domingo, março 04, 2007

O Carro Antigo

Era a única pessoa na praia. Lembro-me de ser a única pessoa na praia quando vi o carro a descer a estrada. Era um carocha dos antigos, feito de um verde quase azul, de tantas pinturas. Não podia acreditar que o tinhas, pensei que gozavas comigo ao telefone, quando me avisaste, quando me disseste como ias aparecer. Sorria ao ver, tinham passado quinze anos, mas o carro tinha de certeza muitos mais.
Paraste ao meu lado e eu não hesitei, em ouvir o ranger da porta, num esforço de lábios fechados. Não falava com ninguém há dois dias, o cumprimento saiu em forma de voz rouca.
- Olá!
- Olá Júlio, não mudaste nada.
Passei as mãos pelo cabelo, para ter a certeza que mentias, para provar a mim próprio que o tempo passara, voara sem eu dar por isso, até te ver de novo.
- És simpática, mas a verdade é que mudei.
Sentei-me no banco de pele castanha, senti um toque áspero nas mãos, como um aviso, que não me deixava esquecer.
- Ainda não acredito que andas nisto, já devia ser uma antiguidade quando te foste embora.
- Era do meu avô, o carro era do meu avô.
- Ele?
- Sim, morreu há dez anos.
Arrependi-me no momento, lembrei-me de ouvir uma voz chamar-te, lembrei-me de sermos crianças, em brincadeiras sem fim.
- Desculpa, ele era como um avô para todos nós.
Os teus olhos brilharam.
- Não consigo vendê-lo, acredita que já tentei.
Riste de forma sincera, como só tu sabias, como só tu sabes.
- Se soubesses quantas vezes já fiquei parada.
Ri-me também, por educação, por partilha, sem saber porquê. Não me sentia nervoso, tudo era como tinha de ser.
- Júlio, deves estar a pensar...
Não a deixei acabar.
- Não Luísa, não estou a pensar em nada, estou só contente de te ver.
Inclinaste a cabeça, como quem olha pela primeira vez. Eu insisti.
- Eu não estava a mentir, mudei mesmo.
- Estou a ver, percebo que sim.
Nunca vou esquecer, o meu olhar demorado, um vestido de cores vivas, com um perfume de fazer fechar os olhos. No colo um botão aberto, reflexos de um fio de prata, que já brincara no meio dos meus dedos. Em silêncio relembrava a letra de uma música, um pedido em tom suave, para ficares comigo. Então deixei a minha mão na tua, o teu cabelo encostado a mim, da cor dos raios de Sol, que se escondiam no meio das folhas das árvores. Falei em voz baixa, continuei a pedir para ficares, para nunca nos perdermos. Tu apenas sorrias.

Era a única pessoa na praia. Repetia para mim o que não era verdade, pois os teus braços estavam no meio dos meus, os teus lábios passavam-me segredos, em beijos cheios de ti. Quando fecho os olhos, vejo sempre a luz no vidro, ouço o mar ao longe, sinto o teu cheiro, a tua pele nas minhas mãos, os seios descaídos, num envelhecer que me trazia a certeza, o saber, a calma, de já nada importar.
Um beijo, só desejava um beijo, como o primeiro, em jogos de miúdos, em tardes de Verão. Mas tinha-te em mim, como nunca tinha tido, como nunca tinha conseguido ter, por não saber como. E escrevo, transformo em palavras o que recordo, como se visse tudo de fora, dois corpos sem idade, num silêncio imaginado.


Ao fim da tarde

Sentámo-nos na areia, a trocar um cigarro, inspirando o fumo à nossa volta. Repito as tuas palavras, para não as esquecer.
- Nunca imaginei ver-te a fumar.
Roubei um pouco do que não era meu, ao respirar com mais força.
- Só em ocasiões especiais.
Ela riu.
- Como quando tens sexo com uma... O que somos nós Júlio? Ia dizer com uma velha, mas acho que ainda não sou uma velha, mas também não sou... O que somos nós Júlio?
Lembro-me do que respondi, só o escrevo por querer sentir.
- Luísa, não sentes? Não sentes este torpor que percorre o corpo, um estremecer que demora?
Ela parou para pensar.
- Sim, sim... acho que tens razão. Júlio... podemos ficar aqui, podemos ficar sem falar?
Nunca cheguei a responder.

4 comentários:

Rafeiro Perfumado disse...

Lixaram os amortecedores todos, de certeza...

laura disse...

Não sei se é da hora, de estar cansada, de estar a ouvir o Roy Orbison na Radar a cantar "I drove all night to make love to you..." a voz dele me estar a tocar especialmente, mas o que é certo é que este teu texto me tocou. Acho que é um dos que mais gostei até hoje. Em alguns momentos sinto que poderia ter sido escrito por mim - não que me ache uma grande escritora, mas tu sabes o que quero dizer... ;)
Parabéns... Senti muita coisa ao ler este texto. E essa é a melhor missão que um texto pode cumprir... :)
Abraço amigo.

k. disse...

"Não sentes este torpor que percorre o corpo, um estremecer que demora?"

as coisas às quais não conseguimos dar nome...

Mesmo depois da distância...

Pessoalmente, obrigada por este texto, vou leva-lo como se fosse meu...

kolm disse...

Ser a única pessoa na praia… Fechar os olhos e sentir pedacinhos de mar, de sal e de vento. Dedos que brincam na areia enquanto acompanham o ritmo das palavras… Agora aqui desenhadas!!

(Sorriso Grande)