segunda-feira, novembro 10, 2008

Humberto

Humberto comia multas de estacionamento, subia e descia a avenida cem vezes por dia, comia as multas que retirava dos carros. Contava aos amigos, os velhos que dormem na rua, que tinha um sonho, comer mil multas num só dia e depois morrer, rebentar, marcar para sempre a montra de uma loja fina. Um dia aconteceu, esperou vinte minutos pelo fiscal, gostava de lhes chamar assim, puxou-o para ver a infracção, a transgressão inaceitável, uns bandidos, todos mortos à paulada. Um último desejo, tinta permanente, um nome, uma assinatura, pelo menos uma vez, a última vez. Ofereceu a caneta ao fiscal, rapaz louro pouco esperto, que não teve tempo de a admirar, ficou coberto da cabeça aos pés, de Humberto e papel, carne, sangue e cuspo, que a saliva é dos ricos, corre pura sem espuma. Juntou-se uma multidão, dizem que eram ao todo mil, perdoados, livres num segundo. Ouviu-se então, ecoou pela avenida, um aplauso, como se fosse para um Rei, que acenava de uma carruagem. Humberto ficou famoso, guardado no coração dos que ali estavam, que só fugiram pela força, esmurrados, empurrados pelos canhões de água, que também lavaram o chão, tudo para a sarjeta. Ficou a dúvida, porque nada havia e a palavra deixou de valer. Restou um segredo, um sinal trocado entre os que viram, que o guardaram, até ao fim das suas vidas. Humberto fez-se cidade.

1 comentário:

Rafeiro Perfumado disse...

O Humberto era um bocado parvo...