quinta-feira, março 29, 2007

Dormir

Rui olhou para a cadeira partida e mordeu o lábio de baixo. O gosto de sangue na boca não o fez mexer.
- Filhos da puta!
A mãe gritava desesperada, lutava por se libertar dos braços fortes que a agarravam. No meio de palavras sem sentido mordia, arranhava, esmurrava. A sua cara era a mais perfeita imagem de dor que alguma vez tinha visto. Como se todos os músculos da cara tivessem paralisado num segundo, como se ela se tivesse transformado numa estátua, no momento de maior sofrimento de uma vida. Não parava de gritar.
- Eu não quero! Eu não quero! Deixem-me!
Não conseguia desviar os olhos da cadeira, da madeira sobre o tapete. Sempre ali estivera à espera, até ser destruída em poucos segundos. Um som abafado chamou-o de volta. O pai deixou a mão esquerda debaixo do braço, na tentativa de esconder, de não conseguir confessar, de não ter coragem de pedir perdão, pelo que ninguém o culpava. A mãe caiu desamparada, depois de um momento de equilíbrio impossível. Desejou que estivesse morta e hesitou na ajuda, no baixar em esforço, no cansaço de tantos dias, do afecto esquecido, que já não acreditava ter tido.
- Pai... eu não aguento.
O pai ajoelhou-se sem responder. Tocou no cabelo dela e penteou-o com as mãos, desfez-lhe as rugas de dor com cuidado, num saber feito de dedos acostumados. Moldou um sorriso suave, em jeito de despedida, da melhor maneira que sabia. Amava-a, no meio da loucura continuava a amá-la, mais do que tudo.
- Vai Rui! Ela não vai demorar a acordar, se queres vai agora, não saias com ela aos gritos, não a leves assim contigo, vai-te pesar para sempre.
O pai chorava enquanto falava, num controlo que parecia frágil, mas sem ceder ao desespero, sem poder ceder ao desespero.
- Pai, eu não queria que fosse assim, mas... mas eu não aguento, eu preciso...
- Tens de viver... eu sei, tu tens de viver.
Rui fechou os olhos, imaginou-se a dormir, em cobertores aconchegados, no toque frio de lençóis. A cadeira continuava a um canto, num desafio que não suportava, por lhe mostrar que não era capaz, que não tinha força para ficar. O resto da sala olhava, sofás castanhos de pele, com pequenos ornamentos de metal, quadros de olhos desviados, de sombras em chão de pedra, com pessoas a dançar. Ao fundo um enorme móvel de madeira escura, quase preta. Tinha resistido a tudo, ao repetido desmontar, na tentativa de fugir, ao passar do tempo, que parecia sempre maior. No meio tinha umas gavetas com puxadores dourados, gavetas que estavam sempre vazias. Lembrava-se de as abrir e fechar, de aprender a contar nesse gesto supersticioso, de ter medo do que pensava, de repetir boas palavras, no meio de pensamentos tristes. No tecto um candeeiro feito de mil vidros, imitações de cristal, que quase não faziam barulho. Tinha uma única recordação, de uma tarde de sol, de reflexos na parede, de adormecer devagar.
- Pai...
- Não expliques, não digas nada, vai... vai antes que ela acorde, peço-te... vai antes que ela acorde.
Rui limpou as lágrimas, antes de sorrir.
- Pai, ajuda-me a pô-la no sofá.
Abraçaram-se, num choro que era dos dois, que nunca os ia deixar longe, em dias que não podiam adivinhar. Rui tocou na cara da mãe, tentando aprender, deixando os dedos perceber, um sorriso que teimava em desaparecer.

1 comentário:

MP disse...

Tão triste...