domingo, abril 08, 2007

Fugir

Sentada na areia Joana esperava, de olhos no mar, de pele beijada pelo vento, de mãos em contar infinito, da areia que escorria. O barulho de passos não calou os lábios secos, no dizer de um poema. João esperou um pouco antes de falar.
- Eras capaz de repetir isso para sempre, não eras?
Joana não respondeu logo, não precisava de responder. Sentia a cara quente por causa do Sol, imaginava a marca do dia seguinte, mas resistia a mexer-se. A praia estava quase deserta, mas em breve deixaria de ser sua, até ao Outono, até aos últimos dias de Setembro.
- Viste o teu pai?
João respondeu, entre os dedos fechados sobre a boca.
- Foi esquisito.
O mar desapareceu.
- Esquisito como?
- Eu estava sentado no café e vi-o ao longe.
Parecia que escolhia as palavras.
- Eu sei que parece impossível, mas acho que nunca tinha observado o meu pai ao longe, como quando olhamos outra pessoa, um desconhecido qualquer.
- E o que viste?
- Vi um homem cansado, de aspecto frágil. Vi um homem velho, de pernas magras, de cabelos brancos e olhar triste, desorientado. Sabes, ali no meio do centro comercial, entre centenas de desconhecidos, acho que olhei para ele como não fazia há muitos anos. Doeu muito Joana.
Ela hesitou, na história que queria contar, sem saber se conseguia.
- Alguma vez te contei da vez que o meu pai desapareceu?
- Não, acho que não deves ter contado, sou eu que estou sempre a falar do meu.
Joana inspirou fundo antes de começar.
- Quando o meu pai fez trinta e oito anos, no dia em que fez trinta e oito anos, a minha mãe deixou-o dormir até tarde, ele gostava de dormir de manhã. Nesse dia ela pediu-me para o acordar para o almoço, lembro-me como se fosse hoje, de ter subido as escadas depressa, de levar um beijo preparado, um abraço desejado, que me protegia, que me fazia sentir segura. Mas encontrei uma cama vazia.
- Como assim?
- Em cima da cama estava um papel, uma mensagem com poucas palavras, que dizia para não nos preocuparmos, que apenas nos dizia para não nos preocuparmos.
- Mas... onde? E a tua mãe?
A recordação do momento era dolorosa, mesmo depois de compreender, era sempre dolorosa.
- A minha mãe? A minha mãe estava na cozinha, lembro-me que estava a pôr um bolo no forno quando entrei aos gritos, era um bolo de chocolate, daqueles que eu nunca vou conseguir fazer.
- Mas e ela?
João percebeu a dor, misturada no meio de sorrisos.
- Ela ficou calada uns minutos, depois continuou a preparar a festa, que ambas sabíamos já não ir acontecer.
Fez uma pausa antes de continuar. João não a apressou.
- Voltou uma semana depois, exausto, com a barba por fazer. Trazia pequenas folhas presas no meio do cabelo, a roupa manchada de castanho e verde, e cheirava a flores.
- A flores?
- Sim, não deve ter tomado banho em toda aquela semana, e só cheirava a flores.
João imaginou o pai de Joana todo coberto de folhas, sentiu vontade de desaparecer também.
- Ele não contou, pois não?
Ela sorriu.
- Não, nunca disse uma palavra sobre o assunto.
- E a tua mãe?
Os olhos de Joana abriram-se muito. Uma vez João pedira-lhe para tirar os óculos escuros, para ver a sua expressão, para poder ver através deles, para sentir as histórias que contava. Desde esse dia, desde esse primeiro pedido, era sempre a primeira coisa que ela fazia quando estavam juntos, no meio de sorriso partilhados.
- João, se tu pudesses ter visto o brilho nos olhos dele, se o tivesses visto quando entrou em casa. Era impossível ter perguntado.
- Joana...
Ela sabia o que ele ia perguntar, esperou pelas palavras.
- Joana, eu vi o meu pai pela primeira vez, não foi? Eu hoje, quando o vi a andar sem ele saber, foi isso que estranhei, foi ter percebido que ele tem uma vida, para além de ser pai, de ser marido, de também ser filho. É isso que me estás a querer dizer, não é?
Como em tantas outras tardes, Joana ficou em silêncio, no prazer de poder esperar, de não ter pressa em responder.

2 comentários:

Kiau Liang disse...

A sensação é familiar...mas não consigo ver à distancia...

Abelhinha disse...

Eu também já vi o meu pai.

Também vi a minha mãe.

Obrigada por aquilo que estou a sentir neste momento