domingo, janeiro 08, 2006

O Táxi

Na cidade

Eram onze da noite e João conduzia o táxi devagar pelas ruas de Lisboa. Estava calor e trazia a janela aberta para sentir o vento na cara, àquela hora não se sentia o ar poluído da cidade e às vezes o cheiro era quase agradável. Gostava destas noites com pouco trabalho em que podia conduzir sem destino pelas ruas vazias e não se preocupava com o dinheiro que não estava a ganhar. Era uma pessoa simples e não precisava de muito para ser feliz, apenas alguns pequenos prazeres eram suficientes para que tivesse uma vida com poucas preocupações.
No dia anterior tinham-lhe ligado de manhã para ir buscar um carro à oficina com o qual deveria andar durante a semana e recordava agora o momento em que o tinha ido buscar. Era normal trocar de carro e normalmente não dava muita importância a estas mudanças, mas tinha ficado espantado com o que o esperava desta vez, um Mercedes com mais de vinte anos ainda pintado com as antigas cores dos táxis da cidade.
O carro estava em excelentes condições e quase que era difícil acreditar que tinha tanto tempo de serviço. O rapaz que lho entregara tinha lhe contado que pertencera a um taxista que se tinha reformado uns meses antes e que tinha sido o único a conduzi-lo durante duas décadas. O amor do senhor pelo carro era conhecido entre os seus amigos e ao que parecia tinha feito algumas exigências antes de o entregar. João só não sabia por que é que o tinham escolhido a ele para conduzir aquela antiguidade, não era conhecido por ser especialmente cuidadoso com os carros e sentia-se algo nervoso com a responsabilidade.


Na avenida

Quando descia a Avenida da Liberdade reparou numa pessoa parada no passeio, não era um sitio comum para se mandar parar um táxi, ainda mais àquela hora, mas abrandou a velocidade. Viu uma mão no ar e pensou que não devia parar ali, mas como o semáforo à sua frente ficou vermelho decidiu parar, uma mulher entrou pela porta traseira e sentou-se sem dizer nada. Ele falou.
- Boa noite, para onde deseja ir?
A mulher ficou calada sem olhar para ele.
- Peço desculpa, mas este é um sitio mau para estar parado, pode-me dizer para onde deseja ir?
Ela olhou para ele e falou.
- Desculpe, queria ir para Belém.
Arrancaram e João pensou se devia ou não dizer alguma coisa, nem sempre fazia conversa com os passageiros e tinha a sensação que a mulher não devia ser muito comunicativa.
- Sabe, quando quiser apanhar um táxi aqui devia ir para as ruas laterais, ali atrás é muito difícil alguém parar.
Ela voltou a demorar a responder.
- Eu não estava à espera de um táxi, na verdade não sei bem porque é que o mandei parar, acho que estava cansada e quando o vi achei que talvez fosse boa ideia dar uma volta de carro.
- Dar uma volta de carro? Mas não disse que queria ir para Belém?
- Tinha que dizer algum sitio não era? Mas na verdade não me importo muito para onde vá.
Ficou um minuto sem dizer nada. Não era a primeira vez que lhe aparecia uma pessoa estranha, mas não sabia bem o que dizer.
- Mas está tudo bem consigo? Eu...desculpe, não queria estar a ser intrometido.
- Não faz mal, compreendo que esta deva ser uma situação estranha para si, mas não se assuste, eu tenho dinheiro para pagar.
Não tinha pensado em dinheiro, raramente pensava. Ficou calado enquanto continuava a conduzir pela baixa da cidade, as ruas estavam iluminadas pelas luzes de Natal que ainda não tinham sido retiradas, uma das razões porque se tinha dirigido para aquela zona da cidade.
Esticou o braço e desligou o taxímetro.
- O que está a fazer?
A voz da mulher tinha se alterado e parecia algo assustada.
- A senhora não quer ir para lado nenhum e eu também andava um pouco à deriva, por isso não acho muito justo cobrar-lhe dinheiro.
- Como? Não está a falar a sério pois não?
- Estou, assim pelo menos tenho companhia.
Ela não respondeu e ele continuou a guiar sem destino.
Passou algum tempo sem que algum dos dois falasse. Ele olhou pelo retrovisor quando passaram por um candeeiro e viu dois enormes olhos que o observavam, perguntou a si mesmo no que estaria a pensar, mas não teve coragem de perguntar. Em vez disso fez-lhe uma proposta.
- Importa-se que vá até Belém? Afinal era o nosso primeiro destino.
- Não, mas porquê?
- Lembrei-me que podíamos ir comer uns Pastéis de Belém.
Ficou um pouco atrapalhado com o convite que tinha acabado de fazer e tentou corrigir.
- Não leve a mal, mas é algo que costumo fazer quando acabo o serviço, vou comprar Pastéis de Belém e vou até ao pé do rio.
Sentia-se cada vez pior, mas continuou.
- Mas pode ficar no carro se quiser, ou podemos não ir...é como desejar.
Pelo espelho percebeu que ela estava a sorrir.
- Não, não mude os seus planos, podemos ir até Belém. Mas a estas horas não vai estar tudo fechado?
- Eu conheço umas pessoas lá, acho que ainda consigo arranjar alguma coisa.
Ela acenou com a cabeça e recostou-se no banco.


No rio

Voltou para o carro a correr, orgulhoso de ter conseguido os bolos. Entrou no táxi e exibiu-os com ar de rapaz pequeno.
- Estou espantada, isto é que é ter conhecimentos.
A voz dela era diferente, menos triste, menos pesada e ele sentiu-se mais à vontade.
- Então podemos ir? Há um sitio aqui perto onde costumo ir e onde nos podemos sentar a comer enquanto olhamos as luzes da ponte.
- Estou a ver que faz isto muitas vezes.
- Faço, mas sempre sozinho.
Quando parou o carro saiu para lhe abrir a porta, mas ela antecipou-se. Olhou pela primeira vez bem para a sua cara e reparou que era mais nova do que julgava, era também muito bonita.
- É ali que eu me costumo sentar, mas se quiser podemos ir para outro lado.
- Não, por mim está bem.
Sentaram-se e durante uns minuto instalou-se um silêncio incomodativo. João queria dizer alguma coisa, mas não conseguia pensar em nada. Ela falou.
- Posso lhe fazer uma pergunta?
- Claro.
- Que carro é este que você guia?
- Porquê?
- Porque é o tipo de carro que esperava ver conduzido por alguém mais velho. Além disso está tão bem cuidado, parece ter sido pouco usado, mas desconfio que deve ter muitos quilómetros.
- Sim, tem muitos.
- E tem as cores antigas, tenho muita pena que as tenham mudado, acho que a cidade perdeu um pouco dela nessa altura.
- Eu também gostava mais das outras cores, acho que todos gostavam. Eu nunca tinha guiado nenhum destes.
- Mas não respondeu à minha pergunta, como é que ele veio parar às suas mãos?
João lembrou-se outra vez da história que lhe tinham contado.
- Não tenho assim uma justificação especial para isso, eu só faço o que me mandam, mas confesso que também estranhei quando o fui buscar.
Ficou pensativo.
- E sabe que mais? Agora que fala no assunto, acho que sem me dar conta tenho andado o dia todo a pensar nisto.
- Como assim?
- Isto vai parecer estranho, mas este carro...como é que hei-de explicar? É um carro que se sente, percebe? Não sei se estou a fazer algum sentido.
- Está, não sei bem como, mas acho que sei exactamente o que está a tentar dizer-me. Sabe de quem ele era? Devia ser de alguém que gostava muito dele.
- Sim, disseram-me que sim.
Ficaram uns minutos mais sem falar, ouvia-se o barulho da água perto deles e a noite começava a ficar mais fria.
- Sabe? Hoje foi um dia estranho, tenho andado quase sempre sozinho e começo a pensar se não terá sido por distracção minha que tive menos clientes.
- Pelo menos reparou em mim.
- Sim, em si reparei.
- Ainda bem que o fez.
Ela fez uma pausa.
- O meu dia também não foi muito normal, como já deve ter notado.
- Imagino que não...apetece-lhe falar sobre isso?
- Não, não me apetece. Para falar verdade já não me parece tão importante como há umas horas atrás.
Ela sorriu antes de continuar.
- Sabe? Gosto deste sitio, obrigado por me ter convidado para vir aqui.
- Não tem de agradecer, não é propriamente um lugar secreto.
- Eu sei, mas obrigado na mesma.
Os carros passavam ao longe na ponte e João pensava nas pessoas que seguiam dentro deles, pensava em todas aquelas vidas diferentes, vidas cheias de problemas, cheias de alegrias, pensava que se cruzava todos os dias com milhares de pessoas e que não sabia nada sobre elas. Então virou-se para ela e falou.
- Queria dizer-lhe uma coisa.
- Estou a ouvir.
- Eu também acho que foi bom ter parado, foi muito bom mesmo.
Ela olhou para ele de forma doce, aproximou-se e deu-lhe um beijo na face.
- E se fossemos dar uma volta pela cidade? Não tens mais sítios que me gostasses de mostrar?
Ele gostou que ela o tratasse por tu e respondeu.
- Tenho mais um ou dois de que gosto muito.
- E não me queres levar até lá?
- Sim, quero.
Dirigiram-se para o carro e João apressou-se para lhe abrir a porta da frente, desta vez conseguiu. Antes de entrar inspirou fundo para sentir o ar da noite e olhou para o rio e para o sitio onde tinham estado, tudo estava diferente.

14 comentários:

Aq disse...

Olhares... tudo, menos vagos. Como o teu. Um bom escritor tem que ser também um bom observador... como se comprova aqui. Gosto das tuas histórias. Da sensibilidade, também.

Taniacruz disse...

Es de facto um belo escritor! Um livro talvez... quem sabe uma edição! Espero ler em breve muitos mais contos do coração!
Continua.
Até breve*

Rita disse...

Simples e muito bonita esta história.

Suponho que, às vezes, estas coisas podem mesmo acontecer. E deve ser bom, muito bom.

Também gostei do teu cantinho.

nspfa disse...

É como dizes...as tuas histórias fazem sonhar!Fazem apetecer ser protagonista delas.Continuo maravilhado com a tua forma de tornar as coisas simples em momentos que dão aquele apertozinho no peito.E sempre um tão elevado teor de carinho nas personagens masculinas.adoro as tuas histórias.
Grande abraço

Kiau Liang disse...

Entre todos nós vivem seres com identidades escondidas, aqui no teu cantinho já encontrei mil tipos de super heróis, desde homens estatuas-com-coração-de-gente, a rapariga que escrevia com os olhos, os tic tacs do super héroi, e a rapariga do destino, muito obrigada pela tua realidade-mesmo-realidade, ser ninja,super herói, bruxo,ou feiticeiro não é nada fácil nos dias de hoje, mas claro que vamos continuando voando sobre as àrvores, entre as sombras da noite. Obrigada

Abelhinha disse...

Muito bonito mesmo!

Pequenos momentos podem mudar a forma de olhar para as coisas, para a vida em si mesma.

Também gosto dos taxis pretos. Ainda bem que já podem voltar a circular e já se começam a ver novamente nas ruas da cidade.

kolm disse...

São raras as vezes em que os diferentes mundos da imaginação se tocam em tempo real e os seres encantados que neles habitam se vêem...

Se me garantires que pertences a uma tribo cumpridora das leis antigas, em ti confiarei para que leves a ninja a sobrevoar as arvores... e a conhecer o teu mundo das sombras se assim for da sua vontade...

... irei e arriscarei por uma unificação das tribos, com a missão de defender os mundos do ser mais céptico... daqueles que não sabem a verdade...

:)

kolm disse...

Em tempos por culpa de já nem nos lembramos quem, as tribos foram separadas em cem.. umas transformadas em mágicas outras em encantadas... e tiveram que se refugiar nos mundos escondidos. Algumas houve que no desespero se misturarão com aqueles que não sabem a verdade e desapareceram.... são os Sonegados... e é com esses que temos de ter cuidado porque estã opor todo o lado...

Juntar-me-ei a vós dois... mas o interesse de conhecer outros mundos escondidos não pode ser revelado, tem que se descoberto, não te esqueças que o segredo do mistério está no tempo...

:)

Madame Pirulitos disse...

Dei comigo a ver a vida através da janela de um taxi...uma espécie de janela indiscreta.

Com cheiro a nostalgia, e sabor a possibilidades...

miak disse...

«- Importa-se que vá até Belém? Afinal era o nosso primeiro destino.»

Deixa-me que acabe aqui (só para mim)...

kolm disse...

Existe um segredo que lhe pode ser revelado, para enganar os sentinelas...
noites de lua prodigiosa reflectida num lago solitário, são as únicas noites em que se pode manifestar através de espelhos de água... e na sua fulguração poderá em segurança revelar-nos a sua história agora começada...
Palavras mágicas vem do coração... porque aguarda ele nas sombras?!

laura disse...

desculpa a demora. só hoje consegui ler o texto com calma... deliciosos, estes teus pastéis (com acento, ehehe)

Lisa disse...

Bonita, esta história de encontro(s).
Devia e podia acontecer assim, simplesmente.
:)

Anónimo disse...

Dá vontade de ir apanhar um taxi, pena que na vida real seja um pouco perigoso...
Muito bem escrito e apelativo.
Começei a ler e tive que ir até ao fim.
Parabéns.
Faço parte dos que irá comprar o livro quando for publicado