segunda-feira, outubro 16, 2006

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Rui parou o carro e ficou a olhar para a entrada do prédio à sua frente. Ainda se lembrava de não existir nada naquele sítio, de jogar às escondidas com os amigos no meio das ervas altas, até ao dia em que encontraram tudo fechado com tábuas velhas que não deixavam ver as árvores arrancadas. Nunca se conformara e chorara uma tarde inteira quando soube que ia ser ali a sua nova casa, implorara aos pais para que mudassem de ideias, mas eles apenas sorriram e disseram que ele ia habituar-se.
Desligou o motor mas não saiu do carro, deixou o rádio a tocar e tentou ganhar coragem para subir, tentou ganhar coragem para contar tudo o que se tinha passado nos últimos meses. Imaginava o seu pai a perguntar se já era director e irritava-se por ter de responder, por nunca o ter desejado, por não ser esse o seu plano de vida, por haver coisas mais importantes. Fechou a porta com força e subiu as escadas.
Quando entrou reparou no sorriso triste da sua mãe, ela sabia, ela conhecia-o em silêncio, nunca precisava de lhe contar porque ela sentia. Conteve as primeiras lágrimas quando a abraçou, a sua vontade era ficar deitado no seu colo como fazia quando era pequeno, quando se perdia nas músicas que o faziam adormecer.
- O pai?
- Está no escritório, eu vou chamá-lo.
- Não, eu vou.
Percorreu o corredor devagar e parou à porta do seu quarto, olhou a cama feita como se nunca tivesse saído daquela casa, como se voltasse depois de um dia de escola. Entrou e ficou parado no meio do quarto, como se estivesse a decidir que recordações o podiam ajudar. Dirigiu-se aos seus discos e passou os dedos pelas capas limpas, sabia que a mãe não falava verdade quando lhe perguntava quando é que ele levava as suas coisas para casa, era uma forma de nunca ir embora. Ouviu tossir e saiu do quarto.
A porta do escritório estava aberta e mal entrou viu o pai a escrever. Ele sorriu ao vê-lo, mas não se levantou, poisou apenas a caneta e esperou por um beijo.
- Fui eu que te dei essa caneta, não fui?
- Sim, foste. Deste-ma no meu último aniversário antes de ires para a universidade, tornou-se numa boa companheira. Tu já não sabes como é pois, pois não?
- Escrever com uma caneta?
- Sim.
- Acho que não. Fiquei com inveja quando te vi da porta, já há muito tempo que não faço isso, que não escrevo numa folha com uma caneta.
Rui sentou-se no sofá de dois lugares que estava encostado à parede e esfregou os olhos, estava cansado e não tinha vontade de falar sobre o que o trouxera ali. Olhou para a estante em frente ao sofá e relembrou um a um todos os livros arrumados de forma perfeita.
- Acho que não há aqui um livro que não tenha lido, devias comprar alguns novos, agora há por aí algumas coisas interessantes.
O pai sorriu.
- Eu sei que há filho, às vezes vou até à livraria do Sr. António, lembras-te dele?
- Como é que me podia esquecer?
- Às vezes vou até lá e sinto-me tentado a comprar alguma coisa nova, mas confesso que acabamos sempre os dois a falar dos velhos clássicos. Acho que sou um caso perdido.
- Pai, em princípio vão haver algumas alterações lá no emprego, muito provavelmente vão-me convidar para chefiar uma nova área.
O pai levantou-se e deu a volta à secretária. Sentou-se ao lado dele e esperou um segundo antes de falar enquanto passava o cachimbo apagado de uma mão para a outra.
- Mas não foi por isso que vieste cá, pois não?
Não respondeu, deixou-se perder no desenho do tapete e lembrou-se das tardes de domingo, lembrou-se do sol a entrar pela janela e de brincar naquele chão. Desejou poder voltar atrás trinta anos, voltar àquelas tardes perfeitas em que brincava em cima daquele tapete sem acordar o pai que dormia no sofá. Desejou sentir o cheiro de um bolo acabado de fazer que se sentia na casa toda, uma casa de que tinha saudades, mas que só agora percebia quanto. Olhou nos olhos de pai e respondeu.
- Não foi por isso, mas queria que a mãe estivesse aqui também, queria falar com os dois ao mesmo tempo.
- Eu estou aqui.
Sempre admirara a sua forma silenciosa de caminhar, mesmo quando o apanhava a fazer alguma coisa que não devia. Nos seus sonhos de criança imaginava que a mãe não tocava o chão, que deslizava de forma mágica por cima da alcatifa que cobria todo o chão da casa.
- Aconteceu uma coisa, uma coisa que não vos queria contar pelo telefone. A Teresa... a Teresa e eu acabámos.
Os pais ficaram em silêncio, esperaram tranquilamente que ele acabasse de falar.
- Nós... as coisas já não estavam bem há algum tempo e a semana passada tivemos uma conversa e decidimos que não valia a pena continuar.
O pai pousou uma das mãos no seu ombro e apertou com força antes de falar.
- E como é que estás? Como é que estão os dois?
- Como é que estou? Sei lá, acho... acho que as coisas não podiam ser de outra maneira, a conversa até foi muito calma, sem discussão, sem gritos, mas... mas eu...
A mãe sentou-se no braço do sofá e deu-lhe uma das mãos. Apetecia-lhe chorar, mas esforçou-se por não o fazer, sentia que ainda não era altura e deixou-se ficar entre os dois em silêncio. Ela falou.
- Sentes-te perdido, não é?
Sorriu por ela o conhecer tão bem, por adivinhar as suas palavras.
- Sim, sinto-me perdido. Eu sei que não é o fim do mundo, mas sempre achei que quando chegasse aos quarenta... sempre achei que as coisas iam ser diferentes, nunca imaginei que ia estar sozinho, que ia ter de começar tudo de novo outra vez.
O pai levantou-se e dirigiu-se à secretária. A mãe continuava com a mão nas suas sem dizer uma única palavra e sorria como fazia quando ele era pequeno e caía da bicicleta e esfolava um joelho. O pai voltou com uma folha de papel na mão.
- Sabes o que é isto?
- Não.
- Lembras-te de quando mudámos para cá? Lembras-te da rapariga que vivia aqui ao lado? Os pais dela mudaram-se para cá um mês depois de nós.
Rui pensou um pouco antes de responder
- A Sónia? Sim, a Sónia... que parvo, não me estava a lembrar. Claro que me lembro, eles mudaram-se um ou dois anos depois, não foi?
O pai assentiu com a cabeça.
- Sim, eles foram viver para o norte.
- Mas o que é que essa folha tem a ver com a Sónia?
- Esta folha foi onde tu escreveste uma carta para ela, na altura em que se foi embora. E ela respondeu na parte de trás. Há uns anos fizemos umas arrumações e encontrámos a carta no meio de uns cadernos teus, achei que a devia guardar. Queres lê-la?
Rui não precisou de ler a carta, só se irritou por ter esquecido, por terem passado tantos anos sem pensar nela e em tudo o que aconteceu. Como se tivesse traído as palavras que tinha escrito, por ter faltado à promessa de que nunca a ia esquecer, uma promessa que ela também fez. Não conseguiu deixar de sorrir quando falou.
- Era tudo tão complicado nessa altura, não era? Pensei que a minha vida acabava e... e agora precisei de uns segundos antes de me lembrar. Ai... acho que ainda sou o mesmo miúdo pateta.
Não aguentou e desatou a rir com o comentário que fez, os pais riram com ele.

Na manhã seguinte acordou e sentiu que tinha dormido durante anos. Tinham ficado a conversar até tarde, a relembrar histórias do passado e sentiu-se como se vivesse ali outra vez. Sentado no chão do quarto folheava os seus livros de super-heróis, tinham passado tantos anos e achava incrível como é que ainda se conseguia lembrar de todas as histórias, talvez por as ter lido tantas vezes, aventuras que o faziam sonhar, que o faziam querer ser um daqueles heróis de uniforme colorido, algo que ainda desejava secretamente. Ouviu a voz da mãe a chamar e sentiu o cheiro de um bolo acabado de fazer. Era bom estar em casa.

8 comentários:

Ana Rita disse...

"...a sua vontade era ficar deitado no seu colo como fazia quando era pequeno, quando se perdia nas músicas que o faziam adormecer..." é tão bom quando sentimentos antigos, quentes e ternos chegam para nos aquecer a alma!
este tocou-me mais que os outros.
obrigada

Anónimo disse...

Os cheiros são do melhor para nos fazerem recordar momentos passados, para nos levarem de volta a vivências doces.
Tenho palmilhado este blog, estou a adorar!!!!

xein disse...

Recordar.... Voltar ao passado... Gostas disso, hein?!?!? E eu gosto que tu gostes para poder gostar de te ler! ;)


Sente-te!

Kiau Liang disse...

e os cheiros dos livros....

pinky disse...

e pronto,,,,conseguiste arrancar-me lágrimas....nem te passa a proeza que isso é....

Anónimo disse...

Vom cá para por recomendação do cão rafeiro...

Gostei muito do que li. Só falta sentir o cheio das coisas... muito envolvente.
:)

Anónimo disse...

Ups.. é o que dá ser "novata"... não foi pelo "cão rafeiro".. foi pelo "rafeiro perfumado"...

(PS - Rafeiro, se leres não leves a mal... saiu-me...)

Anónimo disse...

Que saudades de ser criança :) Beijinho Eduarda