domingo, outubro 29, 2006

Maria

Tornou-se um vício, sem eu dar por isso tornou-se um vício. E hoje desço a avenida à procura de um canto onde o vinho seja mais barato, onde possa esquecer que existo. Doem-me os joelhos, doem-me muito os joelhos desde que o tempo mudou, desde que as manhãs voltaram a ser frias. Sinto-me tão sozinho.
Entro num daqueles cafés que podemos encontrar em toda a cidade, os mesmos azulejos brancos e azuis, as mesmas cadeiras gastas de cores bizarras e atrás do balcão um homem de camisa azul com um pano ao ombro. Pergunto o preço de uma taça e não percebo o que ele me diz. Finjo que tenho dinheiro e sento-me perto da porta.
- Não é de cá, pois não?
Mal tenho tempo de perceber que a mesa já estava ocupada e outra pergunta rebenta-me nos ouvidos.
- É um desgraçado, não é?
Olho desesperado para o balcão, mas o homem continua a tirar cervejas sem pressa, vou ter de esperar uns minutos pelo vinho que não posso pagar. Levanto a cabeça e vejo uma mulher de lábios vermelhos, demasiado vermelhos. Está vestida de preto como uma fadista das antigas, mas desconfio que ela não canta o fado, que nunca ninguém a ouviu cantar. Olho para ela e desafio-a.
- Não estejas com esse olhar, não olhes assim para mim.
Grita como uma louca, cerra os punhos à frente da minha cara e cospe para cima de mim. Ninguém se mexe um milímetro que seja, como se não existíssemos, apenas um sorriso trocista na boca do homem da camisa azul.
- Vá lá, senta-te lá e paga a bebida ao homem, afinal ele está na tua mesa, não?
Ela acalma-se e ri, um riso forçado que não me descansa. Lembra-me a minha mãe, a mulher que chamei de mãe, a única que conheci e que me criou como soube.
- Traz lá um copo de vinho, pode ser do mais barato, ele não se importa.
O homem dá uma gargalhada que enche a sala e eu tenho vontade de fugir. Mas não me levanto e fixo as tábuas do chão para não ver os outros que me olham.
Ela continua num tom de gozo.
- Bebe, bebe à vontade, é por minha conta, mas para o resto vais ter de sorrir.
Engasgo-me com as gargalhadas à minha volta e arrependo-me no momento em que pergunto.
- O resto?
O homem limpa as mãos no pano e vejo nos seus olhos que tem pena de mim. Aproxima-se de nós e fala com desprezo.
- És sempre a mesma, não és? Não resistes a um desgraçado. Devias ter sido mãe, davas uma boa mãe.
Ela arrasta-me dali para fora.
- Não ligues, antes puta que mãe dos filhos dele. E ele acha que me arrependo, pobre triste.
Sinto o coração a acelerar, não tinha entendido o que era óbvio. Ela percebe.
- Não olhes assim para mim, eu sou puta, tu és bêbado, achas mesmo que me podes julgar?
Não consigo responder.

Subimos umas escadas velhas, daquelas que sobem sempre a direito. Tenho medo que alguém nos veja, tenho medo que saibam que preciso de um abraço, que preciso de dormir aconchegado a alguém, mesmo que seja de uma mulher de lábios demasiado vermelhos. Paramos frente a uma porta verde e ela mete a chave na fechadura, ouço apenas um ligeiro barulho metálico, estava apenas fechada no trinco e eu sorrio sem olhar para ela. Entramos para uma sala que cheira a mofo, como se não vivesse ali ninguém há muito tempo. As paredes são forradas com um papel castanho e cinzento, cornucópias que me fazem ficar tonto. Deixo-me cair num sofá verde que me recorda o passado.
- Sabes... foi num sofá igual a este que dei o meu primeiro beijo, tinha treze anos e ela chamava-se Maria.
- E não nos chamamos todas?
Fecho os olhos e deixo-me adormecer num abraço quente.

5 comentários:

xein disse...

Pelos vistos as Marias estão com todos nós... E parece que há sempre uma próxima de um vão de escada!

Gostei...


Sente-te!

Anónimo disse...

muito humano....

Abelhinha disse...

todos nós precisamos de dormir nem que seja por um dia num abraço quente

laura disse...

gostei, gostei mesmo muito. fizeste aqui uma viragem no teu estilo que me agrada muito. mas eu é que sou a gaja das personagens perdidas e sem salvação, ouve lá... queres competir comigo, é? ;))

a sério, gostei mesmo muito. e a frase "e não nos chamamos todas?" arrasou-me. fantástico!

Aninhas disse...

Espero que seja ficção.
Se não é triste demais... Tadinho.
Olha eu cá chamo-me Ana...