quinta-feira, maio 29, 2008

Time Flies

Fiquei sozinha, acabei por ficar sozinha, mesmo antes de o saber. Deixei crescer o cabelo, o cabelo cinzento que sempre admirei na minha avó, o cabelo que as mulheres sós não pintam, que deixam solto e seco, para voar contra a cara, para magoar a pele fina. Não quis gatos, os gatos são para mulheres divorciadas. Eu nunca cheguei a casar, porque não soube, porque não vi, porque era tarde, porque não olhei para trás, aguentei a dor na barriga. Chamo-me Teresa, nome de mãe, da mãe que não fui, antes de secar, de já não poder. Uso sapatos rasos, digo mal dos outros, de inveja de não os ter, de não saber ensinar as pernas, uso sapatos às cores, só para irritar quem olha, para explicar quem sou, a quem não quer saber. Tenho um lenço com muitas cores, juro que já as tentei contar, mas o vento mistura-as, provoca-me, faz-me rir, por vezes sorrir.

Desci para a praia descalça, senti o verão a chegar, escondido no frio da manhã. Trazia na cabeça o meu chapéu de palha, daqueles que parecem ir desfazer-se a qualquer momento, que fazem sombras engraçadas, que gosto de contar, de tocar com os dedos, de me lembrar do piano. Perdi-me antes de o ver, um segundo antes de o ver, para voltar a mim. Arrisquei algumas palavras.
— Olá, eu sou a Teresa.
O homem virou-se devagar, sem pressa do conhecer. Parecia saborear.
— Olá Teresa, eu sou o Luís.
O silêncio voltou. O Luís olhava o horizonte, dividia o céu com um pincel na mão. Dei um passo à frente, não consegui dar mais, mas consegui ver o quadro que ele pintava. Ele explicou, antes de eu perguntar.
— Estou a pintar a noite.
— O que explica o preto — disse eu sem rir.
Ele murmurou qualquer coisa, antes de se virar.
— Na verdade não é preto, eu sei que parece, mas tem uma gota de tinta branca.
Olhou para o quadro durante uns segundos, acho que a decidir. Depois continuou.
— Consegues ver?
Eu só via preto. Esforçava-me para ver o que ele me queria mostrar, mas só via preto, não percebia a diferença. Falei irritada.
— Deves ter posto mesmo muito pouco branco.
Ele riu-se, encheu-me com o seu riso, esticou a mão para a minha. Leu-me outra vez, pensou antes de mim.
— À noite não consigo, está demasiado escuro, venho cá só para decorar, para mais tarde me lembrar, depois volto de manhã, tento acertar com o branco.
Ri-me antes dele acabar.

Sinto o tempo a voar, dor nos braços, dificuldade em respirar, a ansiedade a crescer. Com o tempo aprendi a lutar, crises do nada, medo de morrer, de não aguentar o segundo a seguir, em longos minutos. Aprendi a estremecer, um arrepio de frio, para me fazer esquecer, para não cair. Mas vivo assustada, feliz e amarga, mas assustada. Gostava de embalar, de cantar baixinho, afastar o diabo, as bruxas más, para a noite ir embora, para correr depressa.

Sentámo-nos na areia. Ele tinha mãos perfeitas, brancas, pequenas, velhas, contavam histórias. Agarrou as minhas, olhou-me nos olhos.
— És uma boa mãe.
Não contive as lágrimas, sem ficar zangada.
— Mas eu nunca... eu não tenho filhos.
— Eu sei. Vejo a forma em ti, mas tenho a certeza, és uma boa mãe.
Não lutei com ele, fechei os olhos e ouvi. Ele respirou fundo antes de falar.
— A minha mãe morreu o ano passado. Uma vida desgraçada, feita de dor, de muita dor, de sangue nos lábios, mordidos durante anos, demasiados anos. Acabou louca, esteve vinte anos internada, sem dizer uma única palavra, a olhar sempre para o mesmo sítio na parede. Nunca percebi para onde ela olhava, procurei, cheguei a levar uma lupa, mas não descobri nada, só o branco da parede, lisa, sem uma imperfeição. Desisti, com o tempo desisti.
— Achas que sofreu? — perguntei sem angústia.
— Morreu numa manhã, fechou os olhos, apenas fechou os olhos, não se despediu, não gritou, não chorou. Num segundo respirou, no outro já não.
— E tu? — perguntei.
Vi na cara dele, o sorriso mais bonito, o mais bonito que alguém alguma vez sorriu.
— Eu acordo todas as manhãs, abro os olhos e lembro-me dela. Todos os dias Teresa. É a primeira coisa em que penso. Lembro-me de uma tarde, quando tinha uns cinco ou seis anos, de estar com a cabeça no colo dela, de ela me estar a secar o cabelo, sinto o cheiro a queimado do secador, sinto o cheiro dela, das mãos, de sabão, do suor, da pele arrepiada. E choro, choro todos os dias, por este sonho repetido, que me aconchega, para sempre dentro de mim.
Olhei para cima para o quadro, procurei no meio do preto. Falei devagar, quase a cantar.
— Acho que está ali uma parte mais clara.
Ele riu-se. Depois pensou, esperou, escolheu as palavras.
— És uma menina assustada. É por isso que consegues ver.
Fechei os olhos, apertei-os muito, antes de os voltar a abrir.

Fiquei sozinha, acabei por ficar sozinha, aprendi a ficar sozinha. Tenho uma mão ao meu lado, que às vezes agarro, aperto até doer. Mas no meu mundo só estou eu, feliz, magoada, irritada, triste, risonha, inspirada, serena. O medo vem, chega sem cuidado, rebenta em mim, parte-me por dentro, rasga-me o corpo. Olho outra vez para a mão, para a mão esticada ao meu lado, hesito, espero, antes de a aceitar, porque sei que não preciso. No céu aparecem mil estrelas, que riscam a noite. E peço um desejo, só desta vez, ser a única a vê-las.

1 comentário:

Anónimo disse...

Senti o sabor deste texto.
O toque envelhecido de suas mãos.

Beijo com mel