quinta-feira, janeiro 19, 2006

Diferenças

Tarde

Quanto mais olhava para a parede mais tinha a certeza do impossível, aquela não era a sua sombra. Passou as mãos pelos contornos que deviam ser seus e reparou nas pequenas diferenças, o cabelo ligeiramente mais comprido, os ombros mais largos, a camisola de gola alta. Deitou-se sobre a cama por fazer e recordou o dia anterior.


A estação

Ao entrar no átrio principal do edifício olhou para os monitores com as horas dos comboios e percebeu que dificilmente conseguiria apanhar o das oito. Tinha escolhido o pior dia do ano para chegar atrasado, o dia do aniversário de Teresa, que lhe suplicara para não a desiludir mais uma vez. Agora corria por entre as pessoas derrubando tudo à sua frente e rezava para que o comboio se atrasasse pelo menos alguns minutos, era tudo o que precisava.

Saltou por cima de uma mochila esquecida no chão e viu-o pela primeira vez, reparou nele e o tempo pareceu correr mais devagar, como se numa fracção de segundo tivesse conseguido observar aquela pessoa durante horas, como se estivesse a olhar para um quadro numa parede de um museu e se esquecesse de tudo. Não pôde evitar a colisão e percebeu logo que tinha perdido o comboio.

Voltou a si com o barulho da sirene da ambulância. A seu lado um jovem bombeiro sorria para ele e explicava-lhe que tinha estado desmaiado durante algum tempo, mas que estivesse descansado pois não devia ser nada de especial, a ida ao hospital era só por precaução. Lembrou-se de Teresa e fechou os olhos, tinha falhado mais uma vez.


Em casa

Entrou em casa e desejou estar sozinho, queria poder pedir desculpas sem os olhares de toda a família. Ficou no corredor a ouvir as conversas e os risos das crianças que corriam umas atrás das outras e de repente deu por si a pensar que não gostava do quadro que estava pendurado por cima do móvel onde costumava pôr as chaves. Alguém o chamou de volta à realidade.

Em menos de dez segundos estava rodeado de perguntas e olhares. O penso na testa era o principal motivo de curiosidade e respondia devagar a todas a perguntas. Conseguia ver a cara triste de Teresa ao fundo da sala, sabia o que ela estava a pensar e sabia que não se ia deixar impressionar por nódoas negras e roupas rasgadas, as feridas entre eles eram bem maiores.


No quarto

Antes da festa acabar sentiu-se muito cansado e subiu para o seu quarto, tomou um banho e sentou-se na cama. Não ligou a televisão e ficou a ouvir Teresa no andar de baixo a arrumar a casa. Queria ir ajudá-la mas sabia que não ia ser bem recebido e ficou à espera de uma conversa que não queria ter.

Quando ela entrou no quarto estava quase a adormecer. Sentou-se mais direito e tentou escolher as palavras para falar, mas estava cansado e não sabia mais o que dizer ao fim de tantos anos, ficou calado. Ela fez um ar estranho, como se esperasse uma reacção diferente dele e perguntou-lhe se tinha dores. Respondeu que sim e ela disse que talvez fosse melhor deixarem a conversa para o dia seguinte.

Apagaram a luz e ficou a pensar no dia que tinha tido, pensou nos minutos que perdera no trabalho, no metro que não tinha apanhado por um segundo, no homem com quem tinha chocado na estação. A seu lado Teresa dormia, aproximou-se dela e sentiu o cheiro do hidratante que costumava pôr antes de se deitar, sempre gostara daquele perfume e tinha a sensação que não o sentia há muito tempo. Sem pensar aproximou-se mais e abraçou-a, sentiu o seu corpo e adormeceu.


Manhã

Acordou com o sol na cara e por um momento não se recordou do dia anterior, deixou-se ficar na cama de forma preguiçosa até que uma voz o chamou e lembrou-se de tudo o que tinha acontecido. Teresa entrou no quarto com um enorme sorriso na cara e disse-lhe que o pequeno-almoço estava pronto. Perguntou timidamente se não deviam conversar, mas ela sorriu outra vez e saiu do quarto sem responder.

Enquanto tomava banho sentiu-se estranho, como se o mundo à sua volta estivesse diferente. Não conseguia deixar de sentir uma sensação de que tudo era novo, como se estivesse num hotel numa das suas viagens de trabalho. Olhava para os lados e conseguia reconhecer os seus objectos, mas ao mesmo tempo parecia que estavam todos fora do seu sitio. Era algo que não conseguia compreender e deixou-se estar debaixo da água quente que corria do chuveiro.

Voltou para o quarto e abriu uma porta do armário para escolher algo para vestir. Olhou para as camisas penduradas e não teve vontade de vestir nenhuma, eram quase todas iguais e apetecia-lhe vestir algo diferente. Abriu algumas gavetas e foi passando por entre os dedos as camisolas dobradas no seu interior. Não sabia porquê, mas pareciam-lhe todas estranhas, como se não fossem dele, como se tivesse acordado numa casa que não era a sua e vasculhasse nas roupas de outra pessoa.

No fundo de uma gaveta encontrou uma camisola da qual não se lembrava. Nunca tinha gostado daquele tipo de golas que lhe apertavam o pescoço e perguntou a si mesmo como é que ela tinha ido ali parar. Era verde e à frente tinha uma figura estampada em tons de amarelo de um gosto muito duvidoso que o fez sorrir. Não resistiu e vestiu-a.

Desceu as escadas e sentou-se ao lado de Teresa que lhe perguntou que camisola era aquela. Tentou desviar o assunto, mas ela mal conseguia conter o riso, um riso que o fez lembrar-se do dia em que a conheceu. Não aguentou e riu-se com ela.

6 comentários:

Kiau Liang disse...

A vida é tão simples, reencontramos-nos com ela nos promenores.....

kolm disse...

rspiff sai das sombras através da luz existente. Sombras onde esteve tanto tempo a aguardar. Pega nas palavras e constrói uma bela história...

Por vezes estamos tão ausentes, que inconscientemente deixamos de prestar atenção aquilo que nos rodeia. Depois é um voltar completamente diferente...
:)

laura disse...

rir, sempre. rir é bom.

nspfa disse...

Estava à espera que Teresa de manha lhe fosse pedir o divórcio, mas não... isso seria algo de elementar e tipico de um conto banal. A melhor caracteristica dos teus contos é essa deliciosa imprevisibilidade onde no fim somos surpreendidos por uma demonstração de amor e compreensão quando na realidade se contaria mais com um momento de fel e raiva. O pormenor de "aproximar" duas pessoas pela ridicula figura de uma simples camisola é divinal!

Adorei.Simples, humano, credivel.
parabens

kolm disse...

Tenho guardado numa caixinha transparente, todos aqueles seres inanimados que me acompanharam nestes grandes momentos... e quando estou quase quase a esquecer olho para eles...

Bom fim de semana

Madame Pirulitos disse...

Gostei muito da ausência das palavras...só sentir.

Fez-me lembrar:
Tu perguntas-me- o quê?
E eu respondo- tu sabes.