terça-feira, setembro 19, 2006

Medo

Era quase meia-noite e Carlos e Pedro desciam a Avenida Almirante Reis. Era o último dia de Verão, o último dia dos passeios pela cidade, uma Lisboa que parecia olhar para eles, que tomava conta de dois miúdos que se iam tornar adultos.
- Só tenho pena de uma coisa.
Pedro parou e acendeu um cigarro antes de falar.
- O que é que foi? Hoje? Hoje vais começar com as tuas merdas? Não podes caminhar calado? Não podes ficar calado uma vez na vida... não sabes... não sabes que é o último dia, a última vez que caminhamos sem destino?
As últimas palavras de Pedro já tinham sido ditas no meio de um choro quase descontrolado, um choro assustado. Carlos ficou com os músculos da cara todos contraídos, uma máscara de dor que o paralisava numa única expressão e falou de dentes cerrados.
- Parece que está sempre de noite, parece que é sempre tarde.
- O quê?
- A cidade... os prédios, os carros, não me vou conseguir lembrar deles de outra forma, como se nunca os tivesse visto à luz do dia.
Pedro passou a manga da camisa pela cara e ficou a olhar para o chão antes de falar.
- Mas não era disso que ias falar, não era da noite, pois não?
Carlos sorriu com esforço.
- Sabes sempre, não sabes?
- Acho que sim, acho que sei. Olha, desculpa... desculpa eu ter-me irritado. Eu estou a ouvir-te.
- Ia dizer que só tinha pena de não ter amado esta cidade durante tanto tempo, de só a ter amado quando deixei de ter medo.
- Não podia ter sido de outra maneira. Tu sabes que não podia ter sido de outra maneira. Se calhar foi tudo cedo demais, se calhar daqui a uns anos...
Não foi capaz de continuar, recomeçou a soluçar violentamente e ajoelhou-se encostado a um carro. Carlos aproximou-se, tocou-lhe com uma mão no ombro e fechou os dedos com toda a força. Foi sacudido por um empurrão.
- Sai da frente.
Os olhos de Pedro ainda estavam cheios de lágrimas mas já não chorava. Levantou-se e correu pela rua fora. Correu entre os carros aos gritos, correu como se fugisse de alguém, como se fosse um animal encurralado a tentar libertar-se de correntes. Carlos olhava para toda aquela loucura e não dizia nada, ele também se sentia preso, ele também tinha vontade de correr, ele também queria se libertar. Mas não conseguia, fechava apenas os olhos e cerrava os punhos. Gritou.
- Pedro! Pedro! Foge, foge por favor. Não aceites, não temos de ir, não temos de ir...
As palavras que chegaram até ele foram as mais calmas que alguma vez ouvira, as mais serenas que iria ouvir no resto da sua vida.
- Sabes que temos ir, tu sabes que temos de ir.
À sua frente Pedro olhava para ele a sorrir, já não tinha a camisa vestida e a sua pele suada reflectia a luz fraca dos candeeiros. Subiu para cima de um carro e abriu os braços, esticou os dedos como se quisesse agarrar algo, como se desafiasse o destino. Então, sentou-se no tejadilho e começou a cantar baixinho.

- Pai?
A voz de Teresa chamou-o de volta à realidade.
- Diz querida.
- A mãe pergunta se demoras, ficámos de estar em casa dos avós antes das oito.
- Não, não demoro. Diz à mãe que não demoro.
O olhar curioso da filha viu a fotografia nas suas mãos.
- Quem é?
Não teve medo de responder.
- O Pedro, um amigo, um grande amigo.
- Não me lembro de te ouvir falar nele.
Continuou sem hesitar.
- Ele morreu na guerra em África.
- Foram colegas lá?
Sorriu com a palavra que ela escolheu.
- Não, não fomos colegas lá, ele foi para outro lado. Vai descendo que eu vou já.
Teresa fechou a porta atrás dela e Carlos olhou uma última vez para a fotografia amarelecida pelo tempo. Lembrou-se outra vez daquela noite e deixou os olhos encherem-se de lágrimas.

9 comentários:

Anónimo disse...

Muito bonito, mas também triste. Deve ser bom ter idéias e conseguir pô-las no papel. Uma boa semana
Mariana

Rafeiro Perfumado disse...

Continua a faltar algo, jove. Gostava de saber, no mínimo, para onde o Pedro foi. Talvez deixes demasiadas coisas por conta da nossa imaginação. Olha que nem todos são como tu...

PS: foi o comentário mais sério que consegui fazer. A primeira tentação foi perguntar se o Pedro era giro. É que dois gaijos a camninharem pela rua, com choradinhos...

Madame Pirulitos disse...

No fim percebi para onde eles tinham ido. Mas poderia ter sido outra escolha qualquer. Por vezes sentimo-nos assim quando percebemos que deixámos de controlar a nossa vida.

Só hoje percebi que estavas de volta. Um controlo? Ou um descontrolo?

:)

Kiau Liang disse...

Não é um bom momento para comentar as liberdades, ou as fugas do que cá vai por dentro.

Deixo um meio sorriso, preso no que não posso dizer nem a mim, nem a mais ninguém. E nunca me esqueço do amarelo torrado. Sei que não fui clara mas, nem consigo pensar mais na minha liberdade de expressão.

Abelhinha disse...

Não me surpreendeu, mas sem dúvida que me comoveu.

Consegui imaginar a Almirante Reis, o Pedro a correr pela avenida a baixo como se o rio fosse fugir. O seu cabelo curto e as pernas compridas, calças de ganga justas. Corria e atravessava todas aquelas prependiculares sem ver se vinham carros e pensei: tem cuidado Pedro, não vás ser atropelado.

Lisa disse...

Fogo, está uma maravilha. Gostei mesmo, pá :)

Lenore disse...

É bom ter-te de volta!Para quando o volume 2?lol

Anónimo disse...

Parabéns! Continua.

Eduarda

pinky disse...

de deixar o coração apertado, esse sentimento de estar encurralado é do pior, angustiante.
mas uma vez, uma grande história!