segunda-feira, janeiro 02, 2006

Alberto, o Homem-Estátua

Alberto estava há duas horas parado e doíam-lhe os pés. Sabia que não devia ter comprado sapatos novos, mas não resistira. Andava a namorar a mesma montra há três semanas e achara que também tinha direito a comprar algo para ele. Agora amaldiçoava a hora em que tinha tomado a decisão de gastar tanto dinheiro nuns sapatos que o magoavam, especialmente quando tinha de estar tantas horas de pé. Era um homem-estátua, uma figura branca que fixava o infinito durante horas sem mexer um músculo, sem deixar perceber que debaixo da tinta que lhe cobria a cara e a roupa existia uma pessoa normal.

Naquela manhã de Janeiro tinha saído atrasado de casa e tinha pintado a cara no metro. À sua volta todos olhavam a transformação e riam enquanto as suas expressões iam ficando escondidas. Um senhor de fato cinzento tinha mesmo chegado a oferecer-lhe uma moeda que recusara. Só depois de estar todo vestido e imóvel podia aceitar alguma coisa, até lá era só alguém a caminho do trabalho, um trabalho invulgar.

O tempo passava devagar e pensava em algo que acontecera duas semanas antes. Como em todos os anos deixara de lado o fato pintado de branco por um dia e tinha se transformado noutra personagem, um músico que tocava músicas de Natal. As pessoas tinham sido generosas nas suas ofertas e mais uma vez tinha sido o dia do ano em que mais dinheiro tinha ganho, o que o levava sempre a pensar se não devia desistir do homem-estátua. Era um pensamento recorrente que abandonava sempre com o argumento de que esta personagem só funcionava durante um dia e que não teria o mesmo sucesso se aparecesse mais vezes.

Mas desta vez tinha acontecido algo diferente, algo que o tinha deixado pensativo e que desde então não lhe saía da cabeça. Tudo se passou ao fim do dia quando já pensava em ir para casa e reparou num rapaz que o observava durante mais tempo do que o normal. Alguém que parecia querer adivinhar o que lhe ia dentro da cabeça, que parecia querer saber quem era. Tentara não olhar muito para ele, mas não pôde deixar de se sentir observado e não conseguiu desligar-se da sensação de estarem a tentar entrar dentro da sua vida. Era tudo muito estranho pois todos os dias era observado por muitas pessoas e não percebia o que é que este rapaz tinha de diferente.

Passado algum tempo reparou que alguém falava com o rapaz, era uma rapariga de feições alegres que tinha a impressão de conhecer. Olhou melhor e confirmou que era a mesma rapariga que costumava passar por ele todos os dias ao fim da tarde. Conhecia bem a sua cara pois ela fazia questão de se pôr bem à frente dos seus olhos, para que ele não tivesse outra hipótese senão olhar também para os seus. Ela costumava sorrir, não sabia se para ver se ele se mexia ou se apenas por simpatia, ele retribuía o sorriso sem mexer os lábios.

Não se tinha passado mais nada, a rapariga e o rapaz tinham conversado um pouco enquanto olhavam para ele e tinham ido embora juntos. Mas não conseguia deixar de pensar que tinham estado a falar sobre ele, a certa altura tinha mesmo chegado a pensar ter ouvido o seu nome, mas não podia ser, pois não havia forma de o saberem. E desde esse dia que passava uma parte do dia a pensar no que tinha acontecido, a pensar se de alguma maneira não fazia parte da vida das pessoas que todos os dias paravam e o observavam. Pensava nas histórias que teriam sido imaginadas sobre ele e sobre a sua vida, em quantos teriam imaginado como é que ele era debaixo da máscara branca, tentando descobrir de quem se esconderia, de quem fugiria.

Alberto não podia deixar de sorrir por dentro enquanto pensava. Era uma pessoa perfeitamente normal que raramente sonhava e era engraçado pensar que os outros podiam sonhar com ele, ele que não era interessante, ele que era a mais banal das pessoas e que passava os dias parado a olhar sempre para o mesmo ponto.

De repente o seu coração começou a bater mais depressa e sentiu-se inundado por tantos sentimentos diferentes que lhe era difícil estar quieto. Era como se tivesse começado a viver depois de anos adormecido. Não percebia o que é que estava a acontecer e lutava para não se mexer, lutava para não ceder ao impulso de saltar de cima do banco onde estava e dançar ao som de uma música que só ele conseguia ouvir. Não resistiu.

Foi uma sensação estranha, como se estivesse a quebrar uma regra imposta por alguém que controlava a sua vida sem o saber. Uma maldição lançada por inveja ou ciúme que o tinha aprisionado durante anos, que não o tinha deixado viver da melhor forma, que não o tinha deixado ser feliz. E mexeu-se, mexeu-se devagar, despertando aos poucos de um sono longo. As pessoas pararam na rua e olharam para os seus movimentos cada vez mais rápidos, parecendo conseguir adivinhar que algo importante se estava a passar, como se soubessem que o homem-estátua não voltaria àquele local, como se tivessem a certeza que estavam a assistir à sua última actuação.

A caminho de casa esfregava as mãos na cara e tentava limpar a tinta branca que usara durante tanto tempo, demasiado tempo. Não sabia como é que pensamentos tão simples tinham provocado tudo o que estava a sentir e pensava que estava a começar algo que não sabia onde o ia levar, mas não ia resistir. Parou a observar a cidade e na sua cabeça tinha apenas uma imagem, a de um rapaz e de uma rapariga a passearem de mãos dadas...

7 comentários:

Madame Pirulitos disse...

Tempo de mudanças...

miak disse...

Finalmente!

O melhor dos últimos tempos.
Muito bom.

Kiau Liang disse...

Lá está, pessoas-mesmo-pessoas, gosto das tuas histórias porque realmente são feitas de pessoas-mesmo-pessoas, que podem ser encontradas em qualquer lugar em qualquer desatenção do destino. Bom Ano

laura disse...

não preciso de te dizer nada... há momentos que fazem histórias.

Agripina Roxo disse...

a vida é mesmo assim, feita de histórias e mundos paralelos, de sonhos e caminhos imagináveis :)
Quem sabe?!
ninguém sabe, são tudo adivinhações, pensamentos vagos, profundos ou sentidos, nossos, filtrados por nós, só por nós...
é o nosso mundo e cada um tem o seu e o meu amarelo pode ser o teu laranja e porque não cores novas?!

pronto... já me estou a estender...
:) um beijinho para um contador de histórias *

nspfa disse...

É impressionante como nos consegues fazer olhar de forma diferente para coisas que normalmente não nos despertam qualquer tipo de interesse. É essa sensibilidade que tanto aprecio em ti e me faz vir aqui com tanta frequência à procura de mais uma visão inteligente do mundo que nos rodeia.

Então este é extraordinário. Parabéns, parabéns mesmo.

Aq disse...

Eu não sei há quanto tempo estou aqui a ler-te. Descobri-te hoje. Entrei aqui, pela primeira vez, hoje. É tarde, estou exausta. Decidi por isso, que hoje já não te leio mais. Decidi também deixar este comentário. Raramente comento. O interesse que me despertaste, primeiro na leitura e agora na reacção, faz-me entender que sim, que este blog é para mim, diferente. Saudades de quando escrevia quase tanto como tu :) Voltarei, certamente.