segunda-feira, novembro 20, 2006

A senhora nas escadas

Subiu as escadas do metro e desejou que a senhora estivesse lá, umas semanas antes tinha-lhe dado umas moedas e a sua sorte mudara. Desde esse dia passava por ali todas as sextas-feiras e colocava mais moedas na caixa. Mas naquele dia as escadas estavam vazias. Sorriu confiante, talvez não precisasse mais dela, talvez nunca tivesse precisado.
Saiu para a rua e apressou o passo, sentia que ia chover e não tinha trazido chapéu. Lembrou-se de ter olhado para ele, antes de sair de casa, e de decidir não o levar, apesar de ter ouvido na rádio, que o tempo ia piorar.
O primeiro pingo deixou-o no meio da rua, como se atingido por um raio, como se tivesse de tomar uma decisão, em poucos segundos. Olhou para o lado e viu que ainda havia espaço, debaixo de um toldo verde. Decidiu continuar a caminhar, não sabia porquê, mas continuou a andar, enquanto a chuva caía, cada vez com mais força. Nos auscultadores uma música, uma sensação de liberdade, algo de bom iria acontecer, mesmo sem o gesto de dar.
Percebeu que a porta de casa estava aberta, antes mesmo de lhe tocar, hesitou antes de empurrar, e esperar, pelo acordar que não veio. A casa estava vazia, de tudo o que era supérfluo, de tudo o que não precisava para viver, de tudo o que mais amava. Mas não havia gavetas abertas, nem objectos espalhados, um roubo feito de mil cuidados, com uma educação sem sentido.
Sentou-se no sofá, a olhar para as prateleiras vazias, tentando lembrar-se do sítio das coisas, o seguro iria pagar, mas de forma cega, com mais números numa conta. Tinha pena dos filmes que não tinha visto, dos discos que ouvira à pressa, o resto comprara por vaidade, para dizer a si mesmo quem era.
Fechou os olhos e repetiu cada momento do dia, o acordar cinzento, o gabinete vazio, o almoço de pé, as escadas do metro, o livro no chão. Levantou-se depressa, tinha visto um livro no chão, um segundo antes dos móveis vazios. Ajoelhou-se na alcatifa de cor clara, difícil de limpar, segurou o livro nas mãos e procurou a razão na capa. Pensou porque é que o teriam deixado, no meio de tanta delicadeza, em só lhe levar os sonhos. Perdeu-se numa figura, uma mulher sem idade, numa noite iluminada, uma mulher, que desejou conhecer.

A caminho do aeroporto, à procura do impossível, pediu ao taxista para parar, que eram só dois segundos, que assim ganhava mais. Chovia outra vez e correu para as escadas do metro, não acreditava, mas não podia deixar de tentar, antes de partir.
Não estava ninguém nos degraus, mas desceu-os como se estivesse, um xaile sobre as pernas, lenço preto na cabeça e óculos demasiado grandes. No chão um cartão esquecido, com três palavras lavadas, no lugar de um cumprimento, de um obrigado em silêncio, para todos os que passavam.
De volta ao táxi, um murmúrio a medo, dito outra vez mais alto, numa coragem que crescia, de desistir de fugir. Um medo de viver, que finalmente percebia, sem compreender, um desejo de mudança, que abandonava em dor. E o decorar de uma frase, para sempre recordada, do cartão apagada, nos seus lábios repetida.
- Saibam ser felizes, saibam ser felizes...

6 comentários:

Anónimo disse...

Eu costumava imaginar que se desse esmola ao ceguinho que está no Metro do Marquês de Pombal as minhas chances de ganhar o Euromilhões seriam maiores. Acabei por não dar e também não ganhei... Coincidências? ;)

Abelhinha disse...

Chorei

Anónimo disse...

e não é que reconheci? ;) usaste bem o momento, melhor do que eu teria feito, sem dúvida.

Lisa disse...

:)
Desafiar a sorte, acreditar na sorte, fazer a sorte. Gostei ;)
(e o Maria está brilhante, tinha-me falhado e só li agora)

xein disse...

Bolas... Está profundo. É uma espécie de rasganço...

Sente-te!!!!

Anónimo disse...

a abelhinha chorou, eu não mas gostei.