vermelho, um desejo, que não a conseguiu afastar. O monstro feriu-a, rasgou-lhe a carne, magoou-a para sempre, para ela não esquecer, um último aviso, antes de se transformar, da pele branca voltar a brilhar. O rapaz tocou a ferida, fechou-a com um sopro, mas a cicatriz nunca mais desapareceu. Violeta enamorou-se outra vez, sem o ter deixado de estar, sem esquecer, por nada haver a lembrar. Acreditou, fechou os olhos e ouviu, viu o seu mundo perfeito a brilhar, sentiu algo novo, a primeira vez, o descobrir, o começar. Deu uma das mãos ao rapaz, a outra pousou-a no chão, onde uma trepadeira nascia, procurando um tronco de árvore. A planta enrolou-se no seu braço, apertando-o com cuidado, subindo devagar, sem tocar na cicatriz, até o tapar quase todo, prendendo-a, com medo de a perder. O dia nasceu, sem nunca ter adormecido.


Um bêbado grita, berra, chama pela mãe, ajoelha-se no chão e reza, antes de começar a chorar. O autocarro arranca, deixa para trás o homem, deitado no chão, de olhos no céu. Eu ganho coragem para continuar, inspiro o fumo dos outros, entorpeço os sentidos, tento fugir de mim, para conseguir.


Um bramido fez Violeta correr, pedir, que pudesse estar a sonhar. O monstro tinha as garras espetadas num alce, um amigo antigo, sem tempo de ver, de olhar o mundo à sua volta, com os olhos fechados à força, com um último respirar, do seu próprio morrer. O monstro devorou a carne voraz, cresceu o peito para cima, queimou a terra à sua volta, um desafio em fúria, feito de medo, de ira, de tudo o que não podia existir ali, abrindo uma ferida, que nunca iria sarar. Violeta ficou parada à frente dele, chamou o rapaz uma última vez, por uma resposta que não podia esperar. Tocou-lhe no pêlo com o braço ferido, hesitando só por um fragmento de tempo, antes de se despedir sem mágoa. O monstro era duas vezes maior, mas ficou junto ao chão, aceitando o castigo, pelo qual sempre esperou. Violeta viu os olhos do rapaz, antes de gritar em silêncio. A besta elevou-se no ar, escondendo a dor, quando ouviu as palavras antigas, que o transformaram em pó. A princesa ajoelhou-se, ordenou ao vento que soprasse forte, que afastasse a cor escura do seu mundo. O vento obedeceu, levou com ele o que antes tinha sido o monstro, o rapaz, as histórias, a dor, a cor, a água fria, o belo, o disforme. Cobriu o céu com o pó negro, e fez a primeira noite. A menina, a princesa, deixou por fim as lágrimas caírem, mil lágrimas brilhantes, que se partiram cada uma em outras mil, e essas em outras, até ao fim do tempo. Entregou-as também ao vento, que as espalhou na noite escura, criando as estrelas.


Desço para a rua, e espero o anoitecer. Dói-me esta história, sempre me doeu esta história, mas imagino a menina a olhar o céu, a sorrir, a fazer desenhos com os dedos no ar, unindo as estrelas na forma de um monstro, na forma de um rapaz.

2 comentários:

Rafeiro Perfumado disse...

Lilás, violeta... estarei a encontrar um padrão?

Divinius disse...

A luz que te deixo é da cor da minha vida...)
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