domingo, março 11, 2007

O Homem na Esquina

Rui adorava aquela altura do ano, quando ainda não fazia calor, quando o suor ainda não lhe escorria pelas costas, e sentia arrepios pela manhã. Ia todos os dias a pé para o emprego, para poder olhar as pessoas, sentir o cheiro das últimas castanhas, trazido pelo vento, que lhe lembrava o frio. A cidade habituara-se a ele, ao seu andar devagar, ao sorriso escondido, à música repetida em voz baixa.
Ao chegar à Rua Augusta, uma última mania, uma obsessão antiga, raspar o ombro numa das esquinas, sujar o casaco na pedra. Sempre que não usava o Metro passava por ali, tocava na parede, um ritual que não podia explicar. Naquele dia, como em tantos outros, avançou decidido, antecipando a dor, que não chegou a sentir. Encostado ao prédio, um homem de barba cinzenta, mal cortada mas limpa. Ficou parado no meio da rua, sem saber o que fazer. Não podia continuar, não tinha por onde passar, mesmo que pudesse esperar, por um leve afastar, por meio metro de caminho. Nunca poderia passar entre o homem e a esquina, ficariam para sempre ligados, com as vidas cruzadas.
Passaram dez minutos e sentou-se no chão, mais tarde podia telefonar, para mentir, uma desculpa qualquer, mas não podia sair dali, estava preso. O seu adversário parecia ter tempo, nem sequer olhava para ele, apenas murmurava algumas palavras, rezas que imaginava. Observou-o várias vezes, até o decorar, cabelo comprido debaixo de um boné azul, roupa lavada, de certeza emprestada, e mãos perfeitas. Era isso que o incomodava, as mãos eram perfeitas, as unhas estavam arranjadas, sem o poderem estar. Era como se tivessem tirado um vagabundo da rua, o limpassem durante semanas, lhe dessem comida quente, uma cama com lençóis de flanela e uma manta às riscas. Mas não pudessem apagar a rua, marcada na pele, nos olhos quase fechados. Ouviu pela primeira vez a voz dela.
- Não consegues passar, pois não?
Respondeu sem olhar.
- Não, não consigo.
- É na parede que tocas?
Não valia a pena mentir.
- Na esquina, mesmo onde ele está.
Ela sentou-se ao seu lado.
- Já reparaste que parece fazer de propósito?
- Sim, não sei como, mas ele parece saber. Acho que não vou sair daqui tão cedo.
Demorou muito tempo a virar a cara, depois de a tentar adivinhar. Continuou.
- Sabes, não estava à espera, julgava que já era capaz de superar isto. Mas ele está tão agarrado à parede.
- Já não te acontecia há muito tempo?
- Sim, desde que o escrevi em história. Pensei que me tinha libertado.
Estavam sentados a uns cinco metros do homem, mas não tinha a certeza que ele não os ouvisse. Ela continuou, em palavras esperadas.
- Quem foi?
Ele riu-se.
- A minha avó materna.
- Alguma vez fizeste a pergunta, alguma vez te explicou porque o fazia?
- Sim, mas só em sonhos, em palavras escritas.
- E ela, nunca leu essas palavras?
- Não, não tive coragem, nela é tão natural. Uma vez montaram uma escada à porta de casa, umas obras quaisquer no andar de cima. E ela para sair tinha de passar debaixo da escada.
Sentiu o olhar curioso, antes da pergunta.
- E ela?
- Esteve dois meses sem sair, a minha mãe tinha de lá ir todos os dias levar comida.
- A sério?
- Sim, mas sabes o mais engraçado?
- Diz.
- Eu acho que nem era bem uma escada, mas ela enfiou aquilo na cabeça.
O homem não se mexia um milímetro.
- E essa história, a que escreveste, como é que acabava?
- Como todas as outras, meio perdidas, no desejo que as consigam perceber.
Ficaram calados, de ombros colados, ao som dos carros que passavam. Rui gostava de imaginar, de sonhar a rua cheia de saltimbancos, com tochas a arder que iluminavam as caras que espreitavam, com o tilintar das moedas, sacos cheios de ouro, chapéus com guizos, fogo cuspido, pequenos cães que andavam em duas patas.
Continuava sem saber o nome rapariga. Sentia-se confortável com isso, desejava não ter perguntado sempre, ter descoberto mais cedo, o prazer de esperar. Ela interrompeu os seus sonhos, pelo menos parte deles.
- E tu, porque é que voltaste a ser um rapaz assustado? Ou nunca deixaste de o ser?
A resposta era simples
- Vivia num sonho, recusando viver, por ter tudo o que queria. Um dia quiseram acordar-me, trazer-me de volta ao mundo.
- Médicos?
Rui fez um ar misterioso, que não conseguiu manter, por causa da vontade de rir.
- Eu gosto de os ver como feiticeiros.
Ela sorriu, com os olhos a brilhar. Ele imaginou que reflectiam o fogo das tochas.
- E porque é que voltaste?
Respondeu de olhos fechados, como quem pede permissão.
- Na verdade demorei, quiseram que decidisse, que escolhesse entre duas vidas.
- E?
- Estive dois anos internado.
Ela não conseguiu esconder o espanto.
- Foi difícil?
Ele hesitou, mas continuou.
- Não percebes, eu escolhi o sonho.
- Durante dois anos?
- Podiam ter sido mais, ou apenas um dia, não era importante, só me lembro do dia em que saí, de estar sentado numa cama, com uma mala à minha frente. Nem fui eu que a fiz.
Sentiu uma mão na sua.
- Mas voltaste.
- Sim, voltei.
- Queres contar?
- Um dia... um dia ela desafiou-me...
- Ela... desculpa, continua.
- Ela desafiou-me, a viver também neste mundo.
Antes de continuar olhou para a rua, prometeu que iria voltar à noite, sabia que ia estar cheia de magia, de pequenos teatros de marionetas, de mulheres contorcionistas, de pessoas pequenas, e de gigantes brincalhões, a cumprimentar quem passa.
- E conseguiste?
Rui levantou-se e ajudou-a a erguer-se.
- Mais ou menos, ainda fico preso...
- Por pessoas no caminho?
Sabia que ela o entendia, desde a primeira pergunta.
- Sim, por pessoas no caminho.
- Rui... e ela?
Estranhou, por nunca ter dito o seu nome. Respondeu no respirar.
- Ainda ando à procura, os dois mundos são diferentes.
Demorou um segundo, numa pausa para pensar.
- Se calhar és tu...
Um som de guitarra chegou até eles, trouxe palavras simples, mil vezes ouvidas, mil vezes repetidas. Começou a pensar na noite, a escolher as palavras, no momento certo para a convidar. Ela tentou disfarçar um sorriso, um sorriso do tamanho do mundo.
- Queres voltar para trás?
Ele olhou mais uma vez para a rua, já não conseguia fugir do sonho, da noite que demorava em chegar.
- Não, não é preciso, vou passar. Acho até que lhe devia agradecer, por me ter feito parar.
Ela continuava a sorrir.
- Podes estar cá às oito?
- Sim Rui, estou aqui às oito, neste mesmo sítio.
Não houve despedida, apenas um saber, um sentir, de um noite mágica, com a qual não conseguiam deixar de sonhar.
O homem na esquina sorriu, antes de se afastar devagar.

2 comentários:

kolm disse...

Mil musicas, mil sons, mil ritmos, mil palavras, mil sensações, mil descrições...

Juntas numa história magica de esboçar sorrisos...

Abelhinha disse...

Sabes? Neste pequeno conto conseguiste descrever como me sinto... numa esquina.