quinta-feira, setembro 28, 2006

Um

À minha frente está sentado um homem de cabelo branco que olha o vazio atrás de mim, que olha os outros passageiros do metro. Penso se estará a tentar adivinhar as vidas e tenho vontade de lhe perguntar, tenho vontade de lhe dar a mão e sentir se está quente. Observo-o sem esconder o olhar e reparo que a camisa que tem vestida é muito velha, está remendada em demasiados sítios e desisto de os contar. Por cima da camisa um casaco sem cor, um companheiro de todos os dias, um casaco mágico. Imagino que nunca o pode tirar, que só o pode despir depois da noite cair, para não perder as memórias, as recordações em forma de cheiro, o tecido gasto pelo Sol. Vejo a mão dele a mexer-se, a apertar outra a seu lado, uma mão cheia de manchas, pequenos sinais que só os idosos sabem admirar, pois dizem que idade temos. A mão é de uma doce senhora, que eu consigo sentir, porque respiro o seu perfume, misturado com os outros que passam. Está vestida com uma camisa quase branca, que já foi branca, mas que agora é só limpa, de tantas vezes lavada, de muitas tardes de chá e de pequenas migalhas de bolo de chocolate. Um alto deforma as suas costas, uma corcunda esquecida, um andar dobrado, mas de cabeça erguida. Desvio os olhos para o lado e encontro lágrimas nos olhos do homem, um choro sem expressão, sem o contrair da cara, sem som, um choro que impressiona, por ser tão calmo. Sei que sonha, sei que recorda, uma vida tão cheia, uma tarde de verão, uma tarde perdida, para sempre lembrada. Ela sorri e descansa no casaco dele. Despeço-me, sem perguntar.

5 comentários:

kolm disse...

Pedacinhos de vidas roubados a pequenos momentos. Por vezes tão simples. Transcendentais. Inesquecíveis.

Sorriso grande para ti!!

Lisa disse...

lindo, lindo, lindo
:)

laura disse...

tem piada... ontem no autocarro para casa encontrei um casal de velhinhos, de mão dada. Seriam os mesmos? fiquei com saudades de algo...

inBluesY disse...

marcas de tempo, rugas, gosto de observar, muito.

pinky disse...

é bom ter uma vida cheia e intensa para recordar na velhice, e melhor qd essa vida é compartilhada, o uso do casaco ou os remendos da camisa pouco lhes parece importar, pk a vida foi e é bonita.